Há muitos anos, eu e ela julgávamos que ia ser para sempre. Acho que os nossos amigos também. Eu tinha 11 anos, ela outros tantos, e logo ali achei que me cabia encher-lhe mil páginas de poemas manhosos. Já com uma década eu era incapaz de fugir ao meu destino.

Não é que falássemos a mesma língua. Ela dizia-me, por exemplo, que gostava muito de ir passar férias ao Rio de Janeiro e eu respondia-lhe que também gostava e costumava ir, apesar de nem saber de que lado do mar era o Brasil. Ela ia várias vezes e nunca saía do resort.

Um dia, estava eu tão longe do Rio de Janeiro quanto em todos os outros da minha vida, perguntei-lhe o que ia fazer no fim-de-semana. Ela disse-me “Nada de especial” e eu perguntei-lhe se gostava de ler. “Se não houver nada melhor, pode ser”, disse-me, e as estrelas multiplicaram-se no céu, e o sol também (que o sol é uma estrela), quando lhe entreguei 1127 páginas de versos mal amanhados. “Então lê isto”, disse-lhe, e ela pegou naquilo. Era tanto peso, ou tanto amor, que até a lombar tombou. Afinal, ela era ainda 30 e tal quilos de gente, 11 anos de pessoa.

O fim-de-semana a seguir foi um tormento. Naquele tempo, ainda não havia telemóveis, não tinha como persegui-la à distância, saber se andava a comer waffles no Fórum em vez de estar em casa a ler ao seguir-lhe as histórias do Instagram. Isto passou-se há tanto tempo que ainda nem Fórum havia. E eu, claro, também não tinha Internet.

Enquanto esperava, tentei ler, mas os olhos descolaram-se das páginas. Tentei jogar futebol, não marquei golos. Fui à baliza, levei frangos. Tentei escrever, mas já tinha dito tudo. Quem mais tem para verter depois de mais de mil páginas?

E por fim a segunda-feira aconteceu. Fui ter com ela no primeiro intervalo, a comer um Bollycao com ar indiferente.

– Então, já leste?

E ela:

– Não tive tempo de ler tudo.

– Leste o quê, metade?

– Li umas 20 páginas.

Era pouco, mas chegava e a partir dali deu-se o acordo tácito. A partir dali, era eu e ela, o que quer dizer que a partir dali éramos nós. Quando a Andreia do 6ºD me empurrou na fila do bar da escola, ela apeou-se no seu cavalo branco e puxou-lhe o cabelo. A tonta da miúda queixou-se e o meu coração de criança pôs-se em galopes ao entender que já não havia volta a dar.

Tínhamos 11 anos e o amor não era nada do que se via na televisão, nada de arranha-céus com vista ao longe em Nova Iorque, nada de lagostas grelhadas em frente ao mar, menos ainda andar de sapatinho num restaurante cheio de pretensões e comida XXS. O amor na altura era a fila do bar, miúdos cobertos de chuva e suor, o cheiro quente e de casa de um croissant misto aquecido e uma meia de leite com açúcar.

Ia ser para sempre, tínhamos a certeza, e só não foi porque acabou. Esse pequeno pormenor deitou tudo a perder, não fosse isso e teríamos tido Nova Iorque, lagosta e restaurantes Michelin. À nossa volta, havia o que tinha de ser tudo: um arrebatamento virgem, uma esperança a estalar cheia de pressa. E eu disse-lhe assim, como quem promete o mundo: “Queres ir dar uma volta pela escola?”

Não quis, doía-lhe um pé, tinha botas novas, e ficámos as duas a falar ali sozinhas. Na altura, tínhamos desafios épicos, hercúleos, problemas heróicos que só duas heroínas podiam ultrapassar: ela não tinha tido Excelente a Português, eu tinha tido falta de material a Matemática. Ela chegou a chorar de aflição, mas quem é que saber de matemática? A única conta que interessava dava em 2.

Os anos passaram, fez-se a nossa história. Levámos com uma tempestade em cima, apanhámos um escaldão à beira-rio. Ela disse-me para pôr protector, eu quis fazer-me de forte, e depois fiquei a penar o mês inteiro. Chegou o Natal e o abismo entre nós ia estalando. Ela deu-me uma prenda muito mais cara do que a minha, que lhe gravara um CD do João Pedro Pais sem acreditar mesmo que ninguém era de ninguém porque eu sabia de quem era.

Desembrulhei o livro e ali fiquei, com o meu primeiro Hesse na mão, a pensar se alguma vez o afecto seria par igual e a concluir que não, e de repente a envergonhar-me do CD do João Pedro Pais, que nem sequer era original, e a ficar tão aflita e distante que era ela a responder, envergonhada, “Se não gostaste, podes trocar, o senhor da livraria é que me disse que era bom”, e eu já a sentir-lhe a fúria de se sentir preterida ou de ter escolhido a coisa errada, quando eu ainda por cima lhe tinha dado um CD sabendo que ela era rica e os pais lhe tinham dado um MP3 nos anos.

Mas enfim, chegou Janeiro e nós ouvíamos João Pedro Pais no meu leitor. Em vez da vida, partilhávamos os phones que eu comprava por um euro nos chineses e que morriam após uma semana, mas isso era também partilhar a vida e foi mais ou menos assim que nós vivemos. Depois começámos a chatear-nos muitas vezes. Eu porque ela era tão queque, ela porque eu lhe sorria às amigas. De nada me adiantava explicar que só me esforçava para ser simpática por serem amigas dela, indo em força bruta contra os meus instintos, e ela também me dizia que não fazia mal ser queque, e eu bem sabia que não, só começava a saber que isso entre nós viria a ser uma barreira intransponível. Em crianças, nivelávamo-nos, depois iria cada uma ao seu destino.

E assim foi, cada uma para seu lado. Ela na escola privada, com outros queques. Eu na pública, com pessoas normais. E durante muitos anos não soube nada dela. Por onde andaria, com quem estaria, o que diria? Será que, anos volvidos, vida vivida, se lembraria da promessa de nos estendermos no tempo?

Mudei-me para Lisboa quatro anos depois do nosso último encontro. Um dia, dissera-lhe Sá Carneiro ao ouvido. E durante anos vi-a em vários pontos da cidade: aquela turista de mochila em Santa Apolónia, aquela voz da funcionária da Loja do Cidadão em Sete Rios, a miúda zangada que me apitara para a mota de um Fiat Panda na Ajuda. Estava sempre em todo o lado, mas nenhuma era ela, o que, ilusões à parte, significava que ela não estava em lugar nenhum.

Até que há dois ou três anos entendi o impossível. A Terra tem 12742 quilómetros de diâmetro, cerca de 200 países, 7753 bilhões de pessoas. Qual seria a probabilidade de, tendo nós descruzado os destinos, nos cruzarmos numa rua, metro certo, hora certa, dia certo? Pensei-o finalmente no Chiado e, ao pensá-lo, entendi-o. Um cabelo esvoaçou atrás de mim, julguei que fosse o dela. Aproximei-me, o vulto também, e afinal era alguém que vinha do Brasil como ela viera das férias. O sotaque era diferente, a vida era outra, e por fim lá entendi que, apesar dos poemas, das promessas, das ilusões, da ingenuidade de achar que um dia as estrelas se alinhariam no céu e nós na Terra, a vida seria mais pragmática, menos sonho, e nós seríamos pedra sólida apenas no passado.

Voltando atrás, é fácil julgar que talvez pudéssemos ter jogado raquetes à beira-mar na Póvoa. Ou comido sushi com vista para o mar em Cascais. Ou podíamos ter bebido um Ucal às duas da manhã no Cais do Sodré, que era o que bebíamos quando vivíamos e ainda não havia Cais do Sodré e, às duas da manhã, já há muito os nossos pais nos tinham mandado para a cama. Mas no fundo, mesmo no fundo, ainda durante a esperança, acho que sabíamos as duas que nunca haveria volta a dar.

Tudo aconteceu ao longe, tínhamos 17 anos de permeio. Eu já tinha aceitado guardá-la como um sonho. Já sabia que a vida não é como nas crónicas. Já tinha a certeza de que a vida ia aos ziguezagues e não em recta. Por isso, ao vê-la ontem, de máscara, no Terreiro do Paço, vejam lá, julguei que era eu a ceder à minha mania de dar atenção ao que morreu. Talvez fosse de novo a turista, a funcionária, a condutora, a brasileira, mas não podia ser, aqueles olhos tinham de ser dela. O sol batia-lhe em cheio como a luz lhe batera a vida toda.

Passei a mão pelo cabelo, aproximei-me. Com o passado às costas, perguntei-lhe “Tudo bem?” e ela disse “Tudo”.

Fiquei parada a ver, não disse nada. Tinha o Tejo atrás, azul batia em azul. No mundo nunca houve cor igual. E então olhei melhor – não era ela.


Ana Bárbara Pedrosa

Veio para Lisboa estudar Literatura em 2012. Daqui só saiu para o Brasil, onde, à portuguesa, teve saudades dia e noite. Regressada, escreveu Lisboa, chão sagrado e a cidade foi a diva onde se perderam personagens. Anos depois, numa casa em Benfica, foi ao Médio Oriente e escreveu Palavra do Senhor. No mesmo sítio, meteu a cabeça em Vizela e escreveu Amor estragado. Para os de cá, tem sotaque minhoto; para os de lá, engravatado.

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