1.

A mais breve correspondência do mundo é talvez aquela que mantemos connosco próprios: pequenas notas que escrevemos a nós mesmos. Listas. Lembretes. Coisas importantes no meio do mais banal. Às vezes, mandamentos que sabemos há muito, mas dos quais temos tendência a nos esquecer.

Não perderás tempo com o acessório.

2.
Nos cadernos dos escritores, desses que ficam em baús e, mais tarde, em caixas catalogadas até serem resgatados por académicos, é sempre surpreendente como o tecido do dia-a-dia se intromete na criação. Abrimos diários de gente que mudou o mundo e encontramos neles notas de afazeres banais, contas para chegar ao fim do mês, comentários sobre pessoas que acabaram de conhecer e causaram boa ou má impressão.

Em alguns casos, os escritores guardam pequenas coisas que escreveram em folhas soltas, em guardanapos de café, em versos de envelopes. Nesses casos, pode ser difícil dizer o que aconteceu antes e o que vinha depois, onde pertence a frase, ou a que tempo. Ou mesmo se seria parte de um texto criativo ou de uma correspondência, uma frase escrita para alguém.

Talvez os escritores que guardam muitos documentos para um vasto espólio se divirtam, sabendo que a partir desses pequenos pedaços de papel – pequenos bilhetes – se podem inventar novas narrativas sobre a vida das suas personagens ou, até, do próprio autor.

3.
Não sei se nas outras cidades é assim, mas Lisboa parece-me estar permanentemente cheia de mensagens. Depois de ver um espectáculo sobre graffitis, feito pelo ilustrador António Jorge Gonçalves e o MC Flávio Almada, a minha filha decide que vai começar a apontá-los num caderno posto de lado só para esse efeito. Quer andar pelo bairro a coligir o que vê nas paredes.

Porquê tirarmos notas para nós mesmos quando há tantas já na cidade à espera de serem lidas? Às vezes, são só nomes que sentiram necessidade de estarem assinados, de dizerem: a cidade também é nossa, também tem um contrato connosco, esses que vivem em redor, que rodeiam a cidade mas que por mais que andem – em comboios velozes, autocarros, barcos – nunca parecem conseguir chegar ao centro.

4.

Não sei em que momento a minha filha aprendeu a escrever suficientemente bem para que pudéssemos trocar bilhetes, mas a verdade é que nunca o fizemos com regularidade.

Agora, trocamos emojis. Um aceno. Um coração. Um sorriso. Tantas coisas que passaram a dispensar a escrita. Um símbolo basta porque temos o contexto.

O contexto é que ela passa o dia a dez minutos de mim mas, para ela, pode parecer muito longe.

Estamos ligadas através do tempo-espaço desde que ela tem um relógio que está em comunicação com uma aplicação no meu telemóvel, e eu sei que ela está na praça onde fica a escola porque consigo aceder à sua localização no meu telemóvel. Ainda assim, gosto que ela me diga onde está e ela gosta que eu lhe diga que estou a chegar.

5.
Piadas. Declarações. Mal dizeres. Pedidos de namoro. Sei que isso se passa na sala de aula embora a minha filha não me conte nada.

Sempre achei que as pessoas escreviam bilhetes porque não tinham coragem de falar directamente, mas agora penso que é preciso muito mais coragem para deixar escrito, para arriscar que aquelas palavras possam passar de mão em mão, e eventualmente, não cheguem sequer ao destinatário, que fiquem detidas pelo caminho.

Foi, ao longo dos tempos, um motor poderoso das histórias: amores que não chegam à sua conclusão ou aqueles que nem começam porque a mensagem ficou perdida.

Na sala de aula, o primeiro ensaio entre o envio e a recepção – e o seu desencontro.

6.

Uma vez vi escrito numa parede em letras garrafais: “amu-te”. Quem seria que não sabia escrever uma das primeiras palavras que aprendemos? Como teve a coragem de o escrever?

Nunca mais me esqueci da imagem dessas palavras, apesar do erro, ou precisamente por causa do erro.

Tendo em conta que a extensão de parede e muros é enorme na cidade, mas o espaço sempre pouco para os cidadãos, que palavra é que escolheríamos escrever? E como apagá-la se nos enganássemos?

7.
O meu pai deixava-me muitas vezes bilhetes quando eu era adolescente e ficava sozinha enquanto ele trabalhava. Escrevia-me instruções para tratar de alguma coisa em casa, que ele sabia que eu não teria a iniciativa de fazer. Enunciava as coisas de que me devia lembrar. E dizia quando é que estaria de volta. No fundo, eram indicações sobre o que fazer quando ele não estava.

Nunca se esquecia de, ao assinar o bilhete, dizer que gostava de mim. Era assim que as instruções, mesmo que eu não quisesse, ou não o admitisse, funcionavam.

Agora, por whatsapp, continua a enviar os seus bilhetes para os filhos. Continuam, de certa forma, a ser indicações sobre o que fazer quando ele não está. Continua a não se esquecer de mandar também as mensagens sem qualquer reparo ou sugestão, apenas para dizer que gosta de nós.

8.
Em inglês, usa-se a expressão “note to self”. Aplica-se ao dia-a-dia como às grandes decisões e momentos definidores da vida: amores, casas, bairros, escolhas várias que construiram a realidade das nossas vidas.

A ideia por detrás é que, se anotarmos os erros – e as suas potenciais correcções de curso -, ainda que apenas mentalmente, sem pegar no papel, não vamos repeti-los; teremos aprendido alguma coisa com mais ninguém a não ser nós mesmos.


Susana Moreira Marques

É jornalista e escritora. Tem colaborado sobretudo com o Público e o Jornal de Negócios. Publicou dois livros de não-ficção. Gosta de cidades pela quantidade de histórias que habitam nelas. Foi para se perder no meio de ainda mais histórias que viveu em Londres cinco anos. Saiu do Porto com 18 achando que era temporário, mas ficou em Lisboa e é a Lisboa que sempre regressa.

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1 Comentário

  1. Boa noite. Obrigada. Concordo totalmente. Durante anos escrevi umas linhas aos meus filhos que guardei (as que encontrei) e, hoje ainda dou voltas aos meus cantos e, encontro mensagens.
    Uma maravilha!
    Feliz noite.
    -rdc-Lyon

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