1.
Algumas pessoas quando chegam a uma cidade, reparam sobretudo nas cores e no seu efeito quando exposto a determinada luz. Outras reparam nos cheios e dizem mesmo que são os cheiros que as transportam para os lugares. Muito menos pessoas falam da maneira como certos sons ficam associados a sítios. Como nunca esquecemos do particular frenesim de uma cidade pelo seu ruído ou de um pesado silêncio. Podem ser músicas, instrumentos específicos, canções com belas letras. Mas também diálogos que parecem que só podiam existir em determinado bar ou restaurante de determinada cidade em determinado momento. Confissões a estranhos. Amizades pouco apropriadas. Diálogos breves como encontrões, dos quais nos recompomos rapidamente para seguir caminho.
2.
A minha filha mais nova ouve os sons da cidade. Interpreta buzinas como notas musicais. Ouve no passar dos carros mais qualquer coisa do que eu. Não sei se é porque ela tem um ouvido realmente musical ou se é porque o ouvido dela ainda ouve coisas que deixei de ouvir. Tal como os olhos que já não reparam nas belezas por que passamos todos os dias.
3.
Num bar de Nova Iorque contei uma vez toda a minha vida a um desconhecido. Ajudava o facto de ele não falar português nem sequer poder reconhecer o meu sotaque a falar inglês. A minha música era inteiramente misteriosa para ele e a dele para mim e, sem referências, sem saber em que escala cada um tinha o tom da sua vida, sentimo-nos absolutamente seguros para dizer o que quer que fosse. É claro que havia música, era um bairro de cool de Nova Iorque, e parecia um filme, mas nós éramos naquele instante, com algum alívio, personagens secundárias.
4.
Também reparo muitas vezes na ausência de música. Ao fim de quatro anos, nunca ouvi música da casa da minha vizinha.
Não sei se seria assim antes da remodelação do prédio e antes de eu me mudar. A vizinha, uma senhora de uns setenta anos, foi a única inquilina que a minha senhoria deixou ficar de outro tempo, com uma renda pouco actualizada, e talvez ela sinta que faz parte do negócio, como o acordo de limpar as escadas, fazer-se notar o menos possível. Na verdade, talvez sinta, desde que veio para Lisboa, que faz parte do negócio que a sua cultura caboverdiana e angolana se note o menos possível num bairro localizado bem no centro da cidade.
Os netos, que provavelmente já nasceram em Portugal, entram e saem constantemente. Trazem sempre headphones. Estão sempre a ouvir música. Só não faço ideia qual.
5.
Há tantas razões para fazer música – possivelmente tantas quantas para escutar música. O amor, claro, a primeira delas, tome ele a forma de desejo, de saudade, de perda. Poucas pessoas poderão dizer que alguém fez uma canção para elas. Mas todas as canções parecem ter sido feitas para nós, individualmente, quando as escutamos em determinados momentos. Numa grande matemática universal pode não existir uma perfeita cara-metade, mas existe sempre a música perfeita.
6.
Quando aprendi piano há muitos anos, e apesar de nunca ter chegado alguma vez a tocar bem, uma das coisas de que mais gostava quando praticava era seguir as indicações, em italiano, da intensidade da peça. Passar do Forte ao Pianíssimo. Subitamente ou gradualmente.
Embora talvez não o pudesse explicar, era isso que mais transmitia sensações, e era isso que me fazia sentir que eu tinha alguma intervenção na música, já escrita numa partitura para ser executada de forma exacta.
De todas as lições dessa altura, guardei esta, porque julgo que em algum momento me servirá – a mim ou às minhas filhas – perfeitamente como metáfora: que tocar forte não implica fazer força, mas usar o peso do corpo. Que para quase nada é preciso força, se conhecermos bem o nosso corpo e a relação dele com as coisas.
Ouça os ‘Sons de Lisboa’
Qual é o som dos candeeiros de Lisboa? Ou de uma fonte, debaixo de água? Pablo Sanz e 13 lisboetas fizeram um roteiro sonoro da cidade
E se Lisboa só se ouvisse? A que soa Lisboa? Este mês no Festival Lisboa SOA, Pablo Sanz, artista sonoro…
Terminais rodoviários? Ao volante, Sandra e Carlos, motoristas, sabem o que precisam 🎧
Com o apoio: Uma mulher segura um bilhete na mão, na estação rodoviária de Sete Rios. Confusa, sabe que a…
O mais antigo polícia sinaleiro de Lisboa deu o apito final 🎧
Durante 12 anos, quem atravessava diariamente o cruzamento que juntava a Rua da Junqueira, a Rua de Belém e a…
7.
Os lugares onde estive onde havia mais música nas ruas eram aqueles que as pessoas dizem serem os mais alegres. Não quer isso dizer que todas as músicas fossem alegres. Algumas eram francamente melancólicas, até trágicas.
O medo não parecia ser o da tristeza, mas o do silêncio. Do que pode acontecer no silêncio.
Eram lugares distantes e exóticos. Eram os mesmos lugares onde se dizia que qualquer coisa podia acontecer a qualquer pessoa a qualquer momento, querendo na verdade dizer qualquer coisa má.
Transpondo para a cidade, nós sabemos quais são os bairros barulhentos e quais são os silenciosos e exactamente a razão.
8.
As minhas filhas já não se lembram de eu lhes cantar certas canções que lhes cantava em bebés. Talvez daqui a alguns anos nem eu própria me lembre. São talvez coisas que existem propositadamente para serem esquecidas.
Agora cantamos e dançamos juntas ao som de uma coluna e, possivelmente, lembrar-se-ão disto como momentos ridículos, mas felizes. O cenário já não é o quarto, mas a cozinha, o lugar onde verdadeiramente o dia começa e termina e onde, na casa, se escuta cada vez mais música.
9.
Aparte as desvantagens da quantidade de expatriados na cidade, gosto que Lisboa tenha deixado de ser monolingue. Gosto de ir na rua e reparar em línguas estrangeiras. Gosto de estar no café e ouvir as mesas do lado e tentar adivinhar que língua falam. Holandês. Norueguês. Alemão.
É precisamente o facto de não poder entender o que dizem que me interessa. Os diálogos, as ideias, as discussões, as declarações de amor, todos transformados em música.
Nunca percebi porque é que a ideia de uma Babel horroriza tanta gente. Como se realmente precisássemos de uma língua comum para nos entendermos para além da linguagem comum do comportamento humano.
10.
Quando preciso de entrar num ambiente específico para começar a escrever, ponho música. Mas a maior parte das vezes escrevo em silêncio. Costumo dizer que escrevo em silêncio, mas não é verdade. Escrevo com o som da cidade em fundo. É esse som que bloqueio, mas que está sempre presente. Sei que, por mais que não preste atenção, há ideias e histórias, memórias e notas, que surgem porque ele está lá, como um mar que leva qualquer coisa com as ondas, mas também traz.

Susana Moreira Marques
É jornalista e escritora. Tem colaborado sobretudo com o Público e o Jornal de Negócios. Publicou dois livros de não-ficção. Gosta de cidades pela quantidade de histórias que habitam nelas. Foi para se perder no meio de ainda mais histórias que viveu em Londres cinco anos. Saiu do Porto com 18 achando que era temporário, mas ficou em Lisboa e é a Lisboa que sempre regressa.
tenho dois amores, um barulhento o outro nem o sopro da vida se ouve. Dos dois qual eu gosto mais, não o sei dizer, mas posso confirmar que me são os dois necessários e vitais.Um embala-me a vida do dia dia o outro nem o sonho me acorda. Gostei de te ler entre estes dois mundos e agora vou procurar um deles para sair daqui.