Eram muitos, muitos mil, 25% da população do país, que em abril de 1974 viviam em barracas, bairros de lata ou casas degradadas, nas margens da cidade e dentro dela, sem água, eletricidade, esgotos, instalações sanitárias. Vários tinham vindo de outras zonas do país à procura de vida melhor na capital, mas tantos outros havia que já cá tinham nascido, como os pais e os avós, lisboetas.

Viviam nas costas da cidade, atrás das Avenidas Novas, atrás de Campo de Ourique, atrás de Alvalade, atrás do Areeiro, atrás, em bairros de madeira e zinco e terra batida. Trabalhavam na cidade. A servir, na estiva, na venda ambulante, na construção, nas oficinas, no comércio, nas fábricas.

SAAL Bairro de lata bairro dona leonor
Bairro Dona Leonor, núcleo degradado, em Benfica. A operação SAAL neste bairro foi uma das duas únicas concluída na sua totalidade em Lisboa. Foto: Espólio Manuel Magalhães [1974_75]

Quando a revolução saiu à rua naquele 1974, o povo saiu com ela e disseram-lhe que era dele o poder. Paz, pão, habitação, saúde, educação. Só há liberdade a sério quando tudo isto não for um sonho, pensou-se. O lema foi o Sérgio Godinho que o cantou. A cantiga era uma arma e eles sabiam.

O resto estava para conquistar, mas a habitação começava a cumprir-se três meses depois do 25 de Abril de 1974. Um despacho do arquiteto Nuno Portas, secretário de Estado da Habitação e Urbanismo do I Governo Provisório, datado de 31 de julho de 1974, lançava as bases para uma experiência única: o SAAL – Serviço de Apoio Ambulatório Local, “um corpo técnico especializado, organizado pelo Fundo de Fomento da Habitação, para apoiar, através das Câmaras Municipais, as iniciativas de populações mal alojadas, no sentido de colaborarem na transformação dos próprios bairros, investindo os próprios recursos latentes e, eventualmente, monetários”, lia-se.

Ao Fundo de Fomento da Habitação cabia dar apoio técnico e financiamento, às Câmaras Municipais a gestão urbanística e cedência dos solos a urbanizar. E às populações a iniciativa de se constituírem em cooperativas ou associações e avançarem com a operação.

manifestação SAAL
Manifestação em Lisboa de associações de moradores pelo direito a casas. Foto: Albano Pereira, José Carlos Pereira e Rui Martins | Equipa SAAL da Portela/Outurela, em Carnaxide.

Um mês depois do despacho, publicado em Diário da República a 6 de agosto de 1974, já muitas das então chamadas brigadas técnicas, compostas de arquitetos, engenheiros, desenhadores, assistentes sociais, sociólogos, juristas, estudantes, estavam no terreno a mobilizar e apoiar as tais “populações mal alojadas” para que se organizassem em Cooperativas de Habitação Económicas (CHE) ou Associações de Moradores, que tinham de ser formalizadas para lançar a operação que ergueria um bairro no lugar das barracas. Um processo participado em que os moradores eram parte ativa e tinham a liberdade de mudar e decidir a história cantada por Sérgio Godinho.

Mas o que nos deixou o SAAL para aprendermos a lutar contra a atual crise da habitação? Para isso, é preciso compreender como funcionou e que legado semeou em Lisboa.

“Durou pouco, mas valeu muito”. E em Lisboa?

Batista Alves capitão de abril diretor SAAL
O coronel José Batista Alves foi o segundo diretor nacional do SAAL. De Capitão de Abril a Capitão do SAAL, um processo que considera único e do qual pensa que é importante retirar ensinamentos. Foto: D.R.

“Foi uma experiência incrível”, diz o coronel José Batista Alves, capitão de Abril e Diretor Nacional do SAAL entre dezembro de 1974 e junho de 1976, que sucedeu à socióloga Maria Proença, primeira diretora do programa.

“Nas equipas do SAAL estavam envolvidos muitos dos grandes arquitetos daquele tempo e muitos jovens arquitetos que hoje admiramos. As equipas eram multidisciplinares, com engenharia, sociologia e outras especialidades, constituídas em grande parte por jovens, que faziam o trabalho com um entusiasmo contagiante. Algumas equipas optaram mesmo por se instalar nos próprios bairros onde estavam a trabalhar. Vivia-se então muito depressa e intensamente, a realidade com que nos confrontámos era, para muitos de nós, completamente desconhecida. Foi um processo de aprendizagem precioso em todos os aspetos: técnico, sociológico, político e humano. Durou pouco, mas valeu muito”, lamenta.

Zeca Afonso cantou o SAAL, já este tinha sido abruptamente interrompido, dos Índios da Meia Praia, no Algarve.

“Eram mulheres e crianças | cada um com seu tijolo | isto aqui era uma orquestra | quem diz o contrário é tolo”

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Quando acabou, em outubro de 1976, com Mário Soares à frente do I Governo Constitucional, que determinou a passagem do SAAL para a alçada das Câmaras Municipais, o que terá matado o processo, eram 41 665 as famílias envolvidas, 170 operações iniciadas em todo o país, 2259 fogos iniciados até 31 de outubro de 1976 e 3125 a iniciar até 31 de dezembro do mesmo ano, estando em projeto 19 359 fogos. Já o pessoal envolvido nas brigadas técnicas contava-se em mais de mil. Dados do Livro Branco do SAAL, que procurou fazer um balanço do programa em todo o país, do Porto ao Algarve, com experiências muito diferentes, todas elas únicas.

SAAL SEIXAL
Várias gerações, com crianças, mulheres e homens, a puxar uma corda para limpar o terreno de árvores e produzir carvão de sobro para vender e obter as primeiras receitas da CHE 25 de Abril do Seixal, para a operação SAAL no Bairro do Barateiro, no Seixal [1976]. Foto cedida por Fernando Bagulho.

Em Lisboa as operações tiveram algumas especificidades, conta Fernando Bagulho, arquiteto militar na altura, chegado da guerra em Angola em janeiro de 1975. Foi requisitado pelo secretário de Estado da Habitação, Nuno Portas, para integrar a equipa militar liderada por Batista Alves, com quem esteve em Angola, e que foi encarregue de dar apoio, e organização, ao processo SAAL.

Arquiteto Fernando Bagulho SAAL
O arquiteto Fernando Bagulho, em 1975, quando foi coordenador do SAAL Lisboa/Centro Sul e autor dos projetos do Bairro do Batateiro no Seixal e do Bairro do Couço, em Coruche. Foto cedida por Fernando Bagulho.

“As operações SAAL de Lisboa centram-se nos bairros de barracas existentes no concelho, desenvolvidas por equipas criadas no seio da EPUL, e em zonas de habitação degradada dos concelhos limítrofes, desenvolvidas por equipas criadas no seio do Fundo de Fomento da Habitação. Este pecado original tornou mais difícil integrar e fazer funcionar como um todo, mas os resultados contradizem a ideia de perda de eficácia que perdurou até hoje. A prová-lo, está o número de operações que são casos de sucesso, tanto no concelho de Lisboa, como nos concelhos limítrofes, apesar das profundas diferenças que apresentam, tendo sido atingido um número total de novos fogos produzidos que ainda hoje se poderá considerar extraordinário”.

Dois anos mediaram entre o despacho do arquiteto Nuno Portas e o despacho que ditou a morte do SAAL [já o secretário de Estado da Habitação tinha saído], com formação de cooperativas e associações, lançamento de operações, cedência de terrenos, discussão e concretização de projetos de arquitetura e lançamento de empreitadas.

No concelho de Lisboa, resultaram do SAAL cerca de 1480 casas, a maioria construída já depois de 1976, com entregas de chaves até ao início dos anos 1980.

O revolução que ficou pela metade – e o estado em que deixou a cidade

Ricardo Santos, arquiteto e investigador, autor e coordenador do livro Cidade Participada: Arquitetura e Democracia. Operações SAAL – Oeiras [Tinta da China], atualmente a ultimar o livro, da mesma coleção, sobre Lisboa, lamenta que não tenham sido muitas mais.

“No concelho de Lisboa, tivemos 15 operações SAAL, sete começaram obra e duas concluíram a totalidade dos fogos previstos. Oito tinham projeto, mas não chegaram à fase de construção. Houve cerca de 22 pedidos de intervenção que ficaram sem resposta. A Quinta do Alto, na avenida do Brasil, e o Dona Leonor, ao lado do Estádio da Luz, por detrás da rua dos Soeiros, foram os dois únicos projetos que construíram a totalidade dos fogos previstos, os outros ficaram com muitas casas por fazer, tendo ficado metade da população ou mais por realojar.

Mas o SAAL não duraria muito mais. Ricardo Santos explica que, “em outubro de 1976, sai um despacho que passa a competência de gestão do SAAL do Fundo de Fomento da Habitação para as Câmaras Municipais e o que aconteceu é que, como havia muitos conflitos com as autarquias, assim que o SAAL passou para estas, acabou”. O que acontece em Lisboa é que “as operações que tinham obras em curso continuaram, houve um interregno entre 1976 e 1978, mas apesar de muitas divergências e dificuldades, lá se conseguiu fazer alguma coisa”.

Os bairros da Liberdade e Quinta da Bela Flor, em Campolide, o Bairro das Fonsecas – Calçada, em Alvalade, o Bairro Quinta do Bacalhau, nas Olaias, e o bairro da Curraleira – Embrechados foram apenas parcialmente concluídos. Operações como a do Alto dos Moinhos, em Benfica, Casal Ventoso, em Alcântara, Quinta Grande, na Charneca, ou Pátio Vila Fernandes, em São Bento, nem sequer avançaram para obra, apesar de as cooperativas de habitação terem sido constituídas e existir projeto.

Os bairros Dona Leonor e Quinta do Alto, com projeto do arquiteto Manuel Magalhães foram então as únicas operações SAAL concluídas, na cidade de Lisboa, com a construção de todos os fogos previstos.

Bairro SAAL Quinta do Alto
O Bairro Quinta do Alto, na Avenida do Brasil, da autoria do arquiteto Manuel Magalhães, é um dos dois únicos projetos concluído na sua totalidade em Lisboa. Foto: Ricardo Santos

“Foi usado um processo construtivo já experimentado anteriormente – o sistema túnel, que permitia uma otimização dos recursos e uma construção mais rápida. O arquiteto discutiu uma tipologia com as pessoas, a base era T3 e numa lógica de módulos faz a partir daí várias tipologias adaptadas às necessidades. Percebemos que é uma espécie de lego, em que a cozinha e a casa de banho têm uma parede costas com costas para as águas e esgotos ficarem numa única parede e o resto era quartos e salas, numa métrica que permite a repetição e simplificação da estrutura do edifício. Conseguiram fazer e hoje vamos lá e os bairros estão impecáveis”, diz Ricardo Santos.

Ao contrário do que aconteceu no Algarve ou até em alguns concelhos na periferia de Lisboa, na cidade a ideia de autoconstrução preconizada por Nuno Portas foi rejeitada, o que não significou uma menor participação dos moradores no processo do seu bairro.

Ricardo Santos, arquiteto
O arquiteto Ricardo Santos é investigador e autor e coordenador do livro Cidade Participada: Arquitetura e Democracia. Operações SAAL – Oeiras [Tinta da China]. Está atualmente a ultimar o livro, da mesma coleção, sobre Lisboa. Foto: Vera Marmelo.

O arquiteto explica que “as principais operações SAAL em Lisboa estão nos limites do centro da cidade a partir de um raio de dois quilómetros, as populações viviam e trabalhavam em Lisboa, faziam a cidade a pé, eram urbanas e isso, a juntar à dimensão dos bairros de barracas, contribui para uma das especificidades arquitetónicas do processo aqui em relação ao resto do país, que são blocos de habitação, até 4 pisos (para evitar a questão do elevador)”.

Mas, lembora, “o SAAL não é sobre arquitetos, é um processo social, sociológico e político complexo, em que os arquitetos tiveram um papel fundamental, mas que vai muito além da arquitetura”. Conta que “as brigadas eram multidisciplinares, incluíam assistentes sociais, sociólogos, estudantes de arquitetura e de outras áreas, que trabalhavam com as populações, havia um processo, um caminho feito com as pessoas, de levantamento do existente, das condições em que viviam, das perspetivas de evolução das famílias, de caracterização e preparação das populações e pelo meio discutia-se uma casa, um edifício, um bairro”.

Ricardo Santos dá o exemplo da operação na Portela/Outurela, em Oeiras, onde as brigadas técnicas desenvolveram um conjunto de atividades ao longo de dois anos com as populações. “Cursos de alfabetização, ciclos de teatro e cinema, todo um processo que trazia uma verdadeira mudança, não só de habitação.”

Uma verdadeira mudança que, no ver de Batista Alves, tornaram o processo único e diferente de todos os programas habitacionais de realojamento que se lhe seguiram. “A aposta do SAAL na participação ativa dos moradores para a solução do problema da habitação, na conceção e, em alguns casos, na própria construção, permitiam uma integração das comunidades marginalizadas na sociedade, sem as situações muitas vezes traumáticas que o realojamento em outras áreas, tantas vezes afastadas do local de residência, propicia”.

Sobre “as soluções posteriormente utilizadas”, lembra que “também erradicaram as barracas, mas não a marginalização”. “Melhoraram o alojamento, mas transferindo, muitas vezes, o problema de um município para outro, desenraizando as comunidades e agravando, não raras vezes, a sua capacidade de sobrevivência”, diz o antigo diretor nacional do SAAL, para quem não só o direito à habitação, mas também o direito ao lugar, à cidade e à participação foram a grande revolução do programa.

“Note que alguns dos bairros de barracas se situavam em terrenos muito apetecíveis à especulação imobiliária, mas, sempre que possível, procurou garantir-se o direito ao lugar, com legislação de expropriações específica. A metodologia de abordagem do projeto com participação ativa dos moradores, para além obviamente da comparticipação, a fundo perdido, do Estado nos custos envolvidos, foram os pilares do projeto”.

E terão determinado o seu fim.

Mudam-se os tempos, mudam-se mesmo as vontades

cartaz SAAL
Cartaz SAAL Nº954 | Pasta24 | Fundo A. Alves Costa | Coleções CD25A-UC

O primeiro ano do SAAL correu a um ritmo alucinante. O povo estava em luta. O processo revolucionário estava em curso. Operações iniciavam-se em todo o país e, claro, em Lisboa. Casas e terrenos devolutos eram ocupados.

A 14 de abril de 1975, sai um decreto-lei assinado pelo primeiro-ministro Vasco Gonçalves, com vista a legalizar as ocupações, quando estas decorressem “da satisfação de necessidades urgentes e atendíveis de estratos extremamente desfavorecidos da população” e não se verificassem abusivas, “já que enquanto houver pessoas sem casa não é admissível que existam casas sem pessoas”.

Assim, estipula-se no número 1, do artº 1º do citado decreto-lei que “as ocupações de fogos devolutos levadas a efeito para fins habitacionais, antes da entrada em vigor deste diploma, em prédios pertencentes a entidade públicas ou privadas, serão imediatamente legalizadas através da celebração de contrato de arrendamento”.

Tratava-se, portanto, não de uma cedência de propriedade, como parece ter ficado para a história, mas sim de encontrar soluções para o grave e reconhecido problema habitacional, a bem de todas as partes. Um diploma que prevê uma série de exceções e que procura controlar as ocupações, deixando claro não só o respeito pela propriedade privada como a preocupação em refrear os chamados excessos da revolução.

A mesma preocupação se verificou no SAAL, com a nomeação de militares para o dirigirem, organizarem e tornarem eficaz. O que aconteceu. Mas depois também aconteceu o 25 de novembro de 1975, que foi o primeiro balde de água fria no programa.

Manifestação SAAL
Manifestação na Praça do Município, em Lisboa de associações de moradores pelo direito a casas. Foto: Albano Pereira, José Carlos Pereira e Rui Martins | Equipa SAAL da Portela/Outurela, em Carnaxide.

“Há um ritmo crescente de setembro de 1974 até novembro de 1975, que depois começa lentamente a abrandar até outubro de 1976, quando para, com o despacho que passa a sua gestão para as câmaras municipais. São milhares de pessoas na cidade de Lisboa que viram o processo amputado em outubro de 1976. Quando a coisa estava em ebulição, o sonho acaba”, diz o arquiteto Ricardo Santos, que vê este desfecho como infeliz e decorrente de uma opção política e ideológica.

“O arquiteto Alexandre Alves Costa, do SAAL/Norte, costuma dizer que o processo foi casa a casa, rua a rua, bairro a bairro, ia-se resolvendo do particular para o geral, mas quando se chega à ideia de cidade já se está a mexer com muita coisa, digo eu. Há uma pressão sobre a cidade das populações auto-organizadas, que contraria interesses imobiliários maiores, por um lado, e por outro há uma ideia de poder popular e democracia direta que contraria a ideia de democracia representativa que se quer construir”.

A opção política e ideológica marcou a cidade e continua a marcar, 47 anos depois.

Por um lado, no estímulo à especulação imobiliária que resultou da promoção da habitação privada e do endividamento à banca. Uma ideia que, diz o arquiteto, “nos foi vendida e nós comprámos ao longo dos anos 1980 e 90, esquecendo o Estado, com isto, o artigo 65º da Constituição da República, que consagra o direito à habitação e que pressupõe como um dos pilares do Estado Social a habitação pública – nós somos um dos países europeus com menor percentagem de habitação pública disponível”.

E, por outro lado, mantendo à margem, nas costas da cidade, aqueles que tiveram de acordar do sonho e esperar décadas pelo realojamento, no âmbito de programas de cima para baixo, em que não são tidas nem achadas.

“Se hoje sobrepusermos à planta do SAAL em Lisboa a planta dos BIP/ZIP [Bairros e Zonas de Intervenção Prioritária de Lisboa] percebemos que a muitos destes lugares ainda hoje não chegou a cidade consolidada”, considera Ricardo Santos, “o estado continua a ter programas assistencialistas para estas populações, ou seja, o centro da cidade consolidada não se alargou verdadeiramente”, diz o arquiteto.

Curraleira SAAL
Operação SAAL, na Curraleira Foto: Nº05343 Fundo Nuno Portas | Coleções CD25A-UC

“Se, por exemplo, formos às Olaias ou à Curraleira, operações SAAL que ficaram a meio, ou ao Casal Ventoso, que não chegou a obra, ou à Boavista ou ao Casal do Pinto, que tinham pedidos de intervenção que não tiveram resposta, sente-se a diferença. A cidade fala connosco, as casas não estão bem, o bairro não está bem, há coisas que não chegaram lá, e nós sabemos que estamos a sair de uma cidade e a entrar noutra e há uma coisa que estranho, como arquiteto, que é a nostalgia que muitos dos moradores destes bairros têm em relação ao tempo das barracas”.

Uma nostalgia que Fernando Bagulho também encontrou nos moradores antigos do Bairro da Liberdade anterior ao SAAL. Contavam que as casas eram tão quentes no verão e tão mal ventiladas, que todos levavam os colchões para dormir na rua passando lençóis de janela a janela da frente nas ruas de 2 m de largura, que molhavam para resfriar. Conta quem foi criança nesse tempo que essas foram as melhores noites de festa de toda a sua vida, com toda gente do bairro a dormir na rua.

Como poderia o SAAL ajudar a resolver a crise da habitação atual?

Bairro de lata
Em abril de 1974, eram muitos os milhares de pessoas que viviam em bairros de lata em Lisboa, sem água, eletricidade ou saneamento básico. Foto: Espólio José Norberto

“Há mais poesia e qualidade de vida de bairro na Cova da Moura, com todos os seus defeitos e fragilidades, do que num condomínio fechado, o que prova que o dinheiro, fazendo falta, não resolve tudo, e as soluções têm de integrar as pessoas desde a génese da transformação e contar com o trabalho do arquiteto, ofício que sendo obrigado a escutar transversalmente toda a sociedade, do pedreiro ao detentor do capital, está naturalmente armado para trabalhar com todos”, diz o arquiteto Fernando Bagulho, para quem o paternalismo, por mais bem-intencionado que seja, nunca será bom conselheiro.

“Dizer qualquer coisa do tipo ‘deixem-se estar quietos que eu sei exatamente aquilo que deve ser feito e que vos faz falta’ não permite atingir resultados adequados, interessantes e duradouros, como os que se revelam em situações de participação ativa das populações. Operações houve, de natureza mais estatizante e menos participada em que, independentemente da qualidade intrínseca das soluções arquitetónicas, não se conseguiu evitar o abandono e posterior desolação do lugar.”

É esse o grande ensinamento que o coronel Batista Alves pensa que se pode retirar do SAAL, até para resolver os problemas atuais da habitação. “Considerar a habitação apenas como uma mercadoria e resolver o problema do acesso das classes mais desfavorecidas com alojamentos sociais nos subúrbios resulta no que temos hoje. Ora, o direito à habitação é um direito constitucional fundamental e é também uma das conquistas de Abril que é preciso cumprir e fazer cumprir”.

Para o fazer, vale a pena revisitar o SAAL, concorda o arquiteto Ricardo Santos: recuperar o envolvimento das populações, a participação ativa dos cidadãos na definição das medidas e das políticas, o espírito cooperativo e a ideia de que, se nos organizarmos, conseguimos mobilizar financiamento e apoio técnico e recuperar a luta, que era a luta do SAAL, pelo direito ao lugar, à casa, à cidade.


Catarina Pires

É jornalista e mãe do João e da Rita. Nasceu há 49 anos, no Chiado, no Hospital Ordem Terceira, e considera uma injustiça que os pais a tenham arrancado daquele que, tem a certeza, é o seu território, para a criarem em Paço de Arcos, terra que, a bem da verdade, adora, sobretudo por causa do rio a chegar ao mar mesmo à porta de casa. Aos 30, a injustiça foi temporariamente corrigida – viveu no Bairro Alto –, mas a vida – e os preços das casas – levaram-na de novo, desta vez para a outra margem. De Almada, sempre uma nesga de Lisboa, o vértice central (se é que tal coisa existe) do seu triângulo afetivo-geográfico.


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