A denúncia chega de várias pessoas em situação de sem-abrigo, como Nazaré, de 77 anos: desde a semana passada, diz, tem tomado banhos de água fria nos contentores que servem de casas de banho num dos edifícios da Manutenção Militar, na rua do Grilo, no Beato. “A água arrefece logo, mas eu lavo-me na mesma! Para se tomar banho de água quente, é preciso acordar às cinco da manhã!”.

O alerta foi lançado pela página Lisboa Invisível através de um vídeo onde se ouve: “Não há luz, não há água, há água fria. As pessoas têm que tomar banho…”. Nazaré, e outros utentes, confirmam esta informação às portas da Manutenção Militar. Banhos de água fria, noites sem eletricidade: é o cenário descrito por ela e por outros que para aqui foram transferidos desde o dia 28 de março, vindos do Quartel de Santa Bárbara, em Arroios – que, durante os últimos anos, serviu de teto para tantos sem um (embora sempre envolto em alguma polémica).

À Mensagem, a Câmara Municipal de Lisboa afirma que se trata de uma “situação pontual” e não uma regra:

“A indicação que temos é de que neste momento tudo estará operacional e a funcionar da melhor forma possível. Poderá ter surgido alguma situação pontual, numa mudança desta dimensão, mas que foi sempre prontamente intervencionada e corrigida”.

Uma outra fonte, que conhece a situação vivida na Manutenção Militar mas prefere não ser identificada, esclarece: “Há água quente no edifício, mas, com a quantidade de pessoas que ali agora vive, o cilindro não aguenta, impossibilitando que todos consigam tomar banho de água quente”. Também haverá eletricidade no primeiro piso, mas, com pessoas a entrar e sair, por vezes vai a baixo. “Está a viver-se um período de adaptação. Em breve, estará tudo a funcionar”, acredita.

Mas o caso do Beato só adensa uma discussão bem maior na cidade: o crescimento do número de pessoas sem lugar para viver, numa crise da habitação que tem chegado a vários estratos sociais e que traz para morar na rua os chamados “trabalhadores pobres” – pessoas que trabalham, mas para quem o trabalho não é suficiente para assegurar um teto -, assim como tantos que chegam a Portugal com a esperança de um emprego que nunca se concretiza.

E embora os centros de acolhimento sejam um mecanismo de sinalização destas pessoas, deve ser apenas temporário – o problema continua por resolver em definitivo, sem soluções suficientes para o que se tornou Lisboa.

Transferência polémica

No dia 1 de março, a Câmara Municipal de Lisboa anunciava que o centro de alojamento montado no quartel de Arroios – que sempre se soube ser temporário, já que o edifício seria transformado em habitação acessível – seria transferido para a ala norte da Manutenção Militar, edifício cedido pelo Governo à autarquia. E que seria alvo de uma profunda intervenção, que estará pronta até ao final do ano.

A Fundiestamo, empresa que gere o património público, como é o Quartel, estipulou como prazo para a sua desocupação o dia 30 de setembro de 2023. Mas a CML aguardava espaço alternativo e o acordo com o Governo só foi celebrado no dia 29 de fevereiro deste ano. Nele, previa-se a desocupação do Quartel de Santa Bárbara no espaço de 30 dias, pelo que, no dia 28 de março, quem estava no centro foi imediatamente transferido para instalações provisórias da Manutenção Militar – e aqui, na pressa com que decorreu o processo, é que estará a base destas denúncias.

“O novo Centro de Acolhimento de Emergência Municipal (CAEM) foi montado em tempo recorde após o acordo firmado entre a Câmara Municipal de Lisboa”, diz a CML.

Mas a notícia da transferência não foi bem recebida pela Junta de Freguesia do Beato, que lançou de imediato um comunicado:

“Consideramos esta situação como um grave erro estratégico de avaliação das condições em que se encontra a Freguesia, nomeadamente as profundas carências económicas, sociais e estruturais existentes no território, que não acompanham a evolução que tem existido na cidade de Lisboa, acabando por gerar um descontentamento geral nos moradores.”

Entre as preocupações da Junta de Freguesia, estão, para além de ali já existirem três centros de acolhimento (o Centro de Acolhimento do Xabregas, o Centro de Acolhimento do Beato e a Unidade Integrativa para Pessoas em Situação de Sem-Abrigo), a proximidade da Manutenção Militar a uma escola básica e a um jardim de infância – a Escola Básica do Beato -, bem como ao Hub Criativo do Beato, um equipamento que dizem ter permitido à freguesia “sentir-se por fim integrada na sua cidade”.

Contra a vontade da Junta de Freguesia, o centro de alojamento foi efetivamente transferido para a Manutenção Militar no dia 28 de março. E à Lisboa Invisível, os utentes contaram a “forma conturbada” como foi levado a cabo o processo de transferência do Quartel para a Manutenção Militar.

“Tinham-lhes dito que a transferência seria de manhã, mas só aconteceu à noite, num dia de chuva. Foram transportados nas carrinhas de associações, foram muitas viagens, e os últimos utentes só chegaram à 1h30 da manhã”, conta a Lisboa Invisível.

Uma fonte que acompanhou o processo descreve-o mesmo como “um caos”. “Faltou energia elétrica em alguns dos andares, os utentes queixaram-se da falta da água quente…”. A mesma fonte denuncia ainda a “falta de acessibilidade” das instalações provisórias, uma vez que existe quem se desloque com canadianas e quem tenha problemas de coluna. “A questão da mobilidade não foi pensada”.

Todo o processo, diz fonte anónima que acompanhou a transição, foi feito sem preocupação com as pessoas que, de um dia para o outro, mudaram de morada e se viram incapacitadas de cumprir as rotinas já criadas no Quartel de Santa Bárbara.

“Estamos a falar de pessoas de pessoas com consumos, que muitas vezes precisam de auxílio… Há pessoas que não conseguem subir as escadas, que não conseguem entrar nas banheiras. São pessoas expostas a uma maior vulnerabilidade.”

Para além disso, diz faltarem talheres no refeitório. “Os jantares foram servidos com os poucos talheres que havia, uns comeram à mão, outros foram partilhando os talheres entre si, o que, no que diz respeito ao contágio de doenças infecciosas, foi uma preocupação.”

Esta quarta-feira, dia 3 de abril, o Bloco de Esquerda levou a reunião privada de Câmara Municipal um requerimento em relação à transferência do centro de alojamento do Quartel de Santa Bárbara para a Manutenção Militar, questionando em que condições foram feitas a transferência das pessoas em situação de sem-abrigo e equipas técnicas e em que condições se encontra o edifício.

O acordo entre o Governo e a CML para a ocupação deste edifício vigorará durante 20 anos, podendo ser prolongado, através de acordo entre ambas as partes, por um máximo de 50 anos.

Foto: Inês Leote

Sem-abrigo em Lisboa: o que nos diz este caso sobre a cidade de hoje?

O que se vive hoje já se viveu no passado. Desde 2020 que a população em situação de sem-abrigo salta de espaço em espaço, sem um centro de acolhimento definitivo, e com os fregueses muitas vezes a oporem-se à instalação destes centros nas suas freguesias, como acontece hoje no Beato.

A polémica que se gerou com a transferência do centro de acolhimento de Arroios para o Beato faz, aliás, lembrar uma polémica anterior: a da transferência de parte das pessoas em situação de sem-abrigo que pernoitava no Pavilhão do Casal Vistoso, no Areeiro, para o Quartel de Santa Bárbara – anunciada em finais de março de 2021.

A criação de um centro de acolhimento no Pavilhão do Casal Vistoso remete ao ano de 2020, marcado pela pandemia de covid-19, quando se verificou uma grande afluência de pessoas em situação de sem-abrigo à cidade de Lisboa. Na altura, espaços desportivos ou de estadia tornaram-se casa para muitas delas: além do Pavilhão do Casal Vistoso, a Casa do Lago (apenas para mulheres), a Pousada da Juventude do Parque das Nações e a Casa dos Direitos Sociais da CML (numa primeira fase, estavam no Clube Nacional de Natação).

Mas, com o levantamento das restrições, os fregueses do Areeiro começaram a reclamar o uso do pavilhão do Casal Vistoso. Foi então que o então vereador com o pelouro dos Direitos Sociais na CML, Manuel Grilo, do Bloco de Esquerda, anunciou nova morada para quem dormia no Casal Vistoso: o antigo quartel da GNR, de Santa Bárbara. A notícia motivou petições por parte das duas freguesias – Areeiro e Arroios -, com o Areeiro a opor-se à manutenção do Casal Vistoso enquanto centro de acolhimento, e Arroios a opor-se à sua transferência para o Quartel de Santa Bárbara.

O centro de acolhimento no Pavilhão do Casal Vistoso. Foto: Orlando Almeida

A falta de um centro de acolhimento definitivo será resolvida até ao final do ano, diz a CML. Um problema que espera para ser resolvido há já quatro anos e que preocupa, tendo em conta as estatísticas que, até agora, provam um aumento da população em situação de sem-abrigo na cidade de Lisboa.

Em maio de 2023, os dados apresentados em Assembleia Municipal relativos ao ano de 2022 mostravam que havia 394 pessoas “sem teto” (ou seja, a viver em espaço público, em abrigos de emergência ou em lugares precários) e 2744 “sem casa” (a viver em alojamentos temporários).

Numa reportagem recente do Público, dá-se conta de um aumento de pessoas a dormir na área dos Anjos, uma zona já conhecida pela sua concentração de sem-abrigo, dada a sua proximidade ao Centro de Apoio Social dos Anjos, refeitório da Santa Casa da Misericórdia de Lisboa. Muitos dos que ali dormem, em tendas, são de nacionalidade estrangeira, tendo sido sinalizada a chegada de senegaleses e gambianos em fevereiro, mas verificando-se também a presença de timorenses, brasileiros, marroquinos…

No início do ano passado, o aumento de pessoas em situação de sem-abrigo nesta zona de Lisboa causou uma outra polémica, com um grupo de amigos anónimo a denunciar a instalação de grades onde antes havia tendas. Um sinal que interpretaram como “arquitetura hostil” – a introdução de elementos arquitetónicos em espaço público para afastar a presença dos sem-abrigo -, embora a CML tenha apontado a requalificação do jardim António Feijó como motivação para a colocação das grades.

Tendas na Almirante Reis. Foto: Carlos Menezes

Sem um centro de acolhimento definitivo na cidade, e muitas vezes vendo-se impedidos de dormir nos lugares que melhor conhecem, a população sem-abrigo muitas vezes esbarra ainda contra mais entraves. Nazaré, a viver há uma semana na Manutenção Militar, desabafa: “Eu lavo-me, mas é difícil com o frio…”. Um problema que outros sem teto também enfrentaram quando, no ano passado, se viram sem água quente nos balneários do Largo de Santa Bárbara, em Arroios.

E o assunto não é pormenor: no passado, a Mensagem já deu conta da importância de um banho quente, especialmente para a população em situação de sem-abrigo. Por isso, em Lisboa, também se contam bons exemplos:

Amélia Simões Figueiredo, coordenadora de um projeto de extensão universitária da Universidade Católica, o Public Bathhouse Nursing, com foco nas populações vulneráveis que recorrem aos balneários públicos da cidade, explicava: “Estes balneários fazem muita falta. Conferem dignidade à pessoa, o banho, a possibilidade de trocarem de roupa…”. Algo a que se assiste no balneário da associação Viver Melhor no Beato, onde a vida dos moradores do bairro Carlos Botelho mudou com a “dignidade de um banho”.

Bairro Branco Carlos Botelho Balnearios publicos
No bairro Branco, um balneário tem dado autoestima aos moradores e aos sem-abrigo que por lá passa. Foto: Inês Leote

Ana da Cunha

Nasceu no Porto, há 27 anos, mas desde 2019 que faz do Alfa Pendular a sua casa. Em Lisboa, descobriu o amor às histórias, ouvindo-as e contando-as na Avenida de Berna, na Universidade Nova de Lisboa.

ana.cunha@amensagem.pt


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1 Comentário

  1. Só li o cabeçalho,algo como os sem-abrigo do Beato queixam-se da água fria…
    Pois bem,medindo circunstâncias diversas tais como género,faixa etária,situação sócio-económica,saúde,etc,…
    Alguns poderão ter razão,…
    O que é facto,é que poder ter um espaço para poder tomar banho e fazer alguma higiene já é óptimo!
    Eu,tanto para poupar como por outras razões,de há dois anos que na maior parte das vezes tómo-o de água fria,…
    E no Inverno após fazê-lo,por estranho que pareça,eu pelo menos,sinto-me mais confortado.

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