Foto: Orlando Almeida

Há quem ande nas Avenidas Novas com lembranças do que elas um dia foram. Foi pensando nessas pessoas que o programa Memória Para Todos, fundado pela professora Maria Fernanda Rollo, do pólo História, Territórios e Comunidades da NOVA FCSH, chegou à freguesia. O programa começou no ano de 2009 e, desde então, articula investigações no campo da memória e do património a nível nacional. Os investigadores envolvidos colecionam relatos, fotografias e documentos de cidadãos dispostos a partilhar suas histórias de vida para criar um amplo arquivo de valor tanto sentimental, como científico.

No contexto desta empreitada, surgiu, em 2014, o projeto Memórias das Avenidas, dedicado somente às Avenidas Novas. Assim como nos demais projetos do Memória Para Todos, os investigadores recolhem lembranças de cidadãos que têm uma forte relação com o espaço estudado. O projeto aposta na metodologia da história oral, uma abordagem que, até há pouco tempo, era desvalorizada dentro da comunidade científica por ser considerada pouco exata.

Apesar dos desafios, o Memórias das Avenidas escolhe apostar na história oral, usando entrevistas para levantar dados. Esse cenário exige da equipa uma bagagem metodológica extensa e crítica, aliada a muito planeamento e preparação.

Apesar das dificuldades ligadas ao processo de fixação da memória, à componente emotiva e à idade avançada de alguns dos interlocutores, a oralidade apresenta vantagens insuperáveis, “afeto, contato, emoção, sorriso e olhares”, explica a professora Maria Fernanda Rollo. 

Fotografias do álbum de família de Heloísa Cid, uma das participantes do projeto. Estão retratados o Parque Eduardo VII e a Avenida da Liberdade que ela conheceu na infância. Foto: Orlando Almeida

O diálogo acontece num compromisso entre a recolha sistemática científica e uma conversa genuína. Depois, as memórias contadas são cruzadas com documentações primárias e arquivos oficiais e é aí que tudo se encaixa como um quebra-cabeça. “Se há uma coisa que aprendi com esse projeto é que de facto a História pode ser muito enriquecida por fontes não tradicionais”, afirma Maria Inês Queiroz, investigadora do pólo História, Territórios e Comunidades da NOVA FCSH, que participa do Memória das Avenidas desde o seu surgimento. 

Nesse processo, já foram realizadas cerca de 50 entrevistas e recolhidos mais 200 objetos partilhados. Todo o material reunido está disponível em um extenso arquivo digital, no qual o conteúdo está livre para ser apropriado pelos mais diversos setores da sociedade. Desde artistas em busca de inspiração, até neurocientistas que estudam o impacto do programa no combate às doenças da memória.

O material está ao serviço de qualquer um que tenha um olhar atento e criativo. Entre os materiais disponíveis online é possível ouvir o relato da professora Miriam Halpern Pereira sobre as tertúlias intelectuais no Café Bocage, por exemplo. Ou assistir à senhora Ivone Cunha, que narra o cenário caótico do Reviralhismo em 1928, no qual Lisboa viveu marcada por barricadas e revoltas oposicionistas à ditadura. 

Os Maiores das Avenidas

Todos estes resultados foram conquistados com a ajuda do grupo Maiores das Avenidas, “os mais velhos, os mais fixes e os mais importantes”, segundo a professora Maria Fernanda Rollo. O grupo é composto por representantes das associações de moradores, vizinhos e voluntários entusiasmados que constroem pontes entre os investigadores e a comunidade, num exercício autêntico de ciência cidadã. Essa rede de colaboradores é essencial para que sejam criados laços de confiança entre os entrevistados e os investigadores, a fim de facilitar a recolha de memórias.

A ideia é criar uma rede de contactos com pessoas com relações fortes com a zona e podem contribuir com suas memórias para a criação de um arquivo histórico e patrimonial. Uma peça-chave para concretizar esse objetivo foi a integrante da comissão de moradores do Bairro Azul, Ana Alves de Sousa, que mora na zona há mais de 50 anos. Ela ajudou os investigadores do Memórias das Avenidas a chegar a moradores e comerciantes que poderiam partilhar valiosos testemunhos. “A desconfiança inicial de alguns, deu lugar ao orgulho”, garante Ana Alves de Sousa que acredita que todos que participam do projeto guardam ainda mais uma “lembrança feliz” com eles.

Heloísa Cid na casa em que cresceu no Bairro Azul. Foto: Orlando Almeida

O senso de comunidade e pertença também é fortalecido dentro do projeto. Antes da pandemia, eram promovidas com frequência reuniões entre os vizinhos à volta da partilha de memórias. A “maior” Heloísa Cid nasceu em 1951 nas Avenidas Novas e se define como alguém que “resulta do somatório da passagem do tempo”. Ela relata que quando se encontram todos os maiores se tornam “gralhazinhas eufóricas” trocando e descobrindo lembranças partilhadas com pessoas que, até então, eram perfeitas desconhecidas.

Talvez uma das memórias de infância mais curiosas divididas por esses idosos seja a venda de perus nas vésperas do Natal na Sá da Bandeira. Naquele período, os produtos chegavam até Lisboa frescos, em carroças ou nas canastras de peixeira.

“As cozinhas eram laboratórios permanentes”, narra Heloísa Cid, e o peru de Natal era o elemento mais aguardado e especial do ano. Ia-se à rua e escolhia-se o peru ainda vivo para então levá-lo para casa. Chegando lá a ave era embebedada, abatida, colocada em salmoura com rodelas de limão e laranja e, então, recheada.

Esse processo tão metódico e prolongado parece impossível hoje, mas marcou a vida de muitos dos que ainda caminham pelas Avenidas Novas.

Uma História sem fim

Ver os seus testemunhos valorizados, expostos no ecrã, empodera os “maiores” que participam do projeto. É muitas vezes neste momento que eles se apercebem que o seu percurso de vida teve — ainda tem — uma importância a nível coletivo, que eles são parte da História com H maiúsculo. Um dos resultados mais notáveis do Memórias das Avenidas nesse sentido aconteceu em 2017, na Avenida Duque de Ávila.

Na ocasião, foi promovida uma exposição apoiada pela CML para celebrar a requalificação do espaço público em torno da Praça do Saldanha. Nela foram expostas fotografias históricas em preto e branco, unidas a trechos de testemunhos orais recolhidos. Assim, os transeuntes passavam pela cidade e esbarravam com o passado pelo caminho.

Heloísa Cid com suas memórias. Foto: Orlando Almeida

A própria Heloísa Cid aproveitou esse evento para levar seus netos, Lucas e Pedro, que na época tinham respetivamente cinco e três anos, para verem a história da família exposta em via pública. “Talvez a participação no projeto tenha me dado a oportunidade única de fazer uma ponte com meus netos e mostrar a eles que a avó algum dia também foi pequenina.”, afirma. A ideia de Heloísa era que os netos também se sentissem como parte de uma continuidade, de algo maior do que eles mesmos, afinal “os meninos não nasceram das ervas!”, brinca. Esta componente intergeracional é essencial para que o projeto cumpra um papel social, para além de científico.

É nesse encontro de pessoas e conhecimentos que o Memórias das Avenidas comprova que a ciência também é feita para além dos muros da academia. Ir ao território, vivenciar o local de estudo, acaba por ser essencial para quem é cientista, mas acima de tudo cidadão. Para a investigadora Maria Inês Queiroz, “é nas Avenidas Novas que está o coração da cidade”. Cabe às multidões correrem pelas suas veias abertas, sentindo seus batimentos ritmados e criando memórias futuras para quem um dia as quiser ouvir.

*O projeto Memória das Avenidas integra o programa Memória para Todos de História, Territórios e Comunidades – CFE NOVA FCSH desenvolvido pelos investigadores Maria Fernanda Rollo, Maria Inês Queiroz, Filipe Silva, Inês Castaño, Luísa Seixas e Sofia Diniz.

*Ana Hermeto Kubrusly é estudante de jornalismo na NOVA-FCSH e está a estagiar na Mensagem ao abrigo do projeto Correspondentes de Bairro. Este texto foi editado por Catarina Carvalho

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4 Comentários

  1. Excelente projecto! Que se propague e abranja toda a cidade! Que se guardem as memórias de uma cidade magnífica, genuína, viva, com um rosto próprio!
    Antes que estejamos limitados a uma lisboa (não é gralha, o “l” passou a minúsculo por demérito próprio) de pechisbeque.

  2. Excelente iniciativa. Até porque, com a renovação e a terceirização que está a sofrer, tudo isto está em risco de se perder para sempre.

  3. Bom dia. Estou interessada em saber em que ano (1956? 1957?…) desfilou nas marchas populares de Lisboa a Marcha das Avenidas Novas, creio até que pela primeira vez, em que os marchantes desfilaram montados em vespas, provocando alguma celeuma. Muito obrigada.

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