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Uma balança, um medidor de tensão, um bloco de notas. Pouco mais se encontra numa pequena sala transformada em consultório nos balneários de Alcântara. É aí que encontramos Leopoldina, de 89 anos, com o braço envolto na braçadeira do medidor de tensão. Ela que, primeiro, veio aqui ter por outras razões: pela primeira vez naquela semana, sentiu o embate da água quente, devolvendo-lhe a sensação de frescura que tenta improvisar em casa com água fria, a única que corre da sua torneira.

Acabou por não ser só o banho quente o que encontrou ali.

À frente, está Marta Matos, aluna de mestrado em Enfermagem Comunitária e Saúde Pública na Universidade Católica, que examina o resultado do medidor de tensão e deixa o veredito: “Olhe, dona Leopoldina, tem a tensão de uma jovem!”.

Aquilo que hoje as une, nesta sala cedida pela Junta de Freguesia de Alcântara, é o projeto Public Bathhouse Nursing, da Universidade Católica, que todas as quartas-feiras promove uma consulta de enfermagem neste balneário, conduzida por um professor e um aluno de mestrado ou doutoramento.

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No Balneário Público de Alcântara, a Universidade Católica presta consultas de enfermagem todas as semanas. Foto: Líbia Florentino

É uma consulta “sui generis“, diz a coordenadora deste projeto, Amélia Simões Figueiredo. É completamente livre, e tem um objetivo principal: ouvir a história da pessoa que ali se senta.

Leopoldina foi ouvida e sorri. “Eu cheguei tão triste aqui, agora saio tão contente…”, desabafa.

A consulta que começa logo na sala de espera

Esta é uma consulta onde aquilo que mais importa não é o peso ou a tensão, como diz a coordenadora. Aquilo que mais importa é escutar. “Muitas vezes, avaliar a tensão, pesar, são elementos de ligação, que fazem com que a pessoa ganhe uma primeira confiança para entrar…”.

Para entrar apenas. O resto flui sem indicadores.

“Aquilo que aqui temos muitas vezes é só capital humano: o enfermeiro, o professor de enfermagem e a pessoa do outro lado”, explica. “O que mais fazemos é isso mesmo: ouvir e valorizar a história da pessoa”.

E tantas vezes estas consultas vão para além do consultório. É nos espaços do balneário que elas acontecem verdadeiramente: nos bancos, quando os utentes se preparam para tomar o duche, ou no armário, onde escolhem roupa para vestir e levar para casa. É aí que as pessoas se abrem, partilhando os seus receios.

A Universidade que não esqueceu a comunidade

Instituir uma consulta de enfermagem foi a forma de a Universidade Católica pôr o conhecimento em prática, quando um estudo sobre os utilizadores dos balneários públicos de Lisboa viu a luz do dia.

A professora Amélia Simões Figueiredo explica a motivação por detrás do estudo:

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Amélia Simões Figueiredo é coordenadora do projeto Public Bathhouse Nursing. Foto: Líbia Florentino

“Foram os media. Inquietou-nos ver algumas reportagens deste mesmo balneário em alturas de frio, de crises económicas, mas essas reportagens eram uma coisa fugaz, depois não se ouvia falar mais nos balneários…”.

Os balneários de Lisboa começaram a ser construídos a partir de 1830 para servir uma grande população sem acesso a casa de banho.

Mas, anos depois, continuavam a servir muitos lisboetas, mesmo depois de as casas de banho se terem tornado numa comodidade básica das habitações. Quem eram estas pessoas, então? E porque recorriam a estes banhos?

Os casos são diversos: muita população em situação de sem-abrigo utiliza os balneários, mas também há quem não tenha água quente em casa – como é o caso da dona Leopoldina – ou que, por ser idoso, não consiga entrar numa banheira. Outros, por partilharem casa de banho com desconhecidos, procuram no balneário o direito à sua privacidade.

Os resultados, que incidiram sobre os balneários de Alcântara, de Arroios e de Santa Maria Maior, indicam que esta população é:

  • Maioritariamente masculina (78,6%);
  • Maioritariamente solteira (66,2);
  • Está, na sua maioria, em idade ativa (87,5%);
  • Muitos não têm rendimentos (57,2%);
  • Muitos não têm médico de família (51%);
  • Alguns apresentam patologias mentais (24,8%);
  • Alguns apresentam doenças vasculares (19,3%) ou infecciosas (15,9%);

Perante isto, só havia uma coisa a fazer: agir.

“A investigação da Universidade é uma investigação que tem de trazer mais valias aos outros: não é uma investigação só para consumo interno”, diz.

Os resultados do estudo, já aqui falados pela Mensagem, apontavam para uma evidência: faltam cuidados de saúde mental para os utilizadores dos balneários. E, por isso, a Universidade Católica abriu as “portas da universidade à comunidade”, para ceder o seu conhecimento à mudança na vida de quem dele precisa, com esta consulta semanal de enfermagem.

Marta foi uma das alunas que aceitou o desafio. É que este projeto é também um pretexto para pôr os alunos a trabalhar no terreno, claro. “Os nossos estudantes de mestrado, como é o caso da Marta, já são enfermeiros”, explica a professora Amélia. “Já dominam a comunicação complexa e a intervenção comunitária.”

Mas os de licenciatura não ficam de parte – são eles quem promove uma campanha de doação de roupa interior, chamada “Dignidade e Intimidade”, no Natal e na Páscoa. E são também quem organiza as praxes solidárias, angariando material como lâminas de barbear, escovas e pastas de dentes – elementos essenciais para quem procura um banho.

Ouvir é cuidar da saúde mental

Marta ajuda Leopoldina a apoiar-se na sua bengala. Cumprimenta e despede-se com a boa disposição que parece caracterizá-la. Ela, que veio da Beira Baixa para Lisboa estudar Enfermagem, descobriu-se no trabalho com a comunidade.

Foi a trabalhar em cirurgia que tudo despertou, ao aperceber-se de um defeito que ainda prevalece na sua área: “Os hospitais ainda estão muito focados na doença, mas ainda falta muito intervir nas questões da promoção da saúde e da comunidade”, na prevenção, no cuidado antes de a doença o ser. E este projeto permitiu-lhe ter um papel ativo nisso: provar a importância dos cuidados de enfermagem para a promoção da saúde (a saúde mental incluída).

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Marta Ramos auxilia dona Leopoldina. Foto: Líbia Florentino

De 2015 a 2019, estas consultas de enfermagem foram avaliadas e os resultados divulgados no estudo “Community Mental Health Nursing Consultation in a Public Bathhouse: A Spiritual Coping Resource”. Sabemos agora que se totalizaram 205 consultas, prestadas sobretudo a mulheres (63%), com uma idade média de 53 anos, e uma grande percentagem em situação de desemprego (40%).

E o que estudo concluiu é que, para os utilizadores do balneário que atravessavam situações difíceis, o recurso à espiritualidade, ligada à área da saúde mental, lhes permitiu desenvolver estratégias para resolver os seus problemas – esta questão de ouvir a pessoa, de a fazer sentir-se valorizada.

Numa só manhã, Marta não conheceu só Leopoldina, mas outras três mulheres, em situação de sem-abrigo. Foram histórias de vida que ela ouviu com a mesma atenção como prepara os dispositivos médicos para as auscultar. Este é outro tipo de cuidado, outro tipo de auscultação. “Uma das senhoras que cá veio nem se quis identificar, disse só que se chamava Maria, mas foi muito importante estar aqui a falar dos seus anseios”, acrescenta Amélia Simões Figueiredo.

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Os mais importante nestas consultas é escutar a história do paciente. Foto: Líbia Florentino

Não se trata apenas de ouvir. As consultas funcionam também como uma forma de encaminhar as pessoas para os serviços existentes. E muitos dos utilizadores do balneário estão já a ter esse acompanhamento: uns dormem em centros de abrigo, outros almoçam no Centro de Apoio Social dos Anjos. E há quem esteja agora sinalizado e a viver em quartos em residências.

“A cidade está muito organizada através do NPISA (Núcleo de Planeamento e Intervenção Sem-Abrigo) com respostas, que não são suficientes, claro, mas são alguma coisa”, diz a professora Amélia. “Nós somos um dos muitos pontos da cidade que faz a ligação entre os recursos”.

De corpo lavado, uma nova peça de roupa

Leopoldina sai revitalizada do balneário: não foi só o banho, nem a conversa, foram também os dois novos casacos que leva consigo para casa. “Tratam-me muito bem aqui”, diz ela.

E a professora Amélia lança o apelo para os outros balneários da cidade, que brevemente serão alvo de um estudo também dinamizado pela Universidade Católica, para se perceber que tipo de necessidades é preciso suprir:

“Se este tipo de iniciativas forem replicadas, alargadas, certamente que melhoramos a vida das pessoas”.


Ana da Cunha

Nasceu no Porto, há 26 anos, mas desde 2019 que faz do Alfa Pendular a sua casa. Em Lisboa, descobriu o amor às histórias, ouvindo-as e contando-as na Avenida de Berna, na Universidade Nova de Lisboa.

ana.cunha@amensagem.pt


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