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Guardiãs das façanhas contidas nos livros que encerram nas suas paredes, as bibliotecas nem sempre tiveram a sorte de viver as suas próprias aventuras. Não é o caso, porém, da Biblioteca dos Coruchéus, em Alvalade. Quem vê o simpático palacete do século XVII a repousar sereno sob a sombra dos plátanos, não imagina que o prédio viveu diversas vidas.
A celebrar neste ano uma década de atividades, num simbólico 23 de abril, Dia Mundial do Livro, a Biblioteca dos Coruchéus durante os séculos sobreviveu ao grande terramoto de 1755 e abriu as portas a inúmeros propósitos – uns nada nobres, outros literalmente “nobres”, como quando acolheu as escapadas extraconjugais de Filipe II de Espanha.
Arraste a linha central e veja o antes e o depois desta biblioteca que já foi considerada palácio:


Dez anos depois, o charmoso palacete (visto também como palácio) é, na opinião do coordenador do espaço, Hélder Ferreira, a “sala de estar” dos vizinhos de Alvalade. “Conseguimos conquistar um lugar na comunidade, criando uma rede de utilizadores, de amigos, que aparecem não só para trocar um livro, mas para usar os computadores, ler o jornal, beber um café”, explica o bibliotecário.

Hélder faz parte de uma equipa de cinco bibliotecários com a missão de fazer o que se espera de uma biblioteca, mas não só isto. “Esta ideia restrita de que é um espaço onde as pessoas vão ler e impera o silêncio está um pouco desatualizada”, explica. Para os mais desatualizados, Hélder ressalta que o livro, sim, continua a ser a matéria-prima do trabalho, mas há uma forte intenção em estimular outras valias, através de uma série de oficinas que exigem de outros sentidos, para além da visão, como as de origami, tai-chi-Chuan e escrita criativa.
Mas saberão todos os que aqui passam que história guarda este lugar?
Alcova real, terramoto e especulação imobiliária
Parte da história do palácio está nas páginas do Diário da História de Lisboa (de Francisco Santana), que o situa como casa principal do que foi a Quinta dos Coruchéus, uma propriedade agrícola com cerca de quatro mil metros quadrados de horta, pomar e olival.

O livro sugere que o nome do prédio, a quinta e a antiga azinhaga que ladeava o terreno deriva de um traço arquitetónico, o “coruchéu”, um remate de pedra junto aos beirais das edificações “apalaçadas”.
Uma lenda mais antiga ainda diz que o palacete foi construído por Filipe II de Espanha, que andava à procura de um sítio para acomodar algumas das suas centenas de concubinas, amantes. Certo é que se o prédio suportou os abalos sísmicos afetivos do monarca, quase não resistiu ao do terramoto que arrasou Lisboa em 1755, cujos estragos sofridos foram difíceis de calcular.
A partir daí, o palacete teve uma existência agitada e mudou várias vezes de proprietários.
De abrigo às aventuras reais no século XVII, passou às mãos da família Velho de Moscoso no século XIX e, já no início do XX, antes de ser adquirido pela Câmara Municipal de Lisboa em 1945, pertenceu à atriz Maria das Neves que, segundo os registos da Câmara de Lisboa, morava no andar superior e sublocava o restante do edifício a uma dezena de inquilinos, que viviam em espaços de apenas um cómodo, uma espécie de antepassado daquilo que conhecemos hoje como T0.

E a especulação imobiliária promovida pela atriz no início do século passado quase fez o que o terramoto não conseguiu.
Já nas mãos da Câmara, o imóvel foi considerado inabitável devido às más condições e chegou-se até a cogitar deitá-lo abaixo. A saída foi dar-lhe um fim não habitacional e o palacete acabou rebaixado a depósito, para onde era levado tudo o que não servia.
Havia espólios “ilustres”, é verdade, como os adereços do histórico cortejo de 1947, comemorativo ao oitavo centenário da conquista da cidade aos mouros, mas o triste facto é que a antiga alcova real permaneceu até meados da década de 1960 cumprindo a nada nobre função de um imenso sótão da autarquia.
Como virou a nova biblioteca do bairro da moda
A elevação de Alvalade a bairro da moda nos anos 1970 foi fundamental na recuperação do prédio, oficialmente alçado ao estatuto de palácio pela Câmara, sediando o Centro de Artes Plásticas dos Coruchéus a partir de 1971.
O palácio ganhou dois ateliers, tanques de argila e até um restaurante, além de uma primeira versão de biblioteca – obviamente, especializada em artes, mas que estranhamente fecharia logo de seguida, dizem, por falta de consultas. Pouco tempo depois, recebeu como vizinhos os ateliers públicos e a galeria municipal Quadrum, que funcionam até hoje.

O fim do século XX e início do XXI marcou um novo downgrade do espaço e o palácio passou a abrigar uma pouco glamorosa repartição autárquica. Saíram os artistas e os cinzéis, entraram os burocratas e os carimbos. Foi assim até 2013, quando a Câmara resolveu ampliar a rede de bibliotecas públicas.
“Desde 2007, com o fecho da Biblioteca de Alvalade que funcionava ao pé do Inatel, por problemas estruturais graves, o bairro estava sem aparelhos desta natureza. Havia uma certa mágoa da comunidade pela ausência de uma biblioteca e o presidente da Câmara à época, António Costa, devolveu uma aos alvaladenses”, diz Hélder, o bibliotecário.
O coordenador ressalta ainda a revitalização do Jardim dos Coruchéus, em 2019, que demoliu a estrutura decadente do antigo restaurante, requalificou os passeios e o relvado, ampliou o parque infantil e pôs em funcionamento um quiosque.
Tornou-se também uma área dog friendly e é bastante comum encontrar os donos a levar os cães para passear. “Hoje, é um espaço utilizado pelas famílias, a transformação de uma área normalmente utilizada como parque de estacionamento devolvida à comunidade como área de lazer”, reforça.

A guardiã das memórias da freguesia
Entre as atividades da biblioteca, uma em especial tem como preocupação envolver os históricos fregueses do bairro para juntos resgatarem e registarem as memórias de Alvalade. O programa Vidas e Memórias de Bairro é uma espécie de nova jóia da coroa do palácio e desdobra-se através de reuniões semanais frequentadas por senhores e senhoras nos seus 70 e 80 anos.
Das reuniões já saíram um mapeamento toponímico dos escritores que dão nome a dezenas de ruas de Alvalade, dos músicos que viveram no bairro e também dos tradicionais estabelecimentos de duas importantes avenidas que cortam a freguesia, a de Roma e da Igreja.

Alvaladenses ilustres, como o radialista António Cartaxo e o cineasta Lauro António, também foram entrevistados pelos participantes do Vidas e Memória de Bairro, ambos um pouco antes de morrerem. “Estamos a falar de documentar a experiências de pessoas com 70, 80, 90 anos, memórias que poderiam estar perdidas para sempre”, diz Hélder.
Atualmente, os senhores e senhoras do projeto estão reunidos para documentar as brincadeiras e brinquedos de infância das crianças que, sete, oito décadas atrás, corriam pelas ruas de Alvalade.
“Gosto de pensar que somos um espaço de resistência e a intenção é cada vez mais fazer parte da vida das pessoas do bairro”, resume o novo senhor de um palácio que resistiu ao tempo, a investidas amorosas de um rei, tremores de terra e pandemias para continuar a ser a “sala de estar” dos vizinhos de Alvalade.

Álvaro Filho
Jornalista e escritor brasileiro, 50 anos, há sete em Lisboa. Foi repórter, colunista e editor no Jornal do Commercio, correspondente da Folha de S. Paulo, comentador desportivo no SporTV e na rádio CBN, além de escrever para O Corvo e o Diário de Notícias. Cobriu Mundiais, Olimpíadas, eleições, protestos – num projeto de “mobile journalism” chamado Repórtatil – e, agora, chegou a vez de cobrir e, principalmente, descobrir Lisboa.
✉ alvaro@amensagem.pt

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Gostei muito desta descoberta para mim que moro em Alvalada e não sabia nada disto
Todo o historial é muito interessante , gostava de ver , mas sou deficiente motor e não sei se é possivel
Parabéns à Câmara que reconstruiu o Palácio do rei Filipe ll .