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Vê-se pelo corpo. “Pessoas que entravam meio encavacadas – começas agora a notar – que saem de cabeça levantada depois de um banho. Porque o olhar que vais receber de fora também é diferente. Os outros vão comentar coisas boas.” Se há mudança que o balneário público no Beato, no bairro Carlos Botelho, operou na comunidade foi na autoestima de quem o frequenta. Di-lo Amandine Bouillet, coordenadora na associação Viver Melhor no Beato, onde tem morada este espaço de higiene.
Há um ano, confessa, seria “impossível” ter Cândido Marques a sentar-se connosco para uma entrevista. Ele, antes um homem de barba sempre farta, habituado a banhos de água fria e poucos. Ou mesmo ver Maria Rosa a sair da associação com uma toalha na cabeça, em direção a casa. Lá vai ela, todas as sextas-feiras, com o saco de toilette e o secador.
Cândido ganhou hábitos de banhos quentes, Maria Rosa perdeu o medo que tinha ao tomar um.
Um banho que era medo
Se o assunto é onde se cruza a vida de Maria Rosa, 65 anos, com a do bairro, o rosto desta mulher muda de figura. Já não há sorriso que valha, porque a história é triste, diz.
É inquilina aqui, no também conhecido como “bairro Branco”, desde que estes lotes foram erguidos, há 21 anos. Ela vinda da Picheleira, onde teve, em tempos, uma “rica barraca”. Afinal, eram casas térreas de madeira e tijolo “com um grande quintal”, lembra. Transportou a vida para um quinto andar, “sujeita a rusgas e rusgas, com um elevador sempre avariado”, onde a vida “é um desassossego”.


O apartamento onde mora contrasta com a sujidade e desconcerto do átrio e das escadas do prédio. Há beatas e garrafas de plástico no elevador, papéis e mais plástico nos corredores.
Lá dentro da casa de Maria Rosa tudo parece ocupar o devido lugar.
A maior queixa é a banheira da casa de banho. Uma embolia pulmonar há quatro anos deixou-a refém de constantes faltas de ar e mais frágil ao exercício físico. Até as coisas mais básicas do dia a dia custam cumprir. Como entrar na banheira.
Mas, neste bairro, as casas foram construídas assim, com grandes tanques de água dentro da casa de banho. E Maria nunca viu nisso um problema até a idade e a saúde começarem a pedir mais auxílio.

“Tenho medo de cair.” Porque levantar a perna para pô-la lá dentro, vê-se pelo quanto treme das mãos ao exemplificar, é uma tarefa olímpica.
“Tivesse um polibã e era mais fácil.” Mas Maria Rosa não tem condições para se aventurar nestas obras – está desempregada e o companheiro segura-se com uma pensão de 250 euros. Então, ia compensando o medo com menos banhos completos, apenas lavando partes do corpo no lavatório.
“Já me disseram que, se a médica de família passar um relatório sobre os meus problemas de saúde, e entregar na Gebalis, eles me podem mudar”, diz. Até lá, vive com a solução que lhe mudou a vida.
Nunca tinha ido à associação coordenada por Amandine, no bairro. Por “vergonha”, admite. Até que lhe falaram dos balneários públicos gratuitos, há um ano. Ela, farta de fazer ginástica para entrar na banheira de casa e de fazer banhos diários não dignos desse nome, “foi logo nesse dia”.

Levou o champô, o gel de banho, a toalha, a gilete, tudo debaixo do braço – ainda que no balneário forneçam estes produtos. E fez disto hábito: todas as sextas-feiras, pelas 10 horas da manhã, lá vem ela. “Para tomar um banho mesmo à séria” – porque durante a semana, “mantém-se” a lavar um braço, uma perna, o que der.
A associação Viver Melhor no Beato está a precisar de donativos para continuar a dar condições de higiene a quem procura este balneário. Pode ajudar com: desodorizantes, champô, gel de banho, cotonetes, tintas para cabelo, espuma para barbear, giletes, entre outros.
Encontra-os na Rua Frederico Perry Vidal, Bloco 9, Cave, 1900-240 Lisboa
O balneário que ninguém queria
Este balneário esteve perto de nunca o ser. Quando a associação Viver Melhor no Beato abriu este espaço comunitário em 2019 todos tinham conhecimento do “ponto de água” que existia numa das salas, mas quase ninguém acreditou que poderia servir a população. Conta Amandine Bouillet que “alguns membros da direção diziam que já ninguém usava balneários públicos, mas o vice-presidente da associação, João Paulo Mota, disse que dava jeito, que nós não tínhamos noção das necessidades que havia ainda no bairro.”
As de pessoas idosas que já não conseguem usar as banheiras, como Maria Rosa. As de pessoas como Cândido, que não têm como tomar um banho quente nem a higiene como prioridade, pela situação frágil em que vivem. Acreditaram na palavra dele e armaram o espaço de duches, cortinas, um lavatório.
Nem um mês depois, o número de pessoas que iam chegando à porta do balneário comprovou a necessidade de que João Paulo Mota falava.



Foram exatamente aqueles de quem ele falou que acabaram por vir cá ter – por mês, há sete pessoas regulares no uso do balneário. Mas não só.
Este espaço tem também respondido a pessoas em situação de sem-abrigo. Há uns dias, apresentou-se ali na associação um rapaz de 23 anos, sem teto e encaminhado por gente no bairro que se cruzou com ele. Um rapaz para quem, sabe Amandine, um banho não é só higiene, mas “um momento de força, para repensar”.
Hoje, a associação já trabalha em parceria com entidades que estão a acompanhar as famílias da freguesia. “Se veem que é necessário, encaminham para aqui”.
Cada um com direito a um kit de limpeza: toalha, gel de banho, champô, cotonetes, desodorizante, tudo o que for necessário à limpeza. E acesso à lavandaria social, onde podem deixar a roupa, a seguir ao banho, para lavar, sem qualquer custo.

Embora o balneário público nesta associação não seja caso único. São vários espalhados pela cidade e dois no Beato, no ativo desde 2006 – ainda que mais longe deste bairro, a 15 e a 30 minutos a pé.
Na altura em que surgiram, estimava-se que fossem responder a 60 famílias, que não têm acesso a qualquer ponto de água em casa que permitisse um banho. Uma realidade confirmada anos depois pelos Censos de 2011, que dava contam de 4096 pessoas residentes em Lisboa e em habitações sem instalação de banho ou duche.
Os primeiros banhos de água quente
Cândido Marques fez parte desta estatística durante grande parte da vida.
Nasceu em Camarate, Loures, e o resto da história conta-se aos saltos. Andou de bairros em bairros, de barraca em barraca. Por isso aos 63 anos habituara-se à ideia de um banho frio. Quando era inverno lá fora, era sempre inverno dentro de casa também. “Íamos ao chafariz buscar baldes de água. Era o que se podia fazer.”
E mesmo com a vinda para o bairro Branco, onde passou a ter água canalizada e uma banheira, isso não mudou. Não mudou por falta de um esquentador, que Cândido diz não ter como pagar. E não mudaria, não fosse a chamada que recebeu há uns meses.
Um banho quente “é um alívio”. E ainda lhe parece um luxo. Está tranquilo e até com uma postura altiva. Amandine lembra que, há um ano, esta entrevista não aconteceria assim, à frente de um homem vaidoso que, em tempos, mostrava-se envergonhado pela falta de higiene.

Conta a coordenadora da associação que Cândido pediu para tomar uma vez por semana, como quem pede um tesouro, e que nem queria acreditar quando lhe disseram que poderia ir todos os dias. Foi a associação que entrou em contacto com ele, consciente da realidade que este homem vivia.
“Dão-me tudo”, agradece. Até perfume. “Fico mais levezinho.”
Por isso é que também decidiram chamar a este balneário “espaço de beleza”, o lugar “onde não vêm só tomar banho e vão embora”, mas onde têm “a possibilidade de pintar os cabelos uma vez por mês, fazer as unhas, fazer a barba”.
Aqui mesmo, Maria Rosa torna o cabelo menos grisalho e as unhas menos pálidas.
E até perdeu a vergonha para aparecer mais: agora, frequenta as atividades da associação. “Até já fui a França, passei lá os meus anos. Esta associação é a melhor coisa do bairro, não me deixa tão sozinha”. Ela, a quem a vida roubou cedo um filho e a mandou para uma morada onde ela nunca sonhou estar.
Um corpo mais limpo e tudo à volta se transforma. Diz Amandine que o balneário até já mudou a forma como estas pessoas vivem as suas relações. “Já recebem pessoas em casa, já fazem passeios com a associação. Isto era impensável de acontecer com alguns deles.”
E passaram a frequentar um espaço que lhes muda a vida além do balneário – que ainda pode tornar-se mais importante com o aumento anunciado dos preços do gás e da eletricidade.
Desde que pôs os pés na associação, Cândido tem conta bancária, tornou-se beneficiário de um rendimento social, “tem a casa mais organizada, a vida orientada”. E até passe de metro. “Este senhor ia buscar comida ao Marquês de Pombal todos os dias, a pé, com vento, com chuva. Esteve cerca de cinco anos a fazer isto”. E estava a almoçar na associação, porque não tinha frigorífico, conta Amandine. “Quando não tens dinheiro durante anos, já não sabes o que é essencial. Como um banho quente no inverno.”

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Catarina Reis
Nascida no Porto há 27 anos, foi adotada por Lisboa para estagiar no jornal Público. Um ano depois, entrou na redação do Diário de Notícias, onde aprendeu quase tudo o que sabe hoje sobre este trabalho de trincheira e o país que a levou à batalha. Lá, escreveu sobretudo na área da Educação, na qual encheu o papel e o site de notícias todos os dias. No DN, investigou sobre o antigo Casal Ventoso e valeu-lhe o Prémio Direitos Humanos & Integração da UNESCO, em 2020.
✉ catarina.reis@amensagem.pt

Inês Leote
Nasceu em Lisboa, mas regressou ao Algarve aos seis dias de idade e só se deu à cidade que a apaixona 18 anos depois para estudar. Agora tem 21, gosta de fotografar pessoas e emoções e as ruas são o seu conforto, principalmente as da Lisboa que sempre quis sua. Não vê a fotografia sem a palavra e não se vê sem as duas. Agora, está a fazer um estágio de fotografia na Mensagem de Lisboa.
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