“Está mesmo fixe a exposição”, diz Walter Gonçalves, a acabar de pintar os bancos à entrada de Interferências, que abre amanhã. “Gostaste?”, responde António Brito Guterres, um dos curadores da mostra, sorriso de missão cumprida. “Yá”, assegura Walter, passando o pincel na última demão de cinzento ao som do hip hop de Julinho KSD que toca no ecrã que faz parte da mostra.

Aquela música diz muito a Walter, como diz toda a exposição – arte urbana, chamam-lhe os folhetos e as explicações na parede, mas para ele é a gente de que ele gosta (como Julinho), que fala a sua linguagem, que conhece as suas lutas e a sua história. Aquela é a cidade dele – “este é o meu bairro”, disse, orgulhoso, apontando uma foto. Nunca o bairro dele estivera no museu.
É também por tudo isso que a opinião de Walter é tão importante para António Brito Guterres, Carla Cardoso ou Alexandre Farto (Vhils) que seguiram a proposta do programador do MAAT, João Pinharanda, para trazer para o Museu este questionamento da cidade, entre o centro e a periferia. Interferências, chama-se assim. Ao lado, Vhils apresenta Prisma, uma das suas obras oníricas, em vídeo, desta vez, que dá mote aos próximos meses no MAAT (e que a Mensagem vai visitar ainda esta semana).
Para mostrar a Lisboa da “diversidade cultural”, uma “metrópole segmentada e antagónica”, das histórias que poucos contam, das culturas urbanas que se cruzam… ou não. Aqui, cruzar-se-ão. No Museu chique que agora alberga murais, instalações, rap, hip-hop, grafitti, arquitetura, fotografia, vitrais… cruzamentos e comparações de artistas consagrados e outros desconhecidos – Unidigrazz e Ana Hatherly, Julião Sarmento e Diogo VII, entre muitos, muitos outros.
Um “lugar de encontro entre várias comunidades e sensibilidades – as instaladas que o frequentam e as subalternizadas que o desconhecem –, ponto de partida para novos começos” diz-se na apresentação. Vai haver workshops, até setembro, que podem mudar o curso da própria exposição, com acrescentos e ideias.
A arte e a interferência das ideologias, urbanas e sociais: desigualdade, pobreza, racismo, heranças comuns, assumidas ou não, voluntarismo, vontade e sonho. E o MAAT – Museu de Arte, Arquitetura e Tecnologia da Fundação EDP, transformado no palco de tudo isso. Na sua exposição mais política de sempre?
Lisboa dentro do museu, como Lisboa dentro da vida de António Brito Guterres, co-curador desta exposição, ativista e investigador urbano, dinamizador comunitário nos territórios da Área Metropolitana de Lisboa, diretor na Fundação Aga Khan, e membro do conselho editorial da Mensagem. Esta entrevista é uma espécie de preâmbulo para a exposição. Que há muito se impunha.
Moves-te nesta Lisboa de que fala a exposição, entre centro e periferia… O que é que esse caminho te trouxe?
Cresci no centro de Lisboa, em Arroios, que na altura, nos anos 80, era um sítio muito vazio. Via as mesmas pessoas, as mesmas famílias, ouvia os mesmos discursos… e eu sempre desconfiei disso. Cresci muito sozinho, não havia muitos jovens nem crianças na minha zona e eu aventurei-me sempre a explorar.






Arroios não era o sítio misturado que é hoje…
Arroios, Arco do Cego, Estefânia… Na rua da minha mãe, à noite, só havia um carro estacionado. Havia principalmente empresas e pessoas mais velhas, que viviam lá desde os anos 40. Era um sítio sem espaços de encontro de rua. Como vivia perto da central dos elétricos do Arco do Cego, deambulava muito pela cidade, sozinho. Nunca tive problemas em estar sozinho. Era muito observador. Crescer naquele núcleo em que cresci, que é central, tem muitos transportes, é ser privilegiado, eu sei – há uma equidistância entre o centro e a periferia, norte ou sul, que não existe para quem mora na periferia norte ou sul.
O que é que isso mudou em ti?
Isto fez-me olhar para a cidade além das fronteiras, dos limites administrativos, fez-me pensar mais nos fluxos das pessoas. Em Arroios, os cafés abriam às 5 da manhã e fechavam cedo porque à noite não havia clientes. Às 6 da manhã já tínhamos uma paisagem de pessoas que não eram dali e sempre me interroguei sobre isso. Chegavam para a limpeza dos escritórios e depois chegavam os funcionários desses escritórios, e eu via essas camadas ocuparem os mesmos espaços, sem se cruzarem. Comecei a pensar: de onde é que as pessoas vêm? Vêm todos para aqui, onde ninguém mora… E fui crescendo e olhando para isto…

Ou seja, foi essa observação do mundo que te formou politicamente?
Sempre tive a sensação, desde novo, que o espaço, como ele nos é apresentado, é sinónimo de uma determinada hegemonia, de uma visão do mundo. No fundo, o que está a acontecer no centro da cidade, a maneira como é regido economicamente, depende de outros, que são explorados até ao tutano para que haja este teatro social. Quando olhas para a Lisboa de agora, que perdeu o seu toque industrial e é praticamente de serviços, financeira… Há diferença na forma como se olha para os expatriados e os imigrantes. Há novos trabalhadores em Lisboa, profissionais liberais, mais qualificados… Em Sillicon Valley também é assim, e lá sabemos que 40% da mão de obra é logística e são normalmente mulheres negras. Essa imigração dá-se porque houve uma relação colonial com determinado país e com isso mudaram-se os valores de troca: da matéria-prima, que é explorada, e que deteriora a qualidade de vida dessas pessoas, fazendo com que essas pessoas do sul venham para cá. Está tudo interligado. A produção na cidade, como ela existe, mostra como o mundo é regido. É uma lente brutal para o mundo.
Em que momento é que percebes, no meio do privilégio onde habitas, que há imensas histórias que não são contadas?
Em miúdo, ali, via de tudo. Havia um senhor com um estaminé no meio da rua que carregava lixo – ia buscar o lixo a casa das pessoas e trazia para a rua. Quem podia dizer à minha mãe se eu já tinha chegado da escola ou não, eram as prostitutas que estavam lá. Havia as porteiras também, que muitas vezes faziam esse trabalho em troca de habitação. Desde miúdo que vejo essas diferenças. Depois, comecei a envolver-me em movimentos sociais ali e nos bairros à volta, ocupávamos casas… E viajei pela Europa quando se lutava, no final da década de 90, contra a globalização económica, depois dos movimentos fortes em Seattle, em Praga, em Génova. As pessoas juntavam-se e viajavam para lutar coletivamente e eu sabia que havia discriminação: nós viajávamos e as pessoas não-brancas, vindas de África, eram deportadas. E dentro da cidade isto também acontece.
Nessa altura, surgiu um convite para trabalhar com crianças e jovens no bairro da Curraleira, que tinha acabado de ser realojado. O meu pai era urbanista, e estava também muito ligado ao movimento da oposição antes do 25 de Abril, e isso ajudou a associar isto a uma luta societária.
Além disso tinha amizades com jovens noutros bairros, um deles o Primero G, o Jorginho, rapper da Pedreira dos Húngaros, com quem fazia uma espécie de viagens no espaço urbano, algo muito mais inatingível do que hoje. Todos os fins de semanas íamos para um bairro diferente, bairros autoproduzidos ou realojamentos. O Jorginho fazia as batidas num discman, e levávamos um minidisc e uma máquina de filmar. Íamos de bairro em bairro para gravar e um mês depois aparecíamos lá com tudo montado. Houve casos também em que ajudámos a criar espaços coletivos, estúdios comunitários – mostrar que era possível.

Viagens na cidade… eram difíceis?
Muito mais do que hoje. Isso mudou radicalmente com o alargamento do passe metropolitano. Antes era mais barato ir do Vale da Amoreira para Londres do que a viagem de ida e volta do Vale da Amoreira ao Cacém. Nessas viagens comecei a perceber que essa dicotomia era muito forte localmente e podia envolver a minha visão política enquanto luta diária. Na Curraleira, no Vale da Amoreira, Miratejo, Mira Sintra, Bairro Alto, Outurela, Portela, Alta de Lisboa… Pouco a pouco, percebi que esse trabalho de cara a cara, de experiência e de vida, precisava de ser agregado. Todos os bairros escondidos, ocultos…
A tua observação de menino começa a ser experiência vivida, tornaste-te num observador super-participante…
Parava e observava. Fazíamos estúdios de música, ajudávamos a criar espaços comunitários… Juntávamos alguns trocos e uma vez por ano íamos todos, um de cada bairro, para fora de Lisboa durante três dias para produzir música. Para criar uma união entre todos, entre territórios, mas também para partilhar ideias e criar uma rede. Lisboa, era para eles o triângulo Terreiro do Paço, Rossio e Cais Sodré. Era comum ligar ao Jorginho, perguntar onde ele estava e ele dizer-me “Estou em Lisboa” quando estava no centro. Mas ele vivia em Lisboa, nos Húngaros, isso também é Lisboa, não é só o centro ultra-simbólico. Quem mora no bairro do Rego, diz que vai a Lisboa e mora em Entrecampos. Há uma música do Vado Más Ki Ás que fala disso, sobre o gueto e a cidade. Eles estão no 6 de Maio e ele aponta para a cidade, do outro lado da rua. Mas esse discurso pode ser transformado, no sentido de potenciar algo negativo, em positivo.
Sentiste que estavas a mudar alguma coisa só por estar a ligar pontos… Ou era preciso mais?
Muita coisa é intuitiva. Se és relacional e não queres adquirir nenhuma forma de poder, queres que as pessoas interajam e se relacionem.
No fundo também é uma forma de poder. É frustrante não teres mais poder de mudança?
Há uma frustração óbvia pelo estado das coisas e das pessoas, que foram colocadas em determinada situação sem outras opções e sem acessos. Há uma Constituição sofisticada e contemporânea, mas apesar das coisas estarem escritas e serem de conhecimento geral os direitos e os deveres fundamentais, há quem não tenha acesso a eles. No centro urbano, no Liceu Filipa de Lencastre, há 1.2% de abandono e retenção no 2º Ciclo e 2 km ao lado, nas Olaias, é 36%, e 50% na Alta de Lisboa… Aí percebes que o próprio sistema económico neoliberal se baseia nessa desigualdade. Agora, eu não me canso nem me frustro com o trabalho. O que me frustra é saber que cresci num mundo que não é paritário nem equitativo, e é bastante desigual. O meu trabalho não é ir contra isso, mas ir a favor de algo melhor.

Tu estás na ligação entre o mundo sem acesso e o mundo com acesso, fazes parte da elite de Lisboa. Essa elite tem noção nisso? É de propósito que ignora ou simplesmente vive?
Há muitas respostas a essas questões. Uma: o mundo está feito de modo a que a elite não pense sobre a desigualdade do sistema. Vives no teu privilégio. No 25 de Abril houve uma causa coletiva e as pessoas estavam disponíveis para abdicar de algum privilégio individual por um privilégio coletivo. A isso seguiu-se a uma espécie de regressão em que se trocou a defesa coletiva por privilégios individuais, ter casa na praia, dois carros, um VHS… Fez-se a revolução e pronto.
Por exemplo, em Lisboa, não tens ninguém que se candidate às eleições e que olhe para a cidade como um desafio societário, não há quem faça apologia da coesão. Muitos votaram neste e naquele por causa da ciclovia que passa à frente de casa…

Uma das discussões recentes é a importância da Almirante Reis para a política de Lisboa, que é praticamente nula…
É sinal de que podes olhar para uma cidade que recebe ali muitas pessoas durante o dia, mas esqueceres-te que há muitas pessoas que não têm acesso a esse tipo de mobilidade. Nem às alternativas: as Giras não chegam a certos bairros, as plataformas de transportes não chegam a certas partes da cidade. Entre 1/6 a 1/7 das pessoas em Lisboa vivem em bairros camarários…
Essa parte da sociedade talvez ainda nem tenha percebido a importância de um voto, do poder que tem, pelo voto.
Isso faz parte da anemia da sociedade. Mas mesmo para quem está mais seguro, o ir votar não é o que mais está à mão. Podem ter dois trabalhos, das 4h às 22h, têm de fazer comida para os filhos, há pessoas sem documentos… Há inúmeras razões possíveis para a pessoa estar alheada das eleições. É um processo que exige um grau de engajamento… que um precário muitas vezes não tem. Houve grande mobilização para as eleições na comunidade cigana, foi incrível. Para garantir que o Chega não atingiria uma posição de força. Também houve mobilizações de grande parte dos afro-descendentes, em locais mais distantes e segregados. Nas zonas mais periféricas, quase todos são imigrantes. Segundo o estudo que fiz sobre o realojamento na AML, só 1/3 dos habitantes nasceu na AML. Migração interna ou externa, e isso é incrível. Demonstra bem como se consignam algumas pessoas a determinado tipo de trabalhos na cidade, para sustentar uma economia global. Mas mesmo as elites de Lisboa são pessoas de fora. Vêm de famílias burguesas do interior, do Alentejo.
Há algum sítio no mundo que sirva de exemplo? Onde a criatividade que encontras na periferia é aproveitada, é gerida de maneira diferente e onde o centro não está vazio?
Não conheço exemplos específicos. Há uma, tendência global dos centros tornarem-se sítios mais caros para viver. Em Nova Iorque, não é fácil viver em Manhattan, por exemplo. Uma das propostas dos grandes grupos económicos foi “Vamos revigorar” o centro, em vez de deixar ao abandono. Mas a verdade é que as coisas continuam como estavam. Na época da troika, havia uma vontade de fazer uma série de reformas, muito latas e abrangentes, sobre a justiça, a educação, a saúde… e de repente surge uma lei muito específica: a das rendas. Num país em que quase 80% das pessoas tinham habitação própria. Com o crédito bonificado, a única política de habitação era as pessoas comprarem casa. Qual é o grande interesse de liberalizar a lei das rendas? Percebe-se claramente que foi o centro das cidades, onde estava tudo arrendado. O dinheiro começa a vir para Lisboa. Dinheiro não tangível. Antes reclamavas perante um proprietário específico, perante um município, mas de repente há uma omissão: são fundos de investimento, não sei de onde vem, não posso fazer nada… Há uma abstração equívoca.
O resultado dessas políticas é o contrário do pretendido para a cidade. Não há um poder de gestão da cidade para essa parte societária de que falavas…
Nós tínhamos uma Baixa, antes de tudo acontecer, que era maioritariamente constituída por um comércio estável, muito específico – claro que não podiam existir 100 retrosarias, mas sobreviviam algumas pela sua inovação e diferenciação, que garantiam um envolvimento familiar, um trabalho estável. O modelo económico que geria essas lojas era a a vizinhança, a proximidade, a especialidade, o vinculo laboral efetivo. Passámos a ter um cenário de part-time de 6 horas, precários.
A Baixa é um exemplo extremo, já estava algo desocupada. E agora estão também as zonas à volta.
Havia em Lisboa uma inner city, mas de classe média. Normalmente o inner city é aquela zona entre o centro e a periferia onde ficaram os projetos de habitação social. Em Lisboa eram Avenidas Novas, da classe média, e as zonas populares no centro e periferia. O que vai acontecer é que isso vai mudar, porque mudaste os moradores e não o território.
Que pressão é que isso faz nas periferias? A classe média está a mudar-se também?
Já notas que isso está a acontecer na Amadora pelos preços das casas junto à estação da Reboleira, uma classe média a chegar a locais onde havia mais imigrantes. Pessoas mais desfavorecidas, que não moram em bairros sociais, dividem a casa com muitas outras pessoas. Em Queluz, a Avenida Miguel Bombarda, “AV”, tem um ar muito burguês, parece a Avenida de Roma, e foi tomada por pessoas imigrantes, especialmente da Guiné, Cabo-Verde… E nas traseiras, pelos estendais, vês a acumulação de pessoas. E há poucas casas para arrendar nesses espaços periféricos, porque historicamente foram compradas. Há muitos para arrendar, no centro, mas é impossível, por causa dos preços. Portanto está a pressionar imenso.
Nesta questão dos bairros históricos e do realojamento, é importante falar da economia de vizinhança que está a ser destruída e cujo valor muitas vezes nem pode ser quantificado. As pessoas que viviam nesses bairros, apesar de tudo, tinham uma economia doméstica a funcionar. Podiam ir trabalhar às 6h porque a vizinha levava os filhos da escola… Mas isso acaba. O repensar dos territórios acaba com essa forma de viver e gerir. Preço do gasóleo e da comida? Importantíssimo. Mas o afastamento da cidade torna-te mais dependente ainda. Já conheci pessoas que preferiam pagar 400€ por um T0, num pátio do Bairro da Liberdade, que tem muitos pátios insalubres, mas para manter o emprego têm de ali ficar. As pessoas são mais ricas por terem essa economia familiar, e abdicam de outras alternativas.

Vês esta exposição como uma espécie de evolução, algo que há uns anos não era possível e hoje é, uma apropriação, um simbolismo…
Pode acontecer isso. Eu vejo isto como uma oportunidade. Fez-se a proposta, foi aceite. Não houve contingência alguma. O que eu espero disto é mais perguntas. Perguntas novas. Quero que o pessoal saia daqui com mais perguntas e isso os obrigue a mexer e a pensar mas quero também criar outras ligações e percursos na cidade. Isto não é uma cena comunitária, é contar a história de uma cidade a partir de várias vozes e quero que essas vozes sejam referenciadas como tal. Como ator que escreve. E o que vai sair daqui não consigo antecipar.
A exposição Interferências pode ser vista no MAAT, a partir de quarta, dia 30.

Catarina Carvalho
Jornalista desde as teclas da máquina de escrever do avô, agora com 51 anos está a fazer o projeto que melhor representa o que defende no jornalismo: histórias e pessoas. Lidera redações há 20 anos – Sábado, DN, Diário Económico, Notícias Magazine, Evasões, Volta ao Mundo… – e segue os media internacionais, fazendo parte do board do World Editors Forum. Nada lhe dá mais gozo que contar as histórias da sua rua, em Lisboa.
✉ catarina.carvalho@amensagem.pt
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