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1. Porque é que um desenho é tão intrigante mesmo quando faz apenas um retrato fiel da realidade? Porque é que nos fascina uma imagem tantas vezes vista só porque alguém a desenhou no papel? Quando é que começamos a perceber que nunca é demais ver o que conhecemos reproduzido?
2.
Um rapaz desenha ruas e edifícios sentado num passeio no Chiado. Mal olha para as pessoas que passam. Já vi rapazes destes (menos raparigas) em Paris e em Londres, em Nova Iorque e Madrid. Não sei quantas horas fica ali. Não sei se faz dinheiro que chegue para viver. Os desenhos não são muito bons nem muito maus mas dizem qualquer coisa da necessidade de pôr no papel o que se vê. E, por muitas fotos que tirem, os turistas compram os desenhos iguais às suas fotografias, como se houvesse neles um valor acrescentado à sua memória da viagem.
3.
Há desenhos que precisamos de conhecer intimamente. Às vezes, diagramas tão banais como mapas do metro.
Quando vivia em Londres ficava muitas vezes frustrada por não saber de cor o mapa do metro. Parecia-me que o conhecimento daquelas linhas, da sua quantidade de cores, dos seus cruzamentos, era a prova de que eu era uma verdadeira habitante da cidade.
Raramente pensava o quanto eu aprendia sobre a topografia da cidade andando por baixo dela, e como as ligações entre norte e sul, este e oeste – centro e subúrbio – eram muito mais evidentes do que à superfície.
4.
Na era da alteração fotográfica, da realidade modificada com filtros e retoques, o traço de alguém que desenha é mais fidedigno. O artista interpreta mas não engana. O público aprecia ou não, mas não julga.
5. Victoria Line. Linha azul clara. A mais rápida linha de metro de Londres. Talvez por isso visitasse com tanta regularidade a Tate Britain que ficava nessa linha. É lá que estão os meus quadros favoritos de J. M.W. Turner: um conjunto de pinturas inacabadas. Talvez não tenham a perfeição de outros quadros mais conhecidos de Turner, muitos deles também de paisagens marítimas como estes, mas estes têm outro grau de intimidade.
São quadros aos quais a vida não deu tempo de serem terminados. São belos não apesar da sua imperfeição, mas por causa dela. Talvez dessem uma certa esperança a alguém como eu, com dificuldade em levar até ao fim ideias, trabalhos – e projectos de vida em novas cidades –, a noção de que o esboço pudesse ser a arte final.
6.
Nunca soube desenhar. Como se costuma dizer, não tinha “jeito”. Mas também nunca tive o hábito. Depois, aos 13 ou 14 anos, durante uns breves meses, pus-me a desenhar.
Para além de desenhar figurinos de moda como faziam as minhas colegas, durante uns tempos desenhei o meu apartamento quase obsessivamente. Desenhei o meu quarto e a minha sala. Desenhei móveis, cadeiras, uma caixa de jóias que ainda guardo.
Era uma boa maneira de treinar. Provavelmente era o que a minha professora de educação visual me tinha dito que fizesse. Mas não sei porque o fazia de maneira algo obstinada. Talvez me desse segurança desenhar o que me rodeava, tendo começado a perceber, nessa idade, que as coisas não duram e que tudo pode mudar.
7. Agora, quando volto a Matosinhos, onde passei parte da infância e o início da adolescência, a maior parte do tempo não reconheço a cidade como minha. De vez em quando, tenho vislumbres de momentos inalterados nas ruas e nos prédios. Sobretudo, lembro-me que foi ali que comecei a aprender a olhar. Realmente a olhar, isto é, escolhendo o que quereria registar.
8. Não sei se registar é um modo de criar. É cada vez mais difícil saber o que fazer com essa arte, quando tudo se pode registar a qualquer momento. Um registo – um arquivo – não serve apenas os factos, mas também a imaginação. Serve para um dia imaginarmos o que já foi e, até, o que já vivemos. De certo modo, somos todos construtores não das cidades do futuro, mas principalmente das cidades do passado, aquelas que deixamos de habitar mas que habitam em nós. Como as cidades do futuro, também as do passado nunca estão terminadas.
9.
Há certas coisas que precisam de ser associadas a formas geométricas que possam ser experimentadas. Por exemplo: a palavra quarteirão. Até me mudar para Lisboa, a palavra quarteirão só existia nos livros. Em Lisboa, comecei a combinar encontros no quarteirão tal. A andar até ao quarteirão seguinte. E era como se desvendasse o mecanismo da cidade. Depois, vi que os quarteirões escondiam pátios e jardins mal cuidados, e escadas ferrugentas abertas de uns vizinhos para os outros – que deviam estar nos filmes como as de Nova Iorque – e comecei a entender melhor a cidade.
10.
Um jardim nunca é o mesmo jardim, mais ou menos escondido num quarteirão. O tempo trabalha os materiais das cidades de modo único. Os passeios de calçada, onde as minhas filhas jogam de caminhar nas linhas pretas, saltando as brancas, ainda não são reproduzíveis fora desta cultura. O desenho feito no mesmo lugar, pela mesma pessoa, com o seu traço inconfundível, a olhar para a sua rua preferida, nunca é igual. Talvez seja um problema de reprodução que nos preocupa. Afinal, as nossas vidas deviam ser exclusivas.
11.
As minhas filhas, ao contrário de mim, têm o hábito de desenhar. A mais pequena gosta de ir desenhando e ir perguntando a mim ou ao pai o que é o desenho dela. Basta ela acrescentar uns traços para que a forma mude e também as nossas respostas. Com ela reaprendo que pode ser mais interessante o que os outros vêem do que aquilo que nós queríamos dizer quando decidimos pegar num papel.

Susana Moreira Marques
É jornalista e escritora. Tem colaborado sobretudo com o Público e o Jornal de Negócios. Publicou dois livros de não-ficção. Gosta de cidades pela quantidade de histórias que habitam nelas. Foi para se perder no meio de ainda mais histórias que viveu em Londres cinco anos. Saiu do Porto com 18 achando que era temporário, mas ficou em Lisboa e é a Lisboa que sempre regressa.
Belo texto.
Quando desenho na rua, há sempre alguém que espreita e me diz “Eu nem um traço consigo fazer”. Digo-lhe experimente fazer um traço, dois, vários e depois sairá um traço bem desenhado.
É um gosto que se revive todos os dias e que tento motivar outros a experimentar. Desenhar obriga-nos a observar.
Obrigado.