Em Carnide, conta-se a história de como os parquímetros foram arrancados por moradores (com apoio da Junta de Freguesia) e, nos Olivais, de como alguns terão acabado também vandalizados. A EMEL está presente em grande parte da cidade de Lisboa, vista como entidade reguladora do caos que pode ser o estacionamento numa capital, mas isso não significa que tivesse sido bem recebida em todas as freguesias. Aliás, há pouco mais de um mês, naquele que foi o primeiro referendo local em Lisboa, a maioria dos moradores da freguesia de Benfica decidiram pelo “não” à entrada da EMEL numa das zonas não tarifadas.

Mas esta é uma discussão que divide lisboetas, entre o “sim”, o “não” e também o “mais ou menos”. No que toca à ação da EMEL, nada parece matemática simples.

Então, como foi recebida a ideia de estacionamento tarifado noutras zonas da cidade? E resolveu o problema do estacionamento desorganizado, abusivo e insuficiente?

Olivais: a “província” que virou parque de estacionamento

Partimos, então, dos Olivais. Entre esta e a freguesia de Benfica, levada a referendo, há muito em comum. Ambas foram construídas essencialmente entre os anos 1950 e 1970, o que faz com que os prédios não tenham muitas garagens. Para estacionarem as viaturas, os moradores dependem, quase exclusivamente, da via pública – organizada e planeada quando o uso do carro não era tão generalizado.

E, também aqui, os moradores não encontram consenso no que toca à entrada da EMEL. Mas, ao contrário de Benfica, a entidade já entrou na maior parte da freguesia dos Olivais em 2019.

EMEL? Talvez, mas não assim, dizem uns

O encontro estava marcado às 11h45, junto à estátua do antigo governador de Macau, numa das pontas da Alameda da Encarnação. Maria Augusta chegou antes da hora e já estava sentada num dos bancos de jardim. Pouco depois, chegou a filha, Patrícia, de mota. Apareceu Rui Pinto de Almeida e, quase ao mesmo tempo, Carlos Arnaut. Todos se cumprimentaram, como verdadeiros vizinhos que são. Fernando Amaral Silva chega, uns minutos depois, a fumar um cachimbo. Era o morador que vivia mais perto deste ponto de encontro.

Mas foi Rui quem deu início à conversa que trouxe todos ali: o velho – e aparentemente eterno – problema do estacionamento.

Rui tem 62 anos e foi o primeiro signatário da petição contra a divisão da freguesia em 12 zonas de tarifação. Foi ele quem convocou este grupo de moradores, seus companheiros na luta contra a divisão proposta pela EMEL na freguesia.

Este grupo de moradores conta como a proposta de divisão da EMEL na freguesia dos Olivais não os agrada. Foto: Ana Narciso

Começa por contar que, apesar de não viver no bairro, passava as férias ali, no único sítio com terra, galinhas e patos. “Vir aqui, para mim, era como vir à província.” E essa ruralidade não era por acaso: o bairro da Encarnação foi construído durante o regime do Estado Novo, numa tentativa de reconstituir a vida da aldeia na cidade. E o eixo orientador do bairro tem a igreja como elemento central.

Mas, hoje, a proximidade da freguesia ao aeroporto de Lisboa faz-se sentir na pressão do estacionamento. Com a privatização da ANA – Aeroportos de Portugal -, o estacionamento dos trabalhadores foi sendo, pouco a pouco, suprimido, obrigando-os a procurar soluções nas imediações do aeroporto. Ocuparam os lugares na via pública, que os moradores entendiam ser seus por estarem à porta das suas casas, e começou a contestação. Com ela, abriu-se a discussão: é hora de ver entrar a EMEL?

A luta com a Junta de Freguesia foi longa. Começou em 2018 e desde aí houve uma Consulta Pública, várias e longas Assembleias de Freguesias, petições e requerimentos. Ainda foi proposto um referendo local que não chegou a avançar para o Tribunal Constitucional. 

Os resultados da Consulta Pública, feita nos finais de junho de 2018, mostraram que 80% das participações recebidas tinham um sentido desfavorável à entrada da EMEL.

Dados sobre a proposta de implementação das Zonas de Estacionamento de Duração Limitada (ZEDL) extraídos do Relatório de Consulta Pública – Aviso nº34/2018 – realizado pela EMEL  e publicado em outubro de 2018 (disponibilizado por Rui Pinto de Almeida)

Mas, mesmo após os resultados, a Junta de Freguesia sempre argumentou que tinha centenas de pedidos para a entrada da EMEL. Então, o grupo de moradores enviou um pedido de consulta a estes documentos da Junta, analisou-os e obteve os seguintes resultados: 

  • Nas queixas entregues, há pedidos de estacionamento para residentes, denúncias de estacionamento abusivo, pedidos de colocação de pinos para impedir estacionamento em cima de passeios, entre outros. Pedidos como estes representam 86% do total dos documentos.
  • Não solicitam a EMEL diretamente ou tarifação, pedem apenas investimento e policiamento no estacionamento. Os pedidos para a entrada da EMEL são 16, cerca de 6% de todos os documentos. Os resultados desta análise, quando comparados com os que resultaram da Consulta Pública de 2018 são muito parecidos.

Fernando Amaral, de 66 anos, faz a primeira intervenção na conversa para dizer que “a EMEL entrou aqui como um elefante numa loja de louça” – um peso pesado em frente a um assunto delicado.

Queixa-se de que os equipamentos de tarifação estão espalhados por todo o lado e que, quando se querem deslocar pela freguesia, têm de pagar estacionamento. Reconhece que o estacionamento está melhor e mais organizado, mas acha que este investimento podia ter sido feito sem os parquímetros.

O morador que põe caixotes de lixo em frente à casa

É neste momento que se aproxima um morador, de óculos de sol e mãos nos bolsos do casaco, e fica a ouvir a conversa. Passam breves minutos até ser questionado sobre o porquê de ali estar. “Estou só aqui a ouvir o que estes senhores estão a dizer.”

“Como é que se chama?”, pergunta Maria Augusta. “João Barata”, responde o morador. “Já calculava”. A vizinha Patrícia vira-se para a mãe e diz baixinho: “É o homem dos caixotes do lixo” – o morador conhecido por colocar caixotes do lixo nos lugares junto à sua porta, para evitar que outros estacionassem lá.

João Barata entra na roda que se tinha formado antes e diz para todos: “Se a gente pediu a EMEL, foi porque não conseguíamos mais morar aqui com este problema, percebe? Foi a grande questão. Nós moramos aqui e tentámos resolver a coisa da melhor forma e a melhor forma é a EMEL.”  

Neste momento os ânimos começaram a exaltar-se e todos falam ao mesmo tempo. Ali estavam eles: o “não” e o “sim” à EMEL, em confronto direto.

Foto: Ana Narciso

A conversa já estava a chegar ao fim quando João Barata decide ir buscar um reforço, um senhor de fato de treino cinzento, mais tarde apresentado como Amândio Paulino. 

“Também queremos falar”, diz ainda antes de chegar à roda que aqui se formou. Neste momento, a conversa concentra-se em João Barata e Amândio, ambos moradores naquela zona do bairro da Encarnação e ávidos defensores da EMEL. 

Amândio tem 64 anos e foi piloto da TAP por mais de 40. Conhece bem Rui Pinto de Almeida, o morador que nos apresentou o bairro. Conta que, no início, chegaram a trabalhar juntos na procura de soluções para o bairro e para a criação de uma Associação de Moradores da Freguesia, mas que a colaboração acabou com uma diatribe.

Foto: Ana Narciso

“Direito a andar de carrinho? Há direitos mais importantes. Se têm mais do que um carro têm de adaptar as suas vidas, não é responsabilidade de ninguém arranjar três ou quatro lugares para cada família.” Amândio tem estacionamento dentro de casa. Lá, estão os dois carros dos filhos que vivem fora de Lisboa. O seu carro está estacionado na rua, em frente a casa. 

E este morador defende que, com a entrada da EMEL, as coisas só melhoraram.

Diz que há menos barulho na freguesia, mais estacionamento e o espaço está mais organizado. Mas o mais importante foi terem-se visto livres dos carros do aeroporto. “As pessoas iam viajar e deixavam cá os carros, sem qualquer respeito pelos moradores. Chegou a haver casos de pessoas que deixaram cá os carros por seis meses. Havia muitos conflitos entre os moradores e essas pessoas”, explica. 

Agora que, segundo os dois, o assunto já está resolvido e encerrado, dizem que há problemas mais importantes na freguesia com os quais os moradores se deviam importar. Entre eles a reabilitação do bairro, prometida há vários anos e ainda por cumprir. 

Em Benfica a EMEL não entra. E agora? 

Sobre a luta dos moradores de Benfica, já aqui falamos daquilo que os divide. Mas Fernando Nunes da Silva, antigo vereador da mobilidade da Câmara Municipal de Lisboa, entre 2009 e 2013, considera que “não existe razão absolutamente nenhuma para não haver estacionamento tarifado na freguesia.” Afinal, é uma das poucas ainda imunes à tarifação e com bons acessos a transportes coletivos – como o metro, o comboio urbano e os autocarros que ligam a cidade, acrescenta.

Fernando Nunes da Silva foi morador em Benfica, o que o faz conhecedor na primeira pessoa dos problemas de estacionamento na freguesia. “Os carros estacionam constantemente em segunda fila por não terem lugar, muitas vezes atrás do carro do vizinho que conhecem, porque sabem que ele sai mais tarde de manhã”, conta.

E diz é nestes lugares que a EMEL pode ter uma atuação decisiva.

“A EMEL resulta quando na freguesia se conjugam as três formas de estacionamento: zona de residentes, zona de estacionamento de longa duração e zona de alta rotação. Com estes três pontos equilibrados, o estacionamento tarifado funciona.”

Fernando Nunes da Silva
Professor Fernando Nunes da Silva, especialista em mobilidade e antigo vereador da mobilidade e transportes de Lisboa. Foto: Líbia Florentino

Alguns residentes nas zonas já tarifadas pela EMEL parecem não ter dúvidas quanto às melhorias que a EMEL trouxe. Maria Martins, residente na Rua Doutor João Couto, junto ao Centro Comercial Colombo, diz que o estacionamento não é o caos que outrora foi. “Nós deixávamos o carro em segunda fila, ou em cima dos passeios, e esperávamos até à meia noite, hora de fecho do Colombo, para irmos estacionar bem o carro.”

Apesar da desconfiança inicial em relação à EMEL, hoje Maria está mais descansada por ter sempre lugar à porta de casa. Para ir para o trabalho, no Saldanha, utiliza os transportes públicos para não pagar estacionamento lá.

Na zona do Centro Comercial Fonte Nova, também já tarifada, mora Maria Eugénia Davim. Tem 77 anos e mora ali desde 1968. Diz que a entrada da empresa municipal “virou tudo em 180 graus, para melhor”.

A zona do Calhariz Novo faz a fronteira entre Benfica e São Domingos de Benfica, já tarifada pela EMEL. A pressão no estacionamento era tal, que durante a manhã, quando Maria ia levar o neto ao infantário, tinha de apanhar um táxi porque não podia arriscar tirar o carro. Sempre foi a favor da EMEL por entender ser a única solução disponível: “O estacionamento tem de ser regulado, como qualquer outra coisa pública.”

Já a opinião dos comerciantes em relação à entrada da EMEL divide-se. Na rua Joaquim Paço de Arcos, também junto ao Fonte Nova, fomos a três estabelecimentos diferentes, um seguido do outro: uma loja de roupa, uma pastelaria e um gabinete de estética, e sem unanimidade na resposta ao debate.

A empregada da loja de roupa queixa-se de que os clientes deixaram de aparecer e que continua a não haver lugares para estacionar. Mesmo ao seu lado, o dono do café diz que a mudança não se nota no número de clientes e que há mais lugares livres. O problema é pagar mais de 300 euros por ano para estacionar o carro, uma “machadada nas contas”. No gabinete de estética, os clientes queixam-se por terem de pagar estacionamento e as técnicas evitam trazer o carro para o trabalho. Quando tem de ser, deixam-no a três quarteirões, onde conseguem arranjar estacionamento gratuito.

Junta espera aprovação de 3206 novos lugares

A propósito dos planos para a organização do estacionamento, questionamos tanto a Junta de Freguesia de Benfica como a EMEL, mas sem sucesso. Foram negados os vários pedidos para consultar os documentos e estudos sobre o estacionamento na freguesia, dizendo que não tinham na sua posse tal informação.

Contudo, na edição deste mês do jornal Bairro de Benfica, editado e distribuído pela Junta de Freguesia, foi publicado o “Plano de Estacionamento Público Para Benfica”.

Cópia da recente edição do jornal Bairro de Benfica – março de 2023

Mesmo sem a EMEL, a Junta de Freguesia espera a aprovação de 3206 novos lugares de estacionamento espalhados por toda a freguesia (identificados a roxo no mapa). A construção depende da aprovação da Câmara Municipal de Lisboa, a quem cabe exclusivamente a criação de estacionamento.

Na reunião descentralizada da CML, realizada na freguesia no passado dia 15 de março, o presidente Carlos Moedas disse estar muito consciente da dificuldade de estacionamento na freguesia e garantiu que iria ser dado o dinheiro para novas soluções de estacionamento.

E as soluções?

Só nos últimos três anos, saíram de Lisboa quase 56 mil pessoas, grande parte empurrada pelos preços altos das rendas. E ainda são muitas as que mantêm o emprego no concelho tendem e que escolhem o meio de transporte particular, em vez do público, para a deslocação casa-trabalho.

Mas, numa deslocação diária, um trabalhador que venha de Algueirão Mem-Martins, a freguesia mais populosa de Lisboa, para a zona do Parque das Nações, a freguesia com mais empresas registadas em Lisboa, demora, em média e por causa do trânsito, o mesmo de transporte público ou particular, segundo o Google Maps

Então, porque é que ainda existe tanta resistência à utilização do transporte coletivo?

O antigo vereador Fernando Nunes da Silva diz que quando o programa de redução tarifária dos passes surgiu, com o Navegante Municipal e Metropolitano, registou-se um aumento de 25% na utilização dos transportes públicos. Contudo, esses valores ainda não recuperaram da quebra causada pela pandemia.

Lembra que “o transporte das crianças para as escolas também pesa aqui”.

“Para além da questão da segurança,  levar e buscar os filhos de carro à escola, permite que os pais passem mais tempo em família, mesmo que estejam parados no trânsito.”

Fernando Nunes da Silva

Mas depois há o utilizador “não-normal” do transporte público, diz: este é o utilizador que para a deslocação casa-trabalho prefere usar o carro, mas que para se movimentar em distâncias mais curtas não se importa de usar os transportes públicos. E o problema é que o valor alto dos bilhetes de transportes ainda desencorajam este tipo de passageiro.

Fernando Nunes da Silva diz que “o setor dos transportes é um contributo importante” para diminuir a dependência do automóvel, “mas é bom que se tenha consciência de que essa não vai ser a solução para o problema”.

“Enquanto não se atuar na situação urbanística e habitacional, o problema não vai ser resolvido. Ora, o problema na área do urbanismo é que houve maior preocupação em vender património municipal ao setor privado, para fazerem daquilo hotéis e alojamentos de luxo, ao invés tentarem resolver os problemas de habitação. O IMI dos hotéis e alojamentos de luxo, os impostos das transações imobiliárias, o IVA comercial que a CML recebe… É daí que vem a maior parte do dinheiro que forma o orçamento da CML. Ora, não há grande vontade de mexer na galinha dos ovos de ouro.”

Fernando Nunes da Silva

Texto atualizado a 21 de março, acrescentando que a retirada de parquímetros em Carnide foi uma ação popular que contou com o apoio da Junta de Freguesia.


*Ana Narciso tem 22 anos, vem de Rio Maior, mas vive em Lisboa desde os 18. Foi pela paixão de contar histórias que escolheu licenciar-se em Jornalismo. Durante três anos, escreveu para o jornal da faculdade e passou muitas horas na rádio. É estagiária na Mensagem de Lisboa – este texto foi editado por Catarina Reis.


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3 Comentários

  1. Ainda bem que os residentes em Benfica disseram não à EMEL. Assim Benfica continua a ser um cemitério de carros de não residentes. Nós residentes em Carnide tb tínhamos um cemitério de carros até à EMel chegar em Março 2022. Agora podemos sair durante o dia e voltar. Lugares para arrumar o carro não faltam. Bem hajam residentes de Benfica. Os moradores de Carnide agradecem pois os carros parqueados durante semana e meses na freguesia fugiram para Benfica.

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