Há dias em que são 17 à mesa. Mas ora carne, ora peixe, entre sete filhos e 14 netos há pouco quem resmungue da comida de Ana Cristina, 76 anos, a quem reconhecem talento sobretudo para o arroz de cabidela. “Quando é que o fazes outra vez?”, pergunta o vizinho Manuel. Os dotes culinários são reconhecidos por todo o “bairro branco” (formalmente designado Carlos Botelho), mas foi num terreno baldio mesmo ali ao lado que a antiga cozinheira os apurou.

“Ali mesmo”, aponta para um lugar de dez hectares, onde hoje só jaz uma árvore solitária. Um vale vazio, uma espécie de ilha ao abandono no meio de várias habitações sociais.

Ana Cristina foi uma das primeiras moradoras do Casal do Pinto a ser realojada. Foto: Inês Leote

O terreno chegou a ser a morada de um bairro inteiro, o velho Casal do Pinto, então coberto de habitações de autoconstrução e extinto no início do milénio na freguesia do Beato. Uma área hoje delimitada a norte pela Calçada da Picheleira, a nascente pela linha do comboio, a sul pelas ruas Frederico Perry Vidal e Carlos Botelho e a poente pela Rua Capitão Roby.

É de onde Ana Cristina vem.

E onde começam agora a surgir novamente barracas, habitação de autoconstrução. É como se víssemos Lisboa a retroceder até àqueles dias em que a pobreza se media pelas placas de zinco e de madeira que cobriam os tetos de milhares de casas, e os trouxesse de volta para um terreno que aguardou estes anos todos por ver concretizadas as promessas de um novo recomeço.

Desde que Ana Cristina viu da janela da nova casa os bulldozers abaterem o seu bairro, ali só voltaram a nascer ervas selvagens – não casas, nem comércio, nem mesmo o tão aguardado campo de futebol. E com os velhos moradores distribuídos pelos vários bairros sociais em redor deste vazio, como é o “bairro branco”, este terreno virou uma ilha sem futuro.

O velho Casal do Pinto é um terreno ao abandono no meio e vários bairros sociais. Foto: Inês Leote

E não é que o futuro não esteja desenhado. Ao longo de vários anos, a autarquia foi construindo aquele que viria a ser o Plano de Pormenor do terreno do Casal do Pinto – o documento que traça o novo rosto do espaço -, aprovado em 2018 com Fernando Medina na Câmara Municipal de Lisboa.

Mas nada aconteceu.

Até que, mais recentemente, o nome deste velho bairro voltou à baila. Foi no final do mês passado, quando a vereadora Filipa Roseta apresentou a Carta Municipal de Habitação: um plano de ação a dez anos para combater a atual crise habitacional em Lisboa, aliada às medidas nacionais.

No plano de ação da Câmara Municipal de Lisboa, o Casal do Pinto está identificado entre os mais de 36 “habitats de requalificação prioritária”, zonas consideradas degradadas na cidade. O nome do bairro surge como parte integrante de um objetivo maior: o de “regenerar a cidade esquecida” – que a vereadora justificou como”esquecida para o orçamento”, no debate sobre os 30 anos do PER, moderado pela Mensagem no final de fevereiro.

A autarquia conta com 400 milhões de euros do Plano de Recuperação e Resiliência (PRR) destinado ao investimento em habitação e Filipa Roseta garante que esse dinheiro será aplicado nestas zonas degradadas: umas das primeiras intervenções deverá ser no Casal do Pinto (para onde já estarão alocados dez milhões de euros) e a última em Campo de Ourique.

Segundo a CML há 21 384 habitações em bairros sociais e, só no Beato, mais de 90 núcleos precários, entre as mais de duas mil famílias consideradas em condições habitacionais indignas.

Velha promessa, velhos medos ou nova esperança

Mas os planos para este terreno são antigos e nunca passaram do papel. E se por um lado fazem os moradores do bairro Carlos Botelho sonhar, também reavivam velhos medos.

A história é a do costume por aqui. “Cada vez que muda o executivo, as coisas são outras. O que eu vejo nestes bairros é um abandono completo da CML e da Junta de Freguesia.” É o que vê e ouve há anos João Paulo Mota, 56 anos. Pelo menos desde que se mudou para o “bairro branco”, vindo da Curraleira. Ele que escolheu estar do lado de quem luta por dar melhores condições de vida aos vizinhos e é hoje vice-presidente da Associação Viver Melhor no Beato.

João Paulo Mota, Tarian, é vice-presidente da Associação Viver Melhor no Beato. Foto: Inês Leote

“A promessa que nos é feita há anos é que vão crescer aqui uns condomínios, com uns fogos, mas nada de exorbitante, porque o que nos dizem também é que se tornaria incontrolável tanto para a CML como para a PSP”, conta.

Estamos a falar de mais bairros sociais? “É o caminho que eu estou a ver a ser seguido novamente e, para mim, é grave que assim seja.” Como uma extensão do problema que já existe nos vários bairros sociais que circundam o terreno baldio, desde Chelas ao Carlos Botelho.

“Como é que se vai investir milhões onde há edifícios com meia dúzia de anos e neste estado?” Fala dos azulejos exteriores caídos no chão, das fissuras que acompanham todo o comprimento dos prédios e, lá dentro, inundações e pisos de cimento.

O “bairro branco” tornou-se um lugar realmente “esquecido”, para onde “os turistas só vêm por engano”. 

Por isso é que as notícias da CML também trazem esperança: “Se pusessem aqui outro tipo de habitação, não um bairro social, já tinham de olhar para isto de outra maneira. Aí podia ser a nossa salvação. Porque ninguém vai comprar aqui um apartamento de meio milhão com um bairro social todo degradado à porta. Tu vês o que aconteceu na Alta de Lisboa, foi assim.”

O velho Casal do Pinto aparece entre os planos da CML para mais habitação na cidade. Foto: Inês Leote

Questionada pela Mensagem, na apresentação da Carta Municipal da Habitação, sobre qual o caminho a seguir na tipologia da habitação para o novo Casal do Pinto, a vereadora Filipa Roseta disse ser “cedo demais” para fechar o debate.

Mas um documento assinado pela equipa de arquitetos contratada pela autarquia liderada por Fernando Medina (PS) em 2018, que estabelecia o “Relatório de Caracterização e Fundamentação do Plano de Pormenor do Casal do Pinto” deixava a dúvida no ar:

“A nova habitação proposta pelo plano, acompanhada pontualmente por usos complementares como serviços e comércio, tem como objetivo completar o tecido urbano pré-existente”.

Estaria também prevista a promoção da “reabilitação do edificado existente e regras de salvaguarda de eventual património arqueológico”.

Um buraco no teto

João Paulo também é conhecido como “Tarian”. Quando era miúdo, “no tempo das barracas”, da velha Curraleira, em que “os pais tinham escolaridade zero” e vinham de famílias “extremamente pobres”, as maneiras de educar eram outras.

“O meu pai tinha de me dar três tareias por dia. Então, quando fui para a escola, tornei-me um rebelde e, tão novo, precisei de psicólogos e psiquiatras. À minha frente ninguém se sentava porque eu andava à porrada com todos, em resposta ao que se passava em casa. E daí veio a alcunha ‘Tarian’”.

Foi no início dos anos 1980 que veio morar para o bairro Carlos Botelho, para uma habitação de Cooperativa. “Na altura, não existia nada, nem água nem luz. Os moradores é que tiveram de pôr tudo.”

Ainda o Casal do Pinto era bairro e não este vazio que vemos hoje. Um pedaço de terra que começa a ser ocupado no final dos anos 1950, num terreno que é público desde 1904, por habitações precárias de famílias vindas dos meios rurais de outras zonas do país.

Tarian conhecia o Casal do Pinto mais pela rivalidade com a sua Curraleira. Diz que antigamente “o nome do bairro tinha um certo peso onde se ia”. “E ai de quem tocasse em alguém do nosso bairro.”

No Casal do Pinto, havia casas de chapa, de madeira e outras já de tijolo, mas todas em regime de autoconstrução. Foto: Arquivo Municipal de Lisboa

Rivais, sim, mas até certo ponto. De vez em quando, João Paulo lá ia ao bailarico do Real Olímpico da Picheleira, o clube de bairro do qual Ana Cristina foi presidente. Ali, jogava-se futebol de salão e ténis de mesa. Se o ponto de encontro não era no clube, era nos bancos de rua e nos tanques do Casal do Pinto – a tradição ainda hoje viva de erguer piscinas domésticas à porta dos prédios dos bairros vem exatamente daqui, desta relação com a água nos dias de maior calor.

E às custas deste romance atribulado entre os dois bairros, “um do Casal do Pinto até se foi casar com a minha irmã”, conta João Paulo. Mas o que aproximou a Curraleira do Casal do Pinto começou por ser a droga: “uns vêm de lá para cá, outros vão de cá para lá”.

Aqui, neste bairro entretanto edificado, chamado Carlos Botelho, juntaram-se de vez. Num bairro que tem deixado saudades do tempo das barracas.

“Vim viver muito melhor quando vim para o Casal do Pinto. E até melhor do que agora – até porque a minha barraca era de cimento. É que agora o que mais tenho tido é inundações, numa casinha destas”, diz Ana Cristina, que se mudou para a casa atual em 2001.

Nasceu na Calçada do Carrascal (nas Olaias), diz, e foi viver para Xabregas, com os padrinhos, depois de ter perdido a mãe com nove anos. Já adulta e com sete filhos, veio ocupar uma barraca no Casal do Pinto, já construída por estes padrinhos, que entretanto emigraram. Eram quatro quartos, melhorados pelas suas próprias mãos.

“Queríamos casas, não queríamos barracas, mas não era isto. Havia de ser uma coisinha melhor, nós merecíamos melhor.” Foi ela quem teve de consertar o piso que acabou todo por levantar em casa, ficando a pisar cimento, e conta que está há 13 anos há espera que lhe arranjem os canos na casa de banho. Cristina aponta para uma mancha de cinzentos e amarelos na parede que anunciam as condições precárias que tem em casa.

A história repete-se pelos vários lotes do bairro, onde Manuel Almeida, 78 anos, teme pela saúde da mulher Lúcia.

Veio das “barracas da Curraleira”, tal como Tarian, onde tinha construído uma casa com a mulher e já vários filhos nos braços, todos vindos de Moçambique, “porque a política lá não estava boa”. Agora, com paredes de betão, fala de um buraco na parede do quarto do seu 5.º andar, consertado como dá, pelo filho, e desde 2017 está à espera de uma resposta da Gebalis. Lúcia é asmática e é sobretudo por isso que Manuel teme as poucas condições de habitabilidade. “Fico doente quando chega o tempo do frio”, desabafa a mulher.

Manuel teme pela saúde da mulher, por não ter condições em casa. Foto: Inês Leote

“Para resolver as condições de habitação, demoram o que for preciso. Mas se este senhor deixa de pagar a renda, são muito rápidos a enviar uma carta de despejo”. Tarian sabe que grande parte das lutas dos seus vizinhos são inglórias.

E a dinâmica do bairro mostra-o, neste lugar onde uma grande parte das casas estão ocupadas ilegalmente. Quando podem, as famílias vão saindo à procura uma melhor vida noutro lugar, uma morada menos esquecida, menos isolada e com mais condições. No lugar deles, as casas vazias tornam-se casas de outros.

Este bairro é como o buraco no teto do quarto de Manuel, remediado internamente, pelos seus moradores, à espera de ajuda externa.

Como poderá ser o novo Casal do Pinto?

Para falarmos da saga de planos e promessas para o Casal do Pinto, temos de recuar a 2009, ano em que Manuel Salgado, então vereador com o pelouro do Urbanismo e Planeamento Estratégico na CML, aprova a elaboração do Plano de Pormenor para o Casal do Pinto.

Um plano que deveria estar concluído “num prazo de 270 dias”, por se tratar de uma zona “fragmentada por terreno expectante, desqualificada pela escassez de espaços públicos e áreas verdes, excluída do tecido urbano por uma rede viária de difícil compreensão”, e com o objetivo de “atribuição às cooperação de habitação do estipulado nos compromissos assumidos”.

Só nove anos depois, em 2018, o esboço do futuro deste terreno seria aprovado em Assembleia Municipal, dando origem a este mapa:

Mapa do Plano de Pormenor do Casal do Pinto. Fonte: CML

Em 2016, foi colocado para aprovação o modelo urbano do Casal do Pinto. “Nos termos do contrato então celebrado, foi apresentada proposta preliminar do plano, a qual, após avaliação efetuada pelos Serviços Municipais, veio a ser reformulada para garantir a sua viabilidade económica, através do aumento da edificabilidade – aumento de um piso nos edifícios novos na praça e a construção de uma cave, de modo a libertar os pisos térreos desses edifícios para localização de comércio e serviços”, lia-se.

Esperava-se construir naquele terreno lotes “de pequenas dimensões” (sem definir quantos exatamente), quarteirões “com amplo logradouro interior permeável”, “a cércea baixa com rés-do-chão mais dois pisos, as tipologias sem pisos enterrados, os passeios largos e arborizados, um sistema equilibrado de percursos pedonais, cicláveis e de tráfego automóvel lento, o estacionamento ao longo das vias principais e um aproveitamento otimizado da amplitude visual com a paisagem de vale e de rio”.

Parecia a cidade do futuro. Com uma ressalva para quem a executasse: “a intervenção ou a relação com os edifícios pré-existentes deverá ser cuidadosamente estudada e calibrada”.

A maquete relativa ao Plano de Pormenor. Foto: José Adrião e Pedro Pacheco Arquitetos

Além das habitações, propunha-se construir uma Praça da Picheleira, que serviria de “lugar de centralidade que permita convergir as principais atividades de caráter coletivo do bairro”. E, “na envolvente à praça”, um conjunto de “equipamentos públicos, complementares entre si, importantes para dar resposta a necessidades do bairro: creche, centro de dia e lar de idosos”. Além de comércio nos edifícios habitacionais, um miradouro e anfiteatro, um parque com hortas e até um novo recinto desportivo. O plano foi assinado pela empresa José Adrião e Pedro Pacheco Arquitetos.

A creche idealizada para ali já está construída, mas há um ano que espera por receber crianças. “Como é que se cria uma coisa para pôr crianças aqui? Olhas à tua volta e pensas: é aqui que vou pôr o meu filho?”, diz Tarian. Aponta para um lugar onde circulam seringas, navalhas, habitações improvisadas em carros estacionados no parque de estacionamento ali criado e barracas que começam a ser construídas, naquele que também é o único caminho para a escola dos jovens do bairro.

Sobre a creche ou o que mais nascerá nesta ilha verde ao abandono, mais nada se sabe. Para os moradores do Carlos Botelho, habituados à espera, não é óbvio que o Plano de Pormenor saia finalmente do papel e muito menos que venha resolver a vinda da droga e das barracas para o bairro.

Mas, quando no início de 2018, se deu a abertura do período de discussão pública do Plano de Pormenor do Casal do Pinto, o documento final deixava um alerta:

“A zona do Casal do Pinto passou a ser associada a uma imagem de marginalidade que deteriorou e contaminou negativamente as áreas envolventes. A descontinuidade do tecido urbano entre a malha do Bairro da Picheleira e as novas edificações destinadas a habitação social acentuou a fragmentação urbana que o Plano de Pormenor do Casal do Pinto deverá resolver”.

Foto: Inês Leote

Catarina Reis

Nascida no Porto, Valongo, em 1995, foi adotada por Lisboa para estagiar no jornal Público. Um ano depois, entrou na redação do Diário de Notícias, onde escreveu sobretudo na área da Educação, na qual encheu o papel e o site de notícias todos os dias. No DN, investigou sobre o antigo Casal Ventoso e valeu-lhe o Prémio Direitos Humanos & Integração da UNESCO, em 2020. Ajudou a fundar a Mensagem de Lisboa, onde é repórter e editora.

catarina.reis@amensagem.pt


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