Curcuma em pó e sementes de feno grego e cominho. A receita partilhada por entre cestos de shimejis, shiitakes e uma miríade de outros cogumelos brancos e em tons de castanho, a solução não para o molho de um caril de lentilhas, mas prescrita para a gastrite que chegara com os presentes e os exageros próprios da quadra natalícia.

“Uma colher de chá de feno grego, outra de cominho e meia de curcuma”, ensina Nitin Babubhai, ao revolver os molhos de coentro com as mãos calejadas. O perfume do tempero exala por entre as prateleiras do Anjani – o supermercado deste lisboeta nascido na Índia há 61 anos.

Nitin não é médico, curandeiro, xamã ou terapeuta holístico, mas isso não é impedimento para que o cliente deixe o seu estabelecimento, nos limites entre o Areeiro e o Campo Pequeno, com as respostas que procura, seja para a preparação de uma refeição ou para um mal que o aflija.

A confortável sensação de se conversar com um sábio e velho parente é o segredo do negócio de Nitin.

Um negócio pequeno e colorido como as preciosidades devem ser, plantado ali na avenida João XXI, ao pé da sede da Caixa Geral de Depósitos, e que mesmo sem a logística e a máquina de marketing dos gigantes supermercados vizinhos, resiste à concorrência do Continente e Pingo Doce logo ali na esquina. A razão? Em grande parte, graças à sabedoria de um comerciante que sempre viu na sua clientela a extensão de uma família.

“Cliente veio, pedia uma coisa, pedia outra. Não fui eu, foi cliente quem fez loja”

Nitin
Nitin Babubhai nasceu em Gujarat há 61 anos e vive em Lisboa desde 1989, onde comercializa alimentos e conselhos para o dia a dia. Foto: Rita Ansone.

“’Tá engripado, mano?”

Na árvore genealógica de Nitin, os parentes dividem-se em dois géneros, os “manos” e as “primas” e é assim que passa os dias, atento aos passos dos manos e das primas por entre as prateleiras, de onde costuma aparecer do nada, sempre com uma sugestão: ora o sabor do arroz com manga tailandês, ora os benefícios do masala chai com leite de coco.

Sem esquecer as suas valiosas prescrições, claro.

“’Tá engripado, mano?”, pergunta a um rapaz que entra apressado no Anjani. Traz um misto de tosse e pigarro captado pela audição invejável do indiano. “Toma gengibre, mano, toma!”, oferece, esticando o pequeno saco azul com as fatias verdes de gengibre para serem consumidas como um exótico rebuçado.

O cliente não resiste à receita e Nitin parece satisfeito por mais uma vez servir bem a quem entra no seu supermercado. “Se ficar melhor, depois volta para pagar a consulta”, diz o sagaz indiano, abrindo o sorriso, enquanto o jovem desaparece por entre os caixotes repletos com especiarias, ruminando o gengibre.

Uma mulher sai com as compras no saco do supermercado Anjani: a opinião dos clientes moldou a escolha dos produtos. Foto: Rita Anosone.

Uma “vida dura” entre o Gujarate e o Areeiro

Nitin chegou a Portugal em 1989, vindo de Gujarate, “mesma região de primeiro-ministro de Índia”, como faz questão de ressaltar, citando o conterrâneo mais famoso, Narendra Modi, chefe de governo indiano.

Veio como turista, gostou do que viu e decidiu não mais voltar ao seu país.

“Na mesma altura, saiu lei para regularizar imigrantes e aproveitei”, conta, dispensando os artigos nas frases, o que lhe concede a curiosa dicção de um mestre oriental dos filmes da televisão. Uma espécie de Yoda para os jedis mais novos, ou ainda, para os telespectadores de gerações mais antigas, a oitava face do Dr. Lao.

Durante 25 anos, Nitin dedicou-se “a fazer feira”, dividindo-se entre o norte e o centro de Portugal, com uma residência em Viseu e outra em Lisboa. “Passava três dias lá e quatro aqui. Vida foi dura, mano, vida foi dura”, recorda-se, sobre as idas e vindas, enquanto socorre uma prima indecisa sobre o ingrediente para o curry de frango.

“Esse, mais picante”, alerta, apontando para o frasco da esquerda. A prima agradece.

Foi em 2014 que surgiu a oportunidade para Nitin se fixar definitivamente em Lisboa, quando o atual espaço onde funciona o Anjani ficou vago. “O antigo negócio entrou em falência. Tinha dois filhos, já queria ficar parado num sítio e foi o momento”, recorda. 

Para que os dois filhos estudassem, Nitin contratou outro par de funcionários e hoje os rapazes estão a acabar os cursos de Gestão e Engenharia Mecânica.

Desde então, Nitin administra o Anjani – nome do estabelecimento dedicado à mítica deusa hindu, mãe de Hanuman, o deus-macaco – um negócio literalmente familiar, não só por contar com a ajuda dos filhos, mas pela disposição em acolher os vizinhos na grande família em que o supermercado se tornou em poucos anos.

“Cliente é minha família e loja é de cliente, mano”, garante Nitin, auxiliando um mano de idade avançada a alcançar um pacote de piriripi numa prateleira mais alta. “Cliente veio, pedia uma coisa, pedia outra. Não fui eu, foi cliente quem fez loja”, reconhece.

Para que os dois filhos estudassem, Nitin contratou outro par de funcionários e hoje os rapazes estão a acabar os cursos de Gestão e Engenharia Mecânica. Mesmo assim, não deixam de ajudar o pai quando possível.

No dia da reportagem, era o futuro engenheiro quem calculava as despesas dos clientes na caixa do supermercado.

O indiano que aprendeu yoga em Lisboa

Uma cliente parece indecisa diante de uma lata de ghee. “É manteiga pura, prima, bom para saúde. Pode ver na internet”, sugere Nitin, apontando para o telemóvel da rapariga. “Hoje em dia, está tudo na internet”, reforça o indiano. “No meu tempo, não era assim, não tinha YouTube, era complicado. Aprendi tudo em DVD”, conta.

Ghee, a manteiga indiana que serve como base de cozinhados e para purificar o ambiente nas sessões de yoga no escritório. Foto: Rita Ansone.

Uma das coisas que aprendeu em DVD foi yoga, através de um disco oferecido por uma das cunhadas e, por ironia, o indiano conheceu a prática mais famosa do seu país apenas quando se mudou para Portugal. “O mundo está a mudar, mano. Em Índia, ninguém faz yoga. O povo lá esqueceu do passado”, reflete Nitin.

O indiano que apenas se tornou iogue em Portugal dedica-se a sessões diárias, realizadas no minúsculo e caótico escritório, por detrás da caixa do supermercado. É lá também que se permite a um momento de oração, exercitando o espírito e o corpo, enquanto a porção de ghee, que arde numa pequena taça incensa, purifica o ambiente.

Nitin demonstra orgulhosamente o resultado da prática diária de yoga contorcendo o abdómen, que visivelmente ondula sob o pullover. “Antes, tinha dores nas costas, articulações e quadris. Hoje, não sinto nada nas juntas”, testemunha, convidando em seguida para uma pequena demonstração em pleno supermercado.

Ele une as pontas dos dedos de cada uma das mãos e leva aos ombros. A prática consiste em girar os cotovelos, ora num sentido, ora noutro e ficamos assim, os dois, a rodar os braços entre as prateleiras durante cerca de dois minutos, com os demais clientes a circularem entre nós. “Bom para lubrificar omoplata”, garante.

“Nem sempre posso dar mesmo desconto do lado, mas cliente vem mesmo assim, até para me ajudar, dizem”

Nitin

Um dos clientes é o rapaz engripado, que pede licença para passar e Nitin reconhece na fala dele as vias respiratórias obstruídas. “Massagem no nariz”, recomenda, a comprimir e descomprimir com os indicadores a parte externa das próprias narinas. “Dez minutos assim”, insiste, pressionando as narinas. “É como a bomba de desentupir pia”, ilustra o mestre iogue.

O que não soube pelo DVD ou internet, Nitin aprendeu com a mãe, que ainda vive na Índia natal. Vez ou outra, recorre aos ensinamentos maternos através de uma chamada telefónica até Gujarate, aonde nunca mais voltou desde que veio a Portugal.

Pergunto se a mãe do comerciante é também mestre em yoga.

“Não”, responde, balançando negativamente a cabeça. “O que ela tem é muita idade.”

Variedade, preço e duas minis

Quinta-feira é dia de reposição do stock e dois funcionários da empresa fornecedora descarregam uma série de produtos da carrinha estacionada à porta do Anjani. O entra e sai de pacotes atrapalha a circulação na loja, mas não perturba o comerciante que, impassível, acompanha o tráfego intenso.

As prateleiras repletas de produtos: a variedade é uma das apostas do indiano para manter o cliente fiel. Foto: Rita Ansone.

Nitin sabe que a variedade é outro dos segredos do seu negócio. Além dos produtos indianos, o Anjani também se orgulha da oferta de alimentos de várias partes do mundo, não só dos vizinhos asiáticos da Índia, mas do México, Itália, França e Brasil. “A gente tem variedade, mano. O cliente encontra aqui o que não encontra ao lado.”

Para ele, é a certeza de encontrar os produtos que faz com que os manos e primas até paguem um pouco mais, em relação à concorrência. “Nem sempre posso dar mesmo desconto do lado, mas cliente vem mesmo assim, até para me ajudar, dizem”, garante, antes de revelar a fórmula para determinar o preço das mercadorias.

Nitin, diante da modesta entrada: sabedoria ancestral. Foto: Rita Ansone.

“Se cobro muito, cliente não compra, mano. Se cobro pouco, negócio não rende”, começa Nitin, sob o olhar atento do filho futuro engenheiro na caixa do supermercado. “Então, cobro no meio. Loja perde pouco, cliente perde pouco, todo mundo ganha, mano”, finaliza o indiano, simpatizante tanto do equilíbrio espiritual como contabilístico.

À prática de uma economia de base empírica estruturada séculos antes de se ouvir falar em Adam Smith, alia-se a certeza de que a dedicação ao trabalho é uma qualidade indispensável e Nitin não foge ao serviço: é um profissional incansável.

“Trabalho todos os dias, 365 dias do ano, 366 de quatro em quatro anos”, diz, enquanto oferece duas cervejas minis aos funcionários que finalizaram a descarga e agradecem num brinde imaginário. “Gosto de trabalhar. Trabalho com boa vontade. Só tiro férias de quando em quando. Mesmo assim, poucos dias”, confessa.

Nitin precisa voltar ao trabalho. Mas antes da partida, o misto de comerciante, guru e mestre de yoga do Areeiro reforça a prescrição do chá para as contrariedades gástricas da ceia natalícia. “Uma colher de chá de feno grego, outra de cominho e meia de curcuma, em jejum”, relembra, antes de uma última ressalva, pronunciada por entre um afável sorriso.

“E se funcionar, mano, não esqueça de voltar e pagar a consulta.”


Álvaro Filho

Jornalista e escritor brasileiro, 50 anos, há sete em Lisboa. Foi repórter, colunista e editor no Jornal do Commercio, correspondente da Folha de S. Paulo, comentador desportivo no SporTV e na rádio CBN, além de escrever para O Corvo e o Diário de Notícias. Cobriu Mundiais, Olimpíadas, eleições, protestos – num projeto de “mobile journalism” chamado Repórtatil – e, agora, chegou a vez de cobrir e, principalmente, descobrir Lisboa.

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1 Comentário

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