Os fregueses de Arroios sempre viram pessoas em situação de sem-abrigo a pernoitar no jardim António Feijó, junto à Igreja de Nossa Senhora dos Anjos. “Ali sempre dormiu gente”, denuncia a porta-voz de um grupo de amigos que, um dia, reparou que as várias tendas daqueles que ali dormiam foram substituídas por grades.
Convencidos de que tinham sido ali postas para afastar os sem-abrigo, dias depois romperam pelo jardim dentro para as derrubar – um momento que ficou registado num vídeo que tem estado a circular pela internet.
A Câmara Municipal aponta a requalificação do jardim como motivação para a colocação das grades. Mas o acontecimento acendeu a discussão sobre como as cidades criam elementos hostis para afastar os sem-abrigo.
Se não são grades, são pilaretes, armações em escadas e até floreiras. E estão em Lisboa.
A isto chama-se “arquitetura hostil” ou “aporofobia” – um termo cunhado em 2017 pela professora de filosofia Adela Cortina e que traduz “a rejeição sistémica da pobreza e das pessoas sem recursos”. Mas, em Lisboa, o grande problema continua a ser a falta de alternativas à rua.


O que aconteceu no jardim António Feijó?
Foi ali, no jardim António Feijó que, entre os meses de maio e junho, começaram a surgir tendas, ocupadas sobretudo por imigrantes do norte de África, embora também houvesse portugueses. Terão chegado a pernoitar naquele espaço 25 pessoas. Afinal, este é um lugar com casas de banho e que está muito próximo do Centro Apoio Social dos Anjos (CASA), onde tantos procuram uma refeição.

A situação era aquela que agora tanto se vive em Lisboa: algumas destas pessoas trabalhavam, mas não conseguiam pagar casa, tal como afirmou o padre Paulo Araújo, daquela igreja, ao Polígrafo.
O acontecimento chamou a atenção do Bloco de Esquerda que, na altura em que as grades surgiram pela primeira vez, publicou um requerimento, questionando que tipo de ação fora levada a cabo para a retirada das pessoas que ali dormiam e quem decidira a colocação das grades.
Faltam provas de que as grades tenham sido colocadas como mais um dos vários exemplos na cidade de arquitetura hostil. E embora o BE não tenha obtido resposta, à Mensagem a Câmara Municipal de Lisboa explicou que tudo aconteceu no âmbito da requalificação do Jardim António Feijó. Remetem ainda a pergunta para a Junta de Freguesia de Arroios, que até à data de publicação deste artigo não respondeu nem esclareceu em que consistiria esta obra.
Junto ao jardim, surge um cartaz onde se pode ler que se terá iniciado uma intervenção no dia 25 de janeiro, que duraria por três semanas. Mas a porta-voz do grupo que derrubou aquelas grades não acredita nesta justificação: “Alegar a requalificação da limpeza do jardim não é explicação suficiente, até agora só se plantaram bolbos”.
Entretanto, as grades voltariam a ser colocadas, mas o grupo de amigos anónimo não terminou a luta naquela noite: convidam agora todos para a ocupação daquele espaço, num picnic a acontecer no dia 18 de fevereiro, pelas 15:00. “O espaço é da cidade e as pessoas têm o direito a ocupá-lo”, diz a porta-voz.
Para onde foram estas 25 pessoas?
Mas, e as 25 pessoas que pernoitavam naquele jardim de Arroios? A CML diz ter-se associado a várias entidades (como o Alto Comissariado para as Migrações, a Santa Casa da Misericórdia de Lisboa e a Junta de Freguesia de Arroios) para encontrar soluções de acolhimento, encaminhando as pessoas para o Centro de Acolhimento de Emergência Municipal e para o projeto Housing First.
Quando a Mensagem contactou a Housing First da Associação CRESCER, um dos vários projetos de Housing First no país, ninguém sabia desta entrada. Já o Centro de Acolhimento não confirma nem nega ter recebido pessoas vindas desta situação específica.

Pilaretes e outros elementos hostis em Lisboa
Mas há outros exemplos de arquitetura hostil na cidade. “Tenho assistido a esses fenómenos em Lisboa”, denuncia Américo Nave, diretor-executivo da CRESCER. “As pessoas por vezes colocam floreiras, madeiras, tapam janelas… é uma forma de dificultar a vida de quem está numa situação de vulnerabilidade”.
Aquilo que se tem verificado é que, muitas vezes, moradores e lojistas colocam estes elementos sem licenciamento. Em 2019 noticiou-se que, na Avenida Dom Rodrigo Cunha, na freguesia de Alvalade, um morador teria instalado um conjunto de pilares, sem licenciamento, à volta do prédio onde vivia, para assim afastar as pessoas em situação de sem-abrigo. Foi depois obrigado a retirar o que ergueu.
Um exemplo mais recente poderá ser uma estrutura metálica colocada num edifício junto à loja MANGO dos Restauradores. Sobre esta estrutura, a CML diz não ter registo, afirmando que procederá à sua fiscalização. Mais recentemente ainda, à volta do Continente do Martim Moniz, surgiram painéis de madeira, onde foi depois inscrito “Construir paredes é violência”.



Na primeira e terceira fotografia, vê-se uma estrutura de ferro em cima de escadas, junto aos Restauradores. Na segunda, uma estrutura em frente ao Continente no Martim Moniz. Foto: Inês Leote
Noutros casos, Américo Nave crê que pode ter havido ações por parte da Câmara Municipal e da Junta, também por pressão de moradores.
Sem poder pernoitar onde antes pernoitavam, esta população tem de procurar outro lugar na cidade, porque quer as soluções temporárias quer as permanentes são escassas. “A questão é que neste momento não há vagas para as pessoas sem-abrigo, e muitas vezes os locais onde estão a dormir são para eles locais com segurança, onde sabem onde podem tomar banho, comer, guardar os seus pertences…”, diz o diretor da CRESCER.
Vedar espaço público: legal ou não?
O Manual Espaço Público de Lisboa especifica os procedimentos a adotar para se instalar mobiliário urbano em espaço público, mas sem nunca referir o termo “arquitetura hostil”.
“A instalação de mobiliário urbano e equipamento deve pautar-se por exigências de salvaguarda dos equilíbrios ambiental e estético, da segurança e fluidez do trânsito de viaturas e peões, e dos legítimos interesses de terceiros”.
Manual Espaço Público de Lisboa
Segundo o Regulamento Geral de Mobiliário Urbano e Ocupação da Via Pública, considera-se mobiliário urbano:
“Esplanadas, quiosques, bancas, pavilhões, cabines, vidrões, palas, toldos, sanefas, estrados, vitrinas, expositores, guarda-ventos, bancos, papeleiras, sanitários amovíveis, coberturas de terminais, pilaretes, balões, relógios, focos de luz, suportes informativos, abrigos, corrimões, gradeamento de proteção, equipamentos diversos utilizados pelos concessionários de serviço público e outros elementos congéneres”.

A ocupação da via pública com estes elementos está sempre sujeita a licenciamento, que terá de ser solicitado à Câmara, mediante um requerimento onde terão de constar elementos como o desenho da área e a volumetria a utilizar e a memória descritiva com os materiais a utilizar.
Já a colocação de floreiras, talvez a estratégia mais usada nos últimos tempos e não abrangida no mobiliário urbano, está sujeita a comunicação prévia dirigida à Junta de Freguesia, e as suas condições de instalação e manutenção estão previstas no artigo 14.º do Decreto-Lei n.º 48/2011, de 1 de abril (Licenciamento Zero).
No Brasil, um padre pegou numa marreta e mudou uma lei
A discussão sobre a arquitetura hostil acontece até do outro lado do oceano, em São Paulo, no Brasil, onde um padre conseguiu ver implementada uma lei que protege a vivência de sem-abrigo nas ruas.
O dia 2 de fevereiro de 2021 teria sido um dia normal na rotina da cidade paulista, não fosse a imagem insólita que se formou no viaduto Dom Luciano Mendes de Almeida: com uma marreta, um homem de 72 anos demolira as pedras que tinham sido instaladas pela prefeitura para ali impedir a permanência da população sem-abrigo.
Esse homem era o padre Júlio Lancellotti, uma figura já bem conhecida na cidade pela sua luta contra a “aporofobia”. Um conceito que ganha muitas formas mas uma delas, e com a qual o padre Júlio Lancellotti tem vindo a lidar, remete para um outro termo: a arquitetura hostil.
O investigador brasileiro Felipe da Silva resume a finalidade deste tipo de arquitetura: “restringir ou impedir o uso de determinado local”. Ou seja, afastar grupos “indesejáveis”.
Isso tanto se faz pela ausência de equipamentos como WC, bebedouros ou superfícies para sentar, como de forma ainda mais perversa, através de elementos tão “hostis” quanto peças pontiagudas em passeios ou alpendres, bancos com braços que não permitam que as pessoas se sentem ou deitem, grades, cercas, arame farpado, entre outros – como expunha uma publicação do The Guardian de 2014.
“Tenho uma convivência de muitos anos com a população de rua e na convivência diária eles foram falando desses aspetos hostis na arquitetura”, explica o padre Júlio.

Foi por isso, e contra esta realidade bem visível em São Paulo, que o padre Júlio conseguiu, com muito esforço, que uma lei proibisse este tipo de arquitetura no Brasil.
Uma lei aprovada no início deste ano e que proíbe a utilização de materiais, estruturas, equipamentos e técnicas de construção consideradas “hostis” que resultem na “alienação” de pessoas sem-abrigo, idosos, jovens.
Um problema desde a Roma Antiga
A origem deste termo é incerta, mas é bem possível que a arquitetura hostil sempre tenha feito parte da vida urbana.
No estudo “Unpleasant Design“, mostra-se como o plano de reconstrução de Paris por Haussman era já um exemplo de “controlo social”, onde o “planeamento físico executava um código de conduta social, remontando a interesses governamentais para o controlo social”.
E podemos recuar até mais longe, à Roma Antiga, quando os palácios impediam que a população comum percorresse a sua própria cidade.
No entanto, é por volta dos anos 1980 e 1990 que se começa a prestar mais atenção à arquitetura hostil nos Estados Unidos. É nessa altura que o policiamento aumenta nas cidades americanas, condenando-se comportamentos dantes considerados banais como dormir, sentar, esperar.
Foi um problema que se começou também a sentir no Brasil na década de 1990, quando os governos optaram por “soluções repressivas e coercivas de manutenção da ordem”, como explica Débora Faria. Uma ideia que já não seria novidade neste país, onde a sociedade urbana já criara uma categoria de “classes perigosas”.
Estes elementos hostis acabam por proliferar também em várias cidades europeias, como se pode ver num vídeo do artista francês Gilles Pattes, em que este procura deitar-se ou sentar-se em lugares ocupados por instalações hostis em Paris.
Entretanto, começam a surgir soluções para denunciar estes elementos: cada vez mais páginas partilham fotografias de arquitetura hostil nas cidades, criando-se um mapa com as suas localizações.
O próprio padre Júlio está a fazer isso com o Observatório Aporofobia: “Criámos esse mapa para localizar onde estão os casos e vamos tentando a remoção dos elementos”.
“No final do dia, vão continuar sem casa”
Em “Unpleasant Design“, o mesmo estudo, escreve-se que “muitas das soluções do design desagradável são empregadas pelas autoridades com o objetivo de tornar os espaços mais simpáticos (…)”.
Afinal, a motivação deste tipo de arquitetura acaba por ser tirar as pessoas da rua, tornando os espaços mais “agradáveis”, mas não da forma certa, argumenta Hannah Wyatt na sua tese:
“Enquanto a arquitetura hostil pode temporariamente tirar aqueles que não têm casa de uma área, no final do dia eles vão continuar sem casa e continuarão a ter o mesmo tipo de comportamentos num outro lugar. Muitas destas instalações quase funcionam como uma quarentena para os sem-abrigo, puxando-os para fora da vista e, para os políticos, fora da mente do público geral.”
Hannah Wyatt
Contas feitas, o problema não é resolvido ao afastá-lo, apenas muda de morada. E, por isso, Raquel Carvalho, investigadora da Católica Research Centre for the Future of Law, diz mesmo que é preciso agir perante as razões certas:
“Eu até admitia que houvesse normas que impedissem que qualquer pessoa pernoitasse ao relento, não porque parece mal, mas porque não deve haver pessoas a dormir na rua. As pessoas tentam atacar o efeito, e não resolver a causa, o problema é sempre esse.”
Raquel Carvalho
Também o fotógrafo William Whyte, que refletiu sobre a arquitetura hostil em Nova Iorque, escrevia no seu livro The Social Life of Small Urban Spaces que “o grande obstáculo à provisão de melhor espaço público é o problema dos indesejáveis”. “Mas eles não são o problema, são as ações levadas a cabo contra eles que são o problema”, remata.
Como retirar a população sem-abrigo da rua?
O padre Júlio Lancellotti aponta a receita mágica: “É a casa e o trabalho”, diz ele. “É o binómio que tem de estar conjugado”. Algo difícil na realidade do Brasil em que vive, onde a mobilidade social leva “nove gerações”. Em Portugal, a OCDE estimava que uma família que se situe nos 10% mais pobres demora cinco gerações até atingir a média de rendimento do país.

Américo Nave, da CRESCER, diz qual o problema em Portugal, e em Lisboa: “O problema das pessoas em situação de sem-abrigo é que as respostas não estão adequadas. As respostas que se dão são as mesmas que se davam há 40 anos”.
Há estudos sobre como as soluções habitualmente oferecidas pelos centros de acolhimento não funcionam.
Na sua tese, Hannah Wyatt cita um estudo conduzido por Jill Pable em 2018 com duas famílias (cada uma constituída por uma mãe e dois filhos) em situação de sem-abrigo. Uma experiência com duas famílias, que ficaram numa unidade no mesmo abrigo durante dois meses, ponto a partir do qual uma das famílias foi para uma outra unidade com algumas melhorias.
Nessa unidade melhorada, a família tinha um espaço para guardar os seus pertences pessoais e até mesmo para expor as suas fotografias e cortinas que estabeleciam uma divisão em relação ao espaço dos outros utentes.
No final do estudo, o quarto original foi descrito como “cheio” e “claustrofóbico” pela mãe que permaneceu na unidade durante três meses. A mãe que se mudou para a unidade melhorada disse que se sentia “frustrada” no primeiro lugar. No novo espaço, as crianças passaram mais tempo em família.

É por isso que, para Américo Nave e para o padre Júlio, há um programa que funciona, exatamente por dar uma habitação adequada e prestar acompanhamento especializado: o Housing First (e para onde terão sido encaminhadas algumas das pessoas que dormiam em Arroios). Este é um modelo que começa por atribuir uma casa à população em situação de sem-abrigo, considerando que, a partir de um teto, se começa o caminho para o resto.
É um programa que está em vigor no Brasil, “de forma tímida”, diz o padre Júlio; e em Lisboa, mas falta “vontade política” para se avançar mais, diz Américo Nave.
O programa é também defendido na tese de Hannah Wyatt por custar menos 40% aos contribuintes do que estar a cobrir custos associados à situação de pessoas sem-abrigo.
Numa entrevista à Mensagem, o finlandês Juha Kaakinen explica:
“O Housing First pretende proporcionar primeiro a habitação, que consideramos um direito social, para a partir daqui ter, sim, expectativas realistas de que as pessoas podem resolver os seus problemas, com a ajuda de profissionais, é claro. Temos uma história demasiado longa de acomodação temporária e de desespero também.”
Juha Kaakinen
Ruas mais humanizadas?
Sem alterar as soluções que são hoje apresentadas às pessoas em situação de sem-abrigo, Hannah Wyatt conclui que os princípios aplicados nos espaços interiores podem também ser aplicados no espaço exterior.
Se, por um lado, “a solução ideal para pessoas em situação de sem-abrigo seria dar-lhes sistemas de apoio, de forma a mantê-los fora das ruas e assegurar-lhes habitação enquanto o direito humano básico”, por outro lado, o sistema está a falhar. Por isso, também as ruas têm de estar preparadas: a proximidade de serviços, as considerações de design (cores, texturas…), a criação de espaços que permitam descansar, apreciar arte de rua, ir à casa de banho são fundamentais em espaço público para todos.
É que Américo Nave sabe o quão fácil é uma pessoa encontrar-se, do dia para a noite, na rua. “As pessoas que hoje estão a pôr as clareiras podem ser elas um dia em situação de sem-abrigo”.

Ana da Cunha
Nasceu no Porto, há 26 anos, mas desde 2019 que faz do Alfa Pendular a sua casa. Em Lisboa, descobriu o amor às histórias, ouvindo-as e contando-as na Avenida de Berna, na Universidade Nova de Lisboa.
✉ ana.cunha@amensagem.pt

O jornalismo que a Mensagem de Lisboa faz une comunidades,
conta histórias que ninguém conta e muda vidas.
Dantes pagava-se com publicidade,
mas isso agora é terreno das grandes plataformas.
Se gosta do que fazemos e acha que é importante,
se quer fazer parte desta comunidade cada vez maior,
apoie-nos com a sua contribuição:
eu fui sem Abrigo durante 27 anos na cidade de Lisboa
eu fui sem Abrigo durante 27 anos na cidade de Lisboa e estou disposto ajudar quem quer mudar a sua vida como eu mudei com ajuda da comunidade vida e paz a Santa casa e a câmara de Lisboa
Lisboa está a tornar-se nazi? Qual é o próximo passo?
Cara Paula, venha viver para arroios. Onde à porta de sua casa urinam, dejetam, dormem, brigam, assaltam, se embebedam e drogam. Só no meu predio tenho 2 hostels ilegais. Foi feita queixa à camara, asae e policia e nada. São milhares de estrangeiros ilegais nesta freguesia. Agradeço a todos os politicos e tal como a maioria das pessoas civilizadas e com filhos, vou mudar me. Ainda acho piada em querem aplicar o dinheiro dos meus impostos a fomentar a especulação das rendas em Lisboa.