Depois da publicação desta reportagem, a Junta de Freguesia de Arroios resolveu o problema na caldeira e estas pessoas em situação de sem-abrigo voltaram a ter água quente nos balneários.

Todos os dias de manhã, o mesmo ritual: Ana sai da tenda que montou junto ao eixo da avenida Almirante Reis e caminha, com a roupa suja que traz no corpo, até aos balneários públicos do Largo de Santa Bárbara, em Arroios. Está em situação de sem-abrigo há algum tempo, habituou-se a percorrer as ruas da cidade até ao banho, mas desde há dois meses que já não são quentes, a água só corre fria nestes chuveiros.

Mais do que fria. “É água gelada!”, diz ela.

Um chuveiro, uma sanita, uma casa de banho. Equipamentos simples que fazem parte das nossas vidas diárias, tantas vezes tomados como garantidos, mas tantas vezes negados àqueles que não têm teto na nossa cidade.

Como Ana, que aos 27 anos fez da rua casa. Uma relação violenta, os três filhos que lhe foram retirados e uma depressão empurraram-na para esta tenda na Almirante Reis.

A Almirante Reis, essa avenida que é ponto de permanência para muitos – são visíveis as várias tendas montadas pela avenida abaixo. E não será por acaso: ali perto fica o Centro de Apoio Social dos Anjos, assim como outras instituições que prestam apoio à população em situação de sem-abrigo, é ponto de paragem das carrinhas de distribuição de comida e tem o balneário de Santa Bárbara a uns poucos passos. Por isso, pernoitar nesta avenida torna-se estratégico para quem procura sobreviver na rua.

Tudo o que Ana pede é um banho de água quente. Um pedido que é o de muitos outros na mesma situação, sobretudo nestes dias de inverno. Mas que está difícil de ver cumprido.

A tenda de Ana na avenida Almirante Reis. Foto: Inês Leote

A peça avariada da caldeira do Largo de Santa Bárbara

A Junta de Freguesia de Arroios não respondeu aos pedidos de esclarecimento em relação à falta de água quente. Mas um funcionário dos balneários do Largo de Santa Bárbara explicou que há dois meses uma peça da caldeira se terá avariado.

Desde então que a peça em questão ainda não foi substituída, nem a caldeira trocada. Para aqueles que sempre tomaram banho nestes balneários, uma população abrangente que vai de pessoas em situação de sem-abrigo àqueles que não têm acesso a um chuveiro em casa, resta, pois, o frio. Ou procurar outros balneários.

Há dias em que Ana se arrisca a uma multa, apanhando um autocarro em direção aos balneários em Alfama, sem pagar bilhete. Tudo para ter direito ao banho quente que perdeu no balneário de Santa Bárbara onde ia.

Nas proximidades da Almirante Reis, há um balneário no Largo do Mastro, no Campo Mártires da Pátria, mas o horário é mais limitado – fecha às 15h30. O próprio horário dos balneários de Santa Bárbara levanta dúvidas, visto que está apagado. O funcionário diz que o horário é das 7h às 19h, mas admite que a partir das 17h já não é habitual deixarem tomar banho. Aqui, chegam não só pessoas em situação de sem-abrigo, mas também outros que, tendo teto, não têm água quente em casa.

O horário apagado nos balneários de Santa Bárbara. Foto: Inês Leote

Na Alameda, há também outro balneário, mas os seus utentes queixam-se de que, quando o balneário masculino está a ser utilizado, o feminino deixa de ter água quente e vice-versa.

Para muitos dos que pernoitam na rua, encontrar um balneário com água quente nas proximidades acaba por ser uma questão de sorte. Muitos, cansados, acabam por se resignar à água fria dos balneários que estão habituados a frequentar.

Em que estado se encontram os balneários de Lisboa?

Os outros balneários que se espalham pela cidade estão demasiado longe para quem dorme na Almirante Reis. Dados da CML mostram que em Lisboa existem cerca de 22 balneários públicos, geridos pelas respetivas Juntas de Freguesia (serão mais, até porque o balneário do Largo de Santa Bárbara não consta desta lista).

Fotografia tirada no âmbito do projeto Public Bathhouse Nursing, vencedora do concurso “Cuidar da Casa Comum”. Foto: Amélia Simões Figueiredo

Todos eles muito diferentes uns dos outros. Se no Largo de Santa Bárbara corre água fria, a verdade é que há balneários onde se oferecem toalhas, gel de banho, roupa – como este criado pelas mãos dos moradores do bairro Carlos Botelho e sobre o qual já contámos a história. Quem o lembra é Amélia Simões Figueiredo, coordenadora de um projeto de extensão universitária da Universidade Católica, o Public Bathhouse Nursing, com foco nas populações vulneráveis que recorrem aos balneários.

É neste sentido que a Universidade Católica está a planear fazer um levantamento de todos os balneários da cidade, em articulação com o Núcleo de Planeamento e Intervenção Sem-Abrigo (NPISA), para se perceber de que forma se pode reconfigurar estes espaços, para dar mais dignidade a quem os procura.

Um trabalho que está também previsto pelo PCP, que tem demonstrado preocupação com a falta de água quente em Santa Bárbara.

Recentemente, foram mais longe na questão da higiene básica dos sem-abrigo e viram aprovada em reunião de Câmara uma proposta do partido para a criação de uma rede de instalações sanitárias públicas na cidade. Entre outras medidas, propõe-se, em conjunto com as Juntas de Freguesia, fazer esse mesmo levantamento das instalações já existentes, criando-se um plano de reabilitação e de construção.

Quem usa estes balneários?

Quando os balneários surgiram em Lisboa no ano de 1830, o objetivo era servir as populações mais vulneráveis que chegavam dos campos para a cidade e que não tinham acesso a água quente ou a um chuveiro.

Hoje, a realidade é um pouco diferente.

Embora ainda haja quem recorra aos balneários públicos por falta de água em casa (segundo os Censos de 2011, cerca de 4096 pessoas em Lisboa vivem em habitações sem instalação de banho ou duche), como a Mensagem aliás já contou, a verdade é que o “utilizador-tipo” dos balneários mudou.

Uma investigação levada a cabo pelo projeto da Universidade Católica debruçou-se sobre os balneários de Arroios (no Campo Mártires da Pátria), de Alcântara e de Santa Maria Maior, traçando um retrato sociodemográfico dos seus utilizadores.

Eles são, na sua maioria, homens solteiros, portugueses, na fase ativa da vida, muitos deles em situação de sem-abrigo. A maioria vive sem fontes de rendimento, não faz vigilância de saúde nem tem médico de família e apresenta problemas de saúde mental ou de adição.

“Estes balneários fazem muita falta”, diz Amélia Simões Figueiredo. “Conferem dignidade à pessoa, o banho, a possibilidade de trocarem de roupa…”

Os balneários no Largo de Santa Bárbara, há dois meses sem água quente. Foto: Inês Leote

O banho que ajuda a saúde mental

Mas a água quente, em falta em Santa Bárbara, é apenas o começo daquilo que podem vir a ser estes espaços. Como, aliás, mostra o projeto da Universidade Católica, através do qual professores universitários dão consultas de enfermagem no balneário de Alcântara.

A ideia é que os balneários possam também tornar-se “espaços de capacitação”, onde estas pessoas, tantas vezes com problemas de saúde mental, possam ser devidamente encaminhadas.

É algo que parece também faltar nos balneários do Largo de Santa Bárbara.

Vera Lazera, designer do PAN, tem acompanhado o caso de Ana, mas também o da amiga Tatiana, a viver no mesmo espaço na Almirante Reis.

Tatiana, de 27 anos, tem dificuldades de aprendizagem: é Ana quem a ajuda a ler, a escrever, a fazer contas. Mas o alfabeto e os algarismos não a salvam do frio, nem dos problemas de saúde mental de que sofre.

“A vida delas mudava se tivessem apoio psicológico mais regular”, explica Vera Lazera. “Elas têm uma assistente social, mas cada assistente social tem imensos casos, não é possível segui-los devidamente.”

Sanitários: poucos, pagos e fechados durante a noite

Um banho de água fria não é o único problema para aqueles que estão na rua. À noite, com os sanitários públicos fechados, são muitos aqueles que têm de aguentar a vontade de ir à casa de banho.

“Se tiver mesmo de fazer chichi, vou atrás do Banco do Portugal ou vou ao parque de estacionamento”, confessa Ana.

Margareti, uma mulher trans de 62 anos em situação de sem-abrigo, batalha com essa vontade de ir à casa de banho durante a noite. “Fico apertadinha, apertadinha.” E, muitas vezes, a solução é urinar em garrafas de plástico.

É um problema que não é só sentido pela população em situação de sem-abrigo, mas também pelos motoristas de táxis, de transportes públicos e seguranças que trabalham durante o período noturno, como lembrou o PCP na proposta feita à Câmara Municipal de Lisboa.

E não é exclusivo de Lisboa – o mesmo vive-se em muitas outras cidades europeias.

Em 2021, o estudo “The Public Toilet Index”, realizado pela QS Supplies, apurou que o país com maior densidade de sanitários públicos era a Islândia, com 56 casas de banho para cada 100 mil pessoas. Em Portugal, existiam 13 casas de banho para cada 10o mil pessoas.

Por isso mesmo, uma das medidas propostas pelo PCP passa por considerar a aquisição de uma parte das casas de banho que serão requisitadas pela Câmara para a Jornada Mundial da Juventude, para serem implementadas em lugares com falta de sanitários. Mas também por acabar com os pagamentos nas casas de banho – algo bastante habitual em Lisboa.

Vera Lazera sabe bem que a população sem-abrigo se reúne muitas vezes à noite em estabelecimentos com “happy hour”, onde gastam 50 cêntimos para finalmente poderem ir à casa de banho.

O estudo da QS Supplies aponta que esta questão – de falta de sanitários, ou então da obrigatoriedade de pagamento – é uma questão de direitos humanos que afeta sobretudo os mais vulneráveis (os idosos, as grávidas, as pessoas com deficiência, as pessoas em situação de sem-abrigo):

“Em suma, fazer chichi em público é um problema político. Enquanto os mais vulneráveis forem aqueles que precisem mais deste serviço, será preciso um esforço concertado para o progresso nesta questão humanitária.”

“The Public Toilet Index”, QS Supplies

Mas, enquanto se aguardam soluções, aquilo que se vive nas ruas é um verdadeiro problema de saúde pública, como aponta Rúben, em situação de sem-abrigo e a viver também na Almirante Reis.

É o frio que não dá tréguas nos chuveiros de Santa Bárbara, é a falta de sanitários durante a noite. “Muitas vezes acabamos por sujar as nossas próprias ruas”, desabafa.


Ana da Cunha

Nasceu no Porto, há 26 anos, mas desde 2019 que faz do Alfa Pendular a sua casa. Em Lisboa, descobriu o amor às histórias, ouvindo-as e contando-as na Avenida de Berna, na Universidade Nova de Lisboa.

ana.cunha@amensagem.pt

Inês Leote

Nasceu em Lisboa, mas regressou ao Algarve aos seis dias de idade e só se deu à cidade que a apaixona 18 anos depois para estudar. Agora tem 23, gosta de fotografar pessoas e emoções e as ruas são o seu conforto, principalmente as da Lisboa que sempre quis sua. Não vê a fotografia sem a palavra e não se vê sem as duas. É fotojornalista e responsável pelas redes sociais na Mensagem.

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3 Comentários

  1. Obrigada por este artigo, muito bem escrito, sem julgamento, preocupado com os direitos das pessoas e com informação atualizada. Sou moradora deste bairro, mesmo perto do Banco de Portugal e acompanho este dia a dia, trabalho na área social e por isso revejo-me no seu olhar. Espero que a junta de freguesia sinta um pouco mais de pressão com o seu contributo. Até o próximo artigo.

  2. Boa tarde, obrigada por relatar o abandono registado nesta freguesia.
    Casas de banho sem água quente.
    Elevadores no mercado 31 janeiro parados.
    Piscina fechada …..?!?!
    Elevador do mercado forno tijolo por inaugurar…. Nunca funcionou, porquê??!!
    Contentores da reciclagem// doação de roupa RETIRADOS do espaço público, porquê???

  3. Tão importante este contar de histórias dócil e fresco, mas impactante!
    Trazer à luz esse limbo que vai ocorrendo a par da nossa apressada forma de vida, é uma função primordial para a humanidade.

    Ainda bem que há olhos que procuram o que tantas vezes nos escapa! Parabéns Ana Cunha!

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