Das janelas no seu terceiro andar sem elevador Susana Moreira Marques avista Lisboa do alto, como um pássaro a planar, ao mesmo tempo imóvel e em movimento. O voo sem bater de asas é a metáfora do olhar atento da cronista, uma flâneur discreta, a circular sem fazer ruídos, para assim ver sem ser vista.

Sem ser vista, mas para ser lida.

As crónicas que Susana Moreira Marques fez nascer na Mensagem ganharam agora morada alargada, e foram publicadas em livro – Terceiro Andar Sem Elevador, lançado pela Companhia das Letras no próximo dia 2, na Casa do Comum.

“Tenho background de jornalista e é da natureza deste trabalho observar o mundo, quase como um cientista diante do microscópio”, elabora Susana Moreira Marques, o contra-luz do sol a cortar-lhe a silhueta como nos negativos das fotografias analógicas, a imagem emoldurada pela janela do escritório neste terceiro andar em Arroios. 

A reunião de 20 textos apresentados em forma de ensaios literários sobre o ethos da Lisboa contemporânea, escritos dispersos sobre o silêncio, desvios, mudanças, vislumbres, regressos e saudades da cidade que a portuense de 47 anos elegeu como casa.

Um voo cuja descolagem se deu nas crónicas publicadas na Mensagem, chamadas Caderno Azul , entre 2021 e 2022.  

Susana Moreira Marques partiu para trabalhar em Londres e quando retornou encontrou uma nova Lisboa. Foto: Líbia Florentino.

“Tinha a ideia de escrever os textos neste formato de notas, como pequenos ensaios sobre uma série de coisas, e foi na Mensagem que aproveitei para testar esse estilo, com essa consistência de fragmentos curtos, mas com uma unidade”, explica.

O resultado é um mosaico da cidade, a ser lido em parte ou em seu todo. É também uma visão de Lisboa a partir do ponto de vista da cronista Susana na função de ensaísta – ou cientista – na experiência de encaixar Lisboa no mundo e vice-versa, um desafio nascido após o período em que a jornalista Susana viveu em Londres, entre 2005 e 2010. 

“Na época, andava cansada de Lisboa, dessa endogamia de uma cidade onde todos se conhecem e têm uma certa referência sobre ti, sobre quem és e deves ser. Sentia a necessidade de viver uma experiência como estrangeira, onde ninguém soubesse quem era para assim ser quem eu quisesse ser”, diz Susana.

A Lisboa de 2005 a caminho de Heathrow, porém, já não era a mesma de quando desembarcou na Portela, cinco anos depois. Não mais uma cidade apenas de partidas, mas uma Lisboa eleita pelas pessoas para ficar, viver suas vidas, seus amores, desenvolver seus talentos, a sua arte.

As crónicas publicadas em forma de ensaios literários ganharam uma versão ampliada em livro. Foto: Líbia Florentino.

“Foi como um recomeço. Encontrei uma série de novos portugueses e de estrangeiros a viver na cidade. Antes, havia apenas os expatriados, gente de classe mais alta, nada a ver com esses imigrantes de hoje, de tantas nacionalidades, de tanta diversidade. Senti que podia fazer algo por essa Lisboa, que aqui poderia contribuir mais do que em Londres”, continua.

E foi assim que Susana a volta para Lisboa, para viver ao pé do Castelo de São Jorge, a sua primeira experiência num… terceiro andar sem elevador.

Quatro casas, três andares, nenhum elevador

A tipificação-título do livro para viver, na verdade, não foi uma escolha, mas uma contingência dos insondáveis desígnios imobiliários da cidade. O certo é que, ao retornar a Lisboa após o hiato em Londres, Susana Moreira Marques viveu em quatro apartamentos na cidade.

Todos eles, um terceiro andar sem elevador. 

A jornalista Susana Moreira Marques, uma anti-flâneur que, a partir da janela do terceiro andar (sem elevador) em Lisboa construiu um mosaico em forma de livro sobre a cidade. Foto: Líbia Florentino.

“Não foi nada programado, apenas tem calhado de ser assim. E não é só comigo, mas todos os meus amigos moram num terceiro andar sem elevador. Cheguei a perguntar-me se só havia terceiros andares sem elevador disponíveis em Lisboa”, brinca. 

Susana diz não ter feito nenhum pedido específico aos consultores imobiliários, apenas ter deixado claro a preferência por um andar alto, por causa da luz.

“Como passo muito tempo em casa, a trabalhar, a iluminação natural é muito importante para mim. Por isso, tento evitar os andares mais baixos. Mas, atenção, não tenho nada contra elevadores”, brinca.

O primeiro terceiro andar sem elevador obedeceu ao desejo da jornalista de uma imersão na alma lisboeta. Era no Castelo. “Estar ali, no meio da Mouraria e de Alfama, era uma maneira de voltar a apaixonar-me por Lisboa. O apartamento era ótimo, onde tinha vivido o Alexandre O’Neill, e tinha luz até o pôr do sol”, recorda.

A segunda experiência num terceiro andar sem elevador foi na Sé, também com vista para o Tejo. Seguir-se-ia ainda uma terceira incursão na tipologia, em Santa Engrácia, antes da derradeira, em Arroios. 

No retorno a Lisboa, Susana foi atrás das memórias românticas. Acabou por encontrar uma cidade mais dinâmica do que quando partiu. Foto: Líbia Florentino.

“Quando voltei de Londres, fui buscar a referência de uma Lisboa romântica, a Lisboa do meu imaginário. Em Arroios, essa referência ficou para trás, mas ganhei uma outra referência, a de comunidade. Adoro este bairro, um sítio inspirador, de pessoas jovens, de famílias, onde os vizinhos formam entre si uma rede de apoio”, afirma Susana.

É por essa Arroios de comunidade que Susana costuma circular quando desce do seu ponto de observação no terceiro andar sem elevador, a flanar pelas lojas, mercearias e cafés, um dos preferidos o Maria Food Hub, onde costuma ir para escrever, travar reuniões profissionais ou beber um copo com os amigos, e onde se deu parte da conversa com a Mensagem.

“Perdi a relação com o rio, mas estabeleci uma nova relação com Lisboa”, resume.

O olhar da Penélope que escolheu partir e voltar

Da janela do seu atual terceiro andar sem elevador, Susana já viu outras mulheres também na janela a ver a vida passar e homens a brigar em plena via pública, retratos da rotina estática e agitada do populoso e multicultural bairro de Arroios. Uma vizinhança onde, costuma dizer, o silêncio nunca é um bom sinal, como o silêncio das crianças quando estão a fazer o que não deviam. 

A jornalista que começou a carreira no cinema como anotadora mantém nos textos um olhar fotográfico sobre a cidade. Foto: Líbia Florentino.

Há 12 anos, a jornalista e cronista conheceu uma nova função, a de mãe. A mudança no currículo obrigou a flâneur acostumada a ir e vir dos sítios a uma reorientação de rota. “Por vários motivos, fui ficando cada vez mais parada em casa, muito pelo fato de ser mãe de duas filhas, de 12 e seis anos. Tornei-me quase como uma anti-flâneur”, conta.

Mas assim como a personagem de Hitchcock em Janela Indiscreta, a anti-flâneur Susana não deixou de fotografar o mundo a partir de sua janela igualmente indiscreta. O paralelo do trabalho da cronista com o do fotógrafo é evocado no livro, na tentativa do registo, da edição da imagem de uma Lisboa mais compatível com a cidade que se gostaria de amar.

Essa escrita de foco de Susana talvez venha dos tempos em que trabalhou como anotadora para o cinema, ainda antes do jornalismo. Um ofício minucioso, que requer concentração e atenção aos detalhes. “Um bom lugar para aprender a documentar e a contar histórias”, reforça.

O olhar treinado de anotadora que, anos mais tarde, se uniu ao de estrangeira na própria cidade.

“Mudei-me para Lisboa em 1994 quando vim estudar jornalismo. Mas apesar de tanto tempo, de facto não sou de Lisboa. Aliás, como poucas pessoas em Lisboa são realmente de Lisboa, qualquer um pode ser lisboeta. E esse olhar de estrangeira, esse olhar não oficial da cidade, é muito importante para mim.”

Apesar da visão de estrangeira na própria cidade, Susana insiste na missão de contribuir para Lisboa, agora também a casa das suas filhas.

“Gosto de viver em Lisboa e sinto que é também a minha casa, ainda mais por as minhas filhas serem lisboetas. E gosto também da sensação de ter como contribuir com a cidade que vou deixar para elas”, completa.

Susana gosta de flanar pelas ruas de Arroios, um bairro “pessoas jovens e de famílias”. Foto: Líbia Florentino.

Uma contribuição em forma das crónicas do novo livro editado pela Companhia das Letras Portugal, de uma Lisboa povoada por gente comum e alguns mitos, como o de Penélope, uma das fortes figuras femininas evocadas nas suas páginas, a mulher que soube “enganar o tempo – e os homens”e sobre quem paira a dúvida de quem teria sido se, em vez de Ulisses, fosse ela quem tivesse tido a fortuna de partir.

Susana partiu e voltou, uma Penélope também Ulisses na odisseia de ir e vir para Lisboa. Agora, urde as suas crónicas como um sudário para ser descosturado por quem as lê, a partir de uma janela num terceiro andar sem elevador em Arroios.

“Escrever a partir da janela tem o seu valor. É tão literatura como um romance”, garante, enquanto mais uma vez se debruça para observar a Lisboa que desfila a seus pés.


Álvaro Filho

Jornalista e escritor brasileiro, 50 anos, há sete em Lisboa. Foi repórter, colunista e editor no Jornal do Commercio, correspondente da Folha de S. Paulo, comentador desportivo no SporTV e na rádio CBN, além de escrever para O Corvo e o Diário de Notícias. Cobriu Mundiais, Olimpíadas, eleições, protestos – num projeto de “mobile journalism” chamado Repórtatil – e, agora, chegou a vez de cobrir e, principalmente, descobrir Lisboa.

alvaro@amensagem.pt


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