As estantes recém montadas exalam o perfume adocicado da madeira. A nova livraria de Lisboa, porém, não carrega o pinho apenas no aroma que rescende das prateleiras repleta de livros. Tem Pinho em cada um dos três andares do secular prédio no Bairro Alto, em cada recôndito, tem Pinho no chão, nas paredes, nos móveis, no telhado. Tem Pinho na alma. Afinal, a Casa do Comum é a casa de José Pinho – o editor e livreiro que criou a Ler Devagar e que morreu recentemente.
Último sonho do mítico livreiro cuja trajetória se funde com a história recente da cena literária portuguesa, um mestre na arte de agregar e convocar legiões à causa dos livros, promotor de eventos e festivais literários, a Casa do Comum é livraria e centro cultural, mas também é sala de estar, refúgio e convite à resistência às urgências menos urgentes da vida.

“O Gregório Duvivier tem uma frase interessantíssima, de que morrer não é deixar de existir, mas sim, o esquecimento. E o meu pai vai ser sempre lembrado pelo que fez e pelo que deixou. Este espaço é apenas mais um exemplo de que ele ainda está vivo”, afirma Joana Pinho, a filha do livreiro.
Educadora de formação, a lisboeta criada no Bairro Alto é agora o Pinho à frente do negócio familiar feito de papel, tinta e inspirações. Uma família que, além do membro mais novo, a Casa do Comum, inaugurada em novembro, tem ainda as livrarias Ler Devagar e Ferin, em Lisboa, e as do Mercado e Santiago, em Óbidos, onde José Pinho criou o festival literário Folio – já com oito edições e que, há três anos, ganhou um irmão lisboeta, o Festival Lisboa 5L.
Para abraçar o universo literário concebido pelo livreiro, ou pelo “Zé”, como costuma referir-se ao pai, Joana Pinho conta com o apoio do irmão, o realizador Pedro Pinho, e da já citada legião angariada por ele, que soma outros sete administradores e mais de uma centena de sócios. Uma armada que lhe deu confiança em aceitar o desafio proposto pelo próprio José Pinho.

“Sempre colaborei com tudo, mas nunca pensei em assumir esta responsabilidade, pois não pensava que o meu pai iria morrer. No ano passado, já doente, ele fez-me o convite. Disse-lhe, ‘Ó, Zé, isso nunca me passou pela cabeça‘, mas ele insistiu e falou “só precisas de estar preparada para arregaçar as mangas e meter a mão na massa!”.
Não houve como a filha negar o pedido paterno.
Apesar do tamanho do desafio, Joana exibe tranquilidade. “Sei que não consigo fazer o que o Zé fazia. Mas sei também que consigo fazer outra coisa. Pode até ser algo mais interessante, mas sempre será uma outra coisa”, explica a antiga educadora que, melhor do que ninguém, sabe que para poder ensinar é preciso estar sempre disposta a aprender.
As boas coisas da vida devagar e com vagar
Um dos ensinamentos que Joana Pinho aprendeu com o Zé e que pretende ensinar a quem estiver disposto a conhecê-lo é o da convivência tranquila e comunitária. O que por sua vez explica a escolha do nome do novo espaço, a Casa do Comum.
“A nossa vida anda aceleradíssima. Quando o Zé pôs o nome de Casa do Comum ao espaço era um convite ao desacelerar. Também era uma forma de se posicionar publicamente nesse lugar do desaceleramento, que já vinha na escolha do nome da Ler Devagar, na ideia de que as boas coisas da vida se fazem devagar e com vagar”, ensina Joana.
A vida sem grandes pressas e em comunidade, continua Joana, remonta à antiga rotina do bairro onde ela e o irmão cresceram, ali mesmo no Bairro Alto, nos arredores de onde nasceu a Casa do Comum, situada no prédio de três andares com entrada pelo número 285 da rua da Rosa e que se estende até a saída traseira, pela rua de São Boaventura.

A rua de São Boaventura, curiosamente, a primeira morada da primeira livraria da família Pinho, a Ler Devagar, fundada em 1999, onde funcionou até 2005, quando foi expulsa pelo início da especulação imobiliária no Bairro Alto, que lhe levou a sede e forçou um período de nomadismo, até ser possível criar raízes na LX Factory, em 2009.
“O Bairro Alto era um bairro do comum, da comunidade, onde as pessoas viviam e conviviam antes de acontecer aqui o que aconteceu em toda Lisboa, antes da gentrificação, de não se conseguir pagar a renda. A Casa do Comum nasce como uma boa desculpa, uma razão, para os lisboetas expulsos pelo turismo agressivo voltarem a frequentar o Bairro Alto”, diz Joana.
A nova livreira continua a também a viver no Bairro Alto. “É praticamente, um trabalho em home office. Às vezes, quando é mais produtivo, reunimo-nos na minha casa”, diz.
Joana conta ainda que, nas primeiras semanas de funcionamento, já foi possível notar um certo engajamento dos clientes ao espírito de comuna da livraria.
“Um dia, no bar do espaço, vi as pessoas a juntarem as mesas. Numa hora, havia duas mesas juntas e, depois, quando voltei já tinham-se juntado outras, até se transformar numa grande mesa, daquelas de filmes”, conta.
Joana vê nessa vocação “do comum” da casa um alento para algumas pessoas com o temperamento parecido com o dela, uma “infoexcluída” confessa.
“Não tenho redes sociais nem televisão em casa. Quando digo que sou infoexcluída é porque sou excluída de um monte de coisas que não tenho acesso pelo telemóvel ou computador. Mas o que tenho aprendido é que é possível chegar aqui sozinha e sempre encontrar alguém para conversar e saber das coisas a que não tenho acesso nas redes sociais”, afirma.
Uma aprendizagem que Joana percebeu não ser apenas uma experiência pessoal.
“Tenho ouvido isso de outras pessoas, de virem só para a Casa do Comum e de sempre encontrarem um conhecido para conversar, e aquilo que pensava ser uma necessidade apenas minha, percebi ser a necessidade de muita gente.”
Uma homenagem à preguiça e ao tédio
E para que todos, infloexcluídos ou não, se sintam muito bem acolhidos, a Casa do Comum apostou numa decoração que se assemelha ao máximo à de uma casa como qualquer outra. No segundo andar, por exemplo, há um quarto, com direito a camas e uma rede estendida entre duas paredes: é o chamado “Museu da Preguiça”.

“As duas camas de casal já estavam no espaço. Já a rede, foi uma oferta de um amigo brasileiro do meu irmão Pedro”, explica Joana. Os dois enormes armários de madeira escura ocupados por livros que completam a decoração do quarto-museu dedicado ao ócio vieram de uma antiga farmácia no Príncipe Real e dão ao ambiente o ar de assoalhada de uma residência.
Joana diz que os clientes são convidados a frequentá-lo assim mesmo, como um quarto de uma casa, para folhear um livro ou simplesmente, como sugere o nome, para nada fazer e permitir-se uma pausa, um respiro da rotina acelerada que nunca é bem-vinda e deve ser devidamente deixada do lado de fora da porta de entrada.
O espaço também serve como palco para alguns dos diversos eventos da fértil agenda cultural da Casa do Comum, como quando recebeu a artista Rafaela Jacinto para a curiosa e intimista performance Quer dormir comigo?, em que os clientes, um de cada vez, entravam no quarto e deitavam-se na cama para ouvir a voz do vampiro Nosferatu sussurrar-lhe ao ouvido.
O Museu da Preguiça fica no mesmo nível da livraria, disposta num imenso salão com 30 metros de extensão, iluminado por janelões. Um andar acima, nas mesmas dimensões da livraria, já se pode ver o futuro Cinema Tédio, com cadeiras vintage oriundas de uma antiga sala de cinema, ao lado de algumas poltronas, além de um belíssimo piano de cauda.
A sala, porém, por enquanto recebe apenas concertos musicais. A partir de 2024, entretanto, estará a cargo do Miguel Ribeiro. A atmosfera work in progress da Casa do Comum é mais uma homenagem ao jeito de ser de José Pinho, conhecido por pôr os projetos a funcionar sem se importar com pormenores.
“O Zé era assim mesmo, de começar a casa pelo teto. E o espaço foi inaugurado assim. Quem aqui estivesse um dia antes, nunca diria que estaríamos de portas abertas no dia seguinte”, diverte-se Joana.
No primeiro piso, interligado à imensa cave onde funcionavam a tipografia e o armazém do inquilino anterior do prédio, a Imprensa Nacional Casa da Moeda, agora estão um lounge para música eletrónica, um café-bar e as estantes e livros de um alfarrabista. A decoração, mais uma vez, contempla a memória do espaço e os móveis oriundos de vários lugares, alguns deles do próprio Pinho.
No café e bar, por exemplo, estão móveis e quadros encontrados no antigo armazém, usado também pelos proprietários do antigo bar vizinho, o Cegonha. Não por acaso, o espaço etílico-festivo da Casa do Comum foi batizado de Bar Cegonha. Completam a decoração as mesas de um outro bar, o Palmeiras, frequentado por José Pinho.



“O Palmeiras era um bom exemplo de uma casa do comum. Era uma cervejaria na rua do Crucifixo, ao lado da Ferin, cujos donos eram da mesma cidade do meu pai, São Pedro do Sul, e quando o Zé soube que iam fechar as portas para se transformar num hotel, foi lá e comprou as mesas e as cadeiras”, recorda-se a filha Joana.
Enquanto os outros ambientes da Casa do Comum funcionam do meio-dia às dez da noite, o Bar Cegonha que, por enquanto, abre os serviços às cinco da tarde, segue noite adentro, reunindo as mesas e as pessoas, sob as sombras dos livros.
A nova “Senhora dos livros”
Devagar, preguiça, tédio, advérbio e substantivos que encerram a ideia de um lugar onde a urgência passa ao largo e de uma constante atmosfera de dolce far niente. O que não se reflete na ausência de muito trabalho feito até aqui e ainda do tanto que há por fazer.
A começar por abrir as portas, que levou dois extenuantes anos de obras no prédio, desde que a ideia de uma nova livraria em Lisboa começou a sair do papel, em 2021.



O imenso salão reservado ao cinema, por exemplo, precisou ter o piso reforçado por vigas de aço para suportar o peso das pessoas, estruturas que demoraram uma eternidade para chegar devido aos atrasos das entregas que se registaram no pós-pandemia.
“A princípio, achávamos que o prédio precisava apenas de uma pintura, uma reforma cosmética. Só depois, notamos que não era bem assim e que o espaço pedia um lifting mais profundo”, conta Joana, que até o último minuto antes de abrir as portas foi assombrada pela dúvida sobre a viabilidade prática do último desejo do pai.
Aos poucos, porém, as primeiras semanas de funcionamento têm provado que José Pinho mais uma vez sabia do que estava falando e que a ideia de um espaço que convide a resistir ao frenesim do cotidiano em boa companhia mais do que uma boa ideia comercial, parece traduzir-se numa necessidade vital.

Mais do que cansaço e preocupação por estar à frente dessa missão, os olhos de Joana Pinho confirmam a certeza de que a Casa do Comum é mais uma peça na muralha feita de livros que o pai construiu ao longo da sua vida e que, se depender da nova livraria, centro cultural e refúgio de Lisboa, o Zé não será esquecido e seguirá vivo.
Por isso, ao ser perguntada como se sente agora que tudo está a funcionar, em vez de responder com queixas e interrogações sobre estar extenuada ou preocupada com o futuro, a nova senhora dos livros de Lisboa faz brotar o sorriso e responde, apenas:
“Estou feliz!”.

Álvaro Filho
Jornalista e escritor brasileiro, 50 anos, há sete em Lisboa. Foi repórter, colunista e editor no Jornal do Commercio, correspondente da Folha de S. Paulo, comentador desportivo no SporTV e na rádio CBN, além de escrever para O Corvo e o Diário de Notícias. Cobriu Mundiais, Olimpíadas, eleições, protestos – num projeto de “mobile journalism” chamado Repórtatil – e, agora, chegou a vez de cobrir e, principalmente, descobrir Lisboa.
✉ alvaro@amensagem.pt
Ainda bem que o José Pinho continua vivo. Os filhos foram sementes sempre muito cuidadas entre as aves e o joio das outras vidas.
Bem haja, o espirito do Zé não podia ficar amarrado ao seu corpo migrou para Joana que continua na fantástica criatividade do pai.
Conheci o Zé tarde na vida, quando iniciou a aventura da Ler Devagar em Alcântara apreciando a sua tenacidade e a versatilidade das suas mãos em mil ofícios.
Por fim devo confessar que o tempo em que eu lidei com o Zé na Livraria expondo as minhas peças foi o mais feliz da minha vida
Pietro
Haverá melhor forma de se homenagear alguém do que a de a manter presente e no seu universo de eleição?!
Que gratificante é vermos estes jovens, estes filhos, esta geração seguinte a seguir estes passos da pegada deixada pelo Pai!
Parabéns!
Muito bonito, mas já lá fui três vezes e estava sempre (manhã e tarde) e estava sempre fechado. Quando abre para os “mortais”?