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A processar…
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1.

A maior parte do tempo não pensamos na nossa vida como um espectáculo. Ou como um quadro. Algo para ser visto ou apreciado. Às vezes, nem sequer pensamos que pode ser um espectáculo apreciado por nós próprios. A maior parte do tempo preferimos apreciar a vida dos outros.

2.

Chego a Amesterdão para passar um fim-de-semana já de noite, e a primeira coisa em que reparo é nas salas e nas cozinhas iluminadas, como grandes aquários na cidade. Vejo as mesas onde as famílias se distribuem. Vejo estantes de livros e um candeeiro de leitura. Vejo casas com pessoas sozinhas e casas com várias crianças. Mas tudo isto é um espectáculo normalmente sem espectadores.

Um amigo que vive em Amesterdão explica-me que não é suposto que se olhe para dentro das casas. Os holandeses não o fazem. Mas, pelo sim, pelo não, caso isso aconteça, o cenário foi preparado.

Sempre achei que os holandeses, como outros europeus do norte, não usavam cortinas para não perderem qualquer bocadinho de luz num clima quase sempre cinzento. Mas, afinal, explica esse amigo, houve um tempo em que se impunham taxas às cortinas. Houve um tempo, continua ele, em que as pessoas queriam mostrar como eram as suas casas para que os outros soubessem que nas suas casas não havia nada que ver. Nem grandes decorações, nem grandes gastos de dinheiro – nem escândalos.

Se alguém olhasse para as suas casas viam apenas o retrato da sua modéstia.

3.

Eu namorei muito mas não namorei à janela. As minhas filhas não irão namorar à janela (não posso jurar mas tenho quase a certeza). Mesmo a minha mãe não namorou à janela.

Mas ouvimos tantas histórias de amores à janela, que é como se soubéssemos exactamente como fazer se alguém se puser debaixo da janela um dia, e voltar nos dias seguintes. Na verdade, desejamos muitas vezes que alguém nos venha chamar à janela em vez de termos que ser nós a sair para namorar.

4.

Se há pessoas que gostam de estar à janela a olhar para fora, eu gosto de estar na rua a olhar para as pessoas à janela.

Em todos os bairros de Lisboa ainda se encontram mulheres à janela. Às vezes, parece-me, são elas o único sinal de uma outra cidade. Mesmo em bairros onde todas as casas se tornaram de luxo, e onde os turistas circulam constantemente, vêem-se mulheres à janela. Às vezes, nos andares mais altos, com as suas cabeças grisalhas a olhar cá para baixo, sem terem vertigens.

5.

Está sempre a falar-se de como as novas gerações são as primeiras a ir para a universidade, ou as primeiras a viajar pelo mundo todo (no caso das mulheres, a viajar sem autorização de um homem). Pensando bem nisso, no meu caso, talvez o mais relevante seja dizer que sou a primeira mulher da família a não me preocupar com cortinas.

Não compro cortinas. Não compro tecidos para fazer cortinas. Não arranjo tecidos de outras cortinas para novas cortinas. Não coso cortinas. Não penduro cortinas.

Não fecho as cortinas.

6.

Na história da Rapunzel, que ultimamente é uma das preferidas da minha filha mais nova, o que me impressiona não é o facto de ela estar fechada mas o facto de ela querer sair ao fim de tanto tempo fechada.

7.

O ecrã é como uma janela. Nós mostramos apenas o que queremos. Pomos cortinas ou não, tendo à disposição filtros com nomes estrangeiros. O resto da casa pode estar desarrumado. Ou toda a casa pode estar desfocada. Numa chamada zoom podemos até substituir a nossa sala por uma paisagem tropical ou uma rua de Nova Iorque ou o salão de Hogwarts. No Instagram, a janela já não é uma fronteira entre o interior e o exterior, mas substitui o próprio interior.

8.

Quando alguém morre, quando há um acidente, os jornalistas relatam os últimos posts de Instagram, as últimas fotos, como se a representação da vida fosse a vida.

Depois, essas páginas ficam ainda activas muito tempo, como uma homenagem que não foi intencional.

São como os objectos que se guardam dos que partem, tocados ou feitos pelas suas próprias mãos, só que estes estão guardados num gigante baú que qualquer pessoa pode abrir.

9.

Em Lisboa nunca há uma vista de janelas acendidas na noite. Não como em Nova Iorque ou em Londres, em que a ausência dos milhares de pessoas que trabalham em escritórios é assinalada diariamente pelas luzes dos gabinetes vazios.

É assim que temos a ilusão de Lisboa como uma cidade em que não se sai e entra constantemente, em que a grande parte do tempo não é passada a uma janela de um carro ou de um comboio, a olhar para uma paisagem sempre repetida.

10.

Consigo listar várias canções de meninas e mulheres à janela, mas nem uma de rapazes que esperam pela vida acontecer à janela.

Mas a verdade é que em Lisboa vejo alguns e o que me espanta é como são jovens. Têm barba mas são jovens. São morenos e são loiros. Fumam cigarros. Olham para o telemóvel. Olham para baixo tal e qual como as mulheres de antes, a fingirem que fazem uma pausa do tanto que têm que fazer. Se calhar, também esperam começar a namorar para a vida começar verdadeiramente.

11.

Em cinema, é preciso fazer a transição entre interiores e exteriores. De vez em quando é preciso mostrar um plano geral, um plano de situação, isto é, situar o espectador num lugar.

Na vida, da mesma maneira, às vezes é preciso vir à janela para ter a certeza de que ainda sabemos onde nos situamos.


Susana Moreira Marques

É jornalista e escritora. Tem colaborado sobretudo com o Público e o Jornal de Negócios. Publicou dois livros de não-ficção. Gosta de cidades pela quantidade de histórias que habitam nelas. Foi para se perder no meio de ainda mais histórias que viveu em Londres cinco anos. Saiu do Porto com 18 achando que era temporário, mas ficou em Lisboa e é a Lisboa que sempre regressa.

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