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Já não há Curraleira nos mapas, mas há – na cabeça de quem mora nos prédios altos que lá se ergueram em 2001. E o bairro Casal da Boba, na Amadora, não é assim que é chamado pelos moradores: é também conhecido por 503, reflexo da estrutura do bairro – 5 prédios alinhados, outros 3 do outro lado e um parque (0) entre eles. Já na Alta de Lisboa, “as pessoas que hoje compram casa [lá] dizem que vivem na Alta, mas outros são do PER 7 [um dos bairros de realojamento PER, de Lisboa], por exemplo, e os miúdos dizem que moram no BGQ, porque este é o antigo bairro da Quinta Grande”.

Foi assim que António Brito Guterres abriu a exposição “Os mapas também o são, os mapas também não”, no Teatro do Bairro Alto, na quinta-feira passada (dia 19 de maio). A exposição mostra outros mapas (os sociais e artísticos) de Lisboa e da Área Metropolitana, indo além da cartografia tradicional que dá nomes às ruas e avenidas por onde passamos e onde vivemos.
Ao todo, são sete os mapas criados com a coordenação de António Brito Guterres, da Fundação Aga Khan e membro do conselho editorial da Mensagem, que resultam de propostas recolhidas da anterior conferência “Os mapas também o são”. E que causaram espanto no público que os visitou: têm como temas música, os nomes dos bairros sociais, a ideia de criminalidade, aqueles que vivem nas costas da cidade e as infraestuturas. Além de um mapa livre.
Mapa 1: Bairro meu, bairro meu, que nome é o teu?
Na sala escura, tudo o que vemos ao entrar é uma tela iluminada com Lisboa lá dentro. Mas não é a Lisboa que conhecemos. “As manchas verdes que estão a ver é aquilo que as câmaras municipais [da AML] apontam como bairros sociais e a perceção de quem vive neles é bastante diferente”, começa por explicar António Brito Guterres.
Num trabalho de equipa com Nuno Trigueiro, desenharam um novo selo para cada bairro, conscientes de “uma grande desafetação entre as nomenclaturas que se usa para os bairros sociais e aquelas que as pessoas de lá lhes dão”.
É o caso da Curraleira, do Casal da Boba e da Alta de Lisboa.

Mapa 2: Qual é a tua música?
Até quando os desenhamos através da música se desenha um novo mapa. É que Lisboa não se faz só do fado de Alfama. Nas mesmas esquinas onde se bisa Amália Rodrigues e até se ouve cante alentejano, “estão jovens que produzem a sua música, nas suas casas”. Quem o lembra é Nuno Barbosa, vindo do PER 7.
No mapa digital dedicado à música mostram-se os lugares de 300 músicos, quase todos de rap, num raio de 100 quilómetros, e que nasceram e cresceram nos bairros assinalados com selo – os que eram considerados “sociais”.

É aqui que os dois mapas se cruzam. Nuno, o anfitrião, lembra como, “mesmo não existindo muitos transportes entre eles [artistas], todos se conectam, porque se identificam com a música que produzem”. Os problemas, as queixas e as dúvidas são semelhantes para quem vive a sentir-se sempre na periferia.
Mynda Guevara parece ser nome conhecido entre o público, que pede para percorrer a lista à procura de novos artistas. “Oh. A Mynda já toda a gente conhece.” E a Red Chickas, da Arrentela?
Diz Nuno Barbosa que “estes jovens costumam ter mais aceitação fora do país do que cá”, mas o surgimento de plataformas digitais como o Youtube deu rosto às pessoas “e o movimento cresceu”.
E como é que eles se financiam?, questiona o público presente. “Vai cantar à minha terra, vai cantar à tua terra… É assim”, responde.
Mapa 3: O mapa do Castelo por contar
São poucos os habitantes que restam do aglomerado populacional mais antigo de Lisboa, o bairro do Castelo, em Santa Maria Maior. Poucos para lembrar como o “mercado quinzenal era ponto importante da vida social do bairro”, o dia em que chegou “o primeiro telefone e primeira TV ao bairro”, o “transporte em carroça, que trazia produtos do mercado da ribeira”. E o “senhor João, que tinha uma taberna e mercearia” e que “à noite dava as sobras aos habitantes do bairro”. Ou o “forno comunitário e silo de cereais” que lá havia e como a compra de cereais se fazia “em conjunto pelas várias famílias e em cada semana uma das famílias fazia o pão para todos”.
Foi para ir atrás das memórias que ainda restavam do bairro que o projeto TRAÇA nasceu. Organizado pelo Arquivo Municipal de Lisboa, desde 2015 recolhe filmes familiares das memórias pessoais dos lisboetas, para assim mostrar a memória da cidade. Mas rapidamente estranharam não estar a receber imagens daquele que é um dos bairros hoje mais fotografados de Lisboa.
“Provavelmente porque o material para filmar e fotografar não está ao alcance de todos”, diz Inês Sapeta, do Arquivo.

É ela quem nos recebe numa longa mesa onde jaz a cartografia deste bairro, cujo mapa sentimental ainda estava por relatar. “O bairro ficou muito esvaziado desde a reabilitação que começou nos anos 90. À medida que as pessoas foram saindo, os espaços públicos foram desaparecendo. Hoje, estão mais em contacto com o mundo, com as histórias que os vizinhos estrangeiros trazem”, lembra.
Assim sendo, em 2015, em conjunto com um coletivo de antropólogos e com a ajuda de moradores, levaram à população do bairro três perguntas: uma sobre o passado, sobre a memória; outra sobre o presente, sobre que percurso faz no bairro no dia-a-dia; e outra sobre o futuro, que zona não conhece que gostava de conhecer no bairro ou como o mostraria a alguém novo.
Daqui resultaram memórias individuais e coletivas como a do forno comunitário. E como a maioria destas histórias está conectada com o largo de Santa Cruz, “onde as pessoas se encontravam”. Deu até “para desenterrar alguns mitos”, como a história da “mulher que morava no número 3 e, porque a casa era pequena, foi ter o bebé na casa ao lado, que era maior”.
Mapa 4: Afinal, onde há mais criminalidade?
O quarto mapa da exposição é uma provocação aos preconceitos. Vergado sobre uma mesa, José Baessa de Pina lamenta como, “até ao dia de hoje”, os jovens vindos de bairros da periferia são facilmente “conectados com os gangs [criminosos]”.
“Eu era um desses jovens que a sociedade e os media conotava com os gangs”, diz.

Ideias e preconceitos que levaram António Brito Guterres, coordenador desta exposição, a comparar o volume de notícias sobre crime cometidos nestas áreas periféricas e mais vulneráveis com o real volume de criminalidade.
Manchou um mapa da área metropolitana, onde as manchas contam como notícias sobre crimes – quanto maior a mancha, mais espaço a palavra “crime” teve nos jornais portugueses. E aqui, a olho nu, não há dúvidas da zona mais manchada: Amadora, mais concretamente na Cova da Moura.
Já os dados recolhidos em estudos sobre as taxas de criminalidade mostram uma discrepância face às manchas. É sobretudo no centro de Lisboa e na zona da Mina que é registada maior taxa de criminalidade.
Mas, nestes lugares, as manchas são tão pequenas ou até nulas que fazem acreditar, quem abre um jornal, que são os locais mais seguros de Lisboa.

José Baessa de Pina abre a reflexão: se é nestes lugares que há mais criminalidade, porque é que zonas como a Amadora têm mais destaque nos jornais como protagonistas do crime? “Uma narrativa para assustar a sociedade” e que eterniza velhos preconceitos, que mexem com o dia-a-dia de quem lá mora, diz. “Por exemplo: quero ir para a Boba, às 5 da manhã. O taxista diz-me: ‘Não, não. Só vou até à zona da esquadra’.”
Mapa 5: Nas costas da cidade
Sobre preconceito, Carla Alves e Mário Maia sabem bem falar. Nascidos e criados na antiga Curraleira, trazem à exposição um mapa diferente do lugar que habitaram e onde moram hoje, 11 anos após o realojamento.
“Porque é que esta gente dizia que tinha saudades do bairro antigo?” A pergunta começou a ser feita por Carla e outros organizdores comunitários, aos jovens na Quinta do Lavrado, onde parte das famílias da antiga Curraleira foram realojadas.
A dúvida deu direito a um projeto de criação de murais em vários lotes da zona das Olaias, onde ficassem marcadas memórias do bairro da Curraleira e Casal do Pinto – antes de terem sido destruídos para construção dos novos prédios de realojamento.
A água foi o fator comum em cada pintura, porque “demorou muito para as pessoas terem água canalizada e, por isso, as memórias iam ao encontro do chafariz do Alto do Pina”.
“Eu que tenho 40 anos ainda me lembro e não ter água em casa”, lembra Carla Alves, da associação Geração com Futuro.
A pouca que tinham iam buscar ao velho Chafariz do Alto do Pina, presente em quase todas as memórias de infância dela: na brincadeira, para os habitantes beberem, para dar aos animais e até para salvar dos incêndios. Devido à falta de eletricidade, era fácil um incêndio propagar-se no bairro. Carla aponta para um cruzeiro há muito plantado nas Olaias em homenagem a uma criança que morreu num incêndio no bairro.
“Os bairros eram construídos por quem vinha para Lisboa trabalhar, não por delinquentes”, como se habituaram a ser chamados, conta Carla. O roteiro Costas da Cidade, criado pelos moradores, hoje até um passeio para turistas, ajudou a mudar preconceitos.
Diz Mário que “com as Costas da Cidade, foi possível trazer pessoas para os bairros para terem outra imagem deles”.
E, de repente, a plateia também traz histórias. Esta é sobre uma rotunda das Olaias que gerou contestação dos moradores daqueles bairros sociais por acreditarem que estariam ainda mais fechados à cidade com as saídas estudadas para a rotunda. A luta foi em vão e deixaram para as gerações futuras a mesma sensação de estar nas costas da cidade.
Mapa 6: O fenómeno de Talaíde
Quase na reta final do circuito cartográfico de Lisboa, António Brito Guterres abre a caixa de um dos maiores segredos da área metropolitana. À nossa frente, vemos uma mapa que retrata a fisionomia da “transição económica de cidade industrial para cidade informacional e como uma hegemonia económica produz espaços antagónicos mas necessários para a economia neoliberal que temos”.
Parece complicado, mas explica-se. No centro da história, está Talaíde, uma zona dividida por três concelhos: Cascais, Oeiras e Sintra. “Um sítio que, não há muito tempo, uns 30 anos, era rural”, lembra António.
Desde 1995, “aconteceram coisas que fazem parte da construção de espaço que aqui vemos hoje em dia”, aponta para o mapa. Foi na década de 90 que Talaíde deixou de ser rural para acolher loteamentos, “com prédios-modelo, com parque infantil”.
Loteamentos que, afinal de contas, acabaram fechados, nunca abriram. “Até é possível fazer corridas de motas lá, porque o código da estrada nem entra ali”, conta o organizador da exposição.
Na mesma altura, a poucos quilómetros, novos lotes são erguidos para o realojamento do bairro dos Navegadores, “onde não havia um parque infantil e 46% dos adultos só tinha a quarta classe”. E, a outros poucos quilómetros, o Taguspark, “sítio de pessoas qualificadas e que não sabem onde fica o bairro dos Navegadores, embora lá trabalhem pessoas do bairro – mas de noite.”
Contrastes que não deixaram a plateia indiferente e que e traduziram em propostas e ideias soltas no último dos mapas: um mapa livre, de post-its escritos pelo público da exposição. “Choque de realidade”, lê-se, ao lado do que parece ser uma certeza, escrita em letra maiúscula: “A cidade é bem maior do que o centro”.
Em breve, todos estes mapas, entre outros, vão contar outras histórias aqui, na Mensagem.

Catarina Reis
Nascida no Porto há 27 anos, foi adotada por Lisboa para estagiar no jornal Público. Um ano depois, entrou na redação do Diário de Notícias, onde aprendeu quase tudo o que sabe hoje sobre este trabalho de trincheira e o país que a levou à batalha. Lá, escreveu sobretudo na área da Educação, na qual encheu o papel e o site de notícias todos os dias. No DN, investigou sobre o antigo Casal Ventoso e valeu-lhe o Prémio Direitos Humanos & Integração da UNESCO, em 2020.
✉ catarina.reis@amensagem.pt
Olá. Fabuloso.
Haverá alguma nova sessão do “Os mapas também o são, os mapas também não”? É que perdi… 🙁
Obrigado pela partilha!
Abraço.
Olá. Mehor contactar o Teatro. É possível que haja mais sessões no final do projecto.