Márcio e a “Sara” (nome fictício) estão dentro de uma tenda. Mas não é uma tenda qualquer, de veraneio. É uma tenda que é também casa, a única que têm. Está instalada na Avenida Almirante Reis, em Arroios, onde param muitas outras “casas” como esta e que se tornaram polémicas com a suposta (e já desmentida) limpeza feita a propósito da vinda do Papa.

Essa é a razão pela qual Márcio e “Sara” não estão muito disponíveis para falar.

Dizem que se sentem traídos pelos relatos dos últimos dias. “Fizeram-nos passar por mentirosos”, dizem, referindo-se ao “diz que disse” das últimas semanas sobre a limpeza das tendas na avenida. Estão familiarizados com a limpeza que acontece todas as quartas-feiras: tirar as tendas para limpar as ruas e voltar a deixá-las lá. Acreditaram que esta limpeza tivesse sido diferente, como uma expulsão, porque no passado dia 13 de julho à máquina de limpeza de rua juntaram-se carrinhas de lixo e muitos mirones – funcionários das autoridades locais. E têm na memória outros casos em Arroios, como a colocação de grades no jardim António Feijó, junto à Igreja de Nossa Senhora dos Anjos, onde dormitam sem-abrigo.

Mas a polémica tornou-se sobretudo um drama para acumular com o verdadeiro que vivem todos os dias.

Foto: Carlos Menezes

650 euros para uma mãe viver em Lisboa

Márcio é o primeiro a sair da tenda, mas Sara a primeira a aceitar falar – embora sem querer gravar o rosto.

– “A cara não. Não quero que saibam no trabalho que moro na rua.”, diz. 

– “E se gravarmos só as mãos?”

– “Eu trabalho com as mãos. Ainda me reconhecem por isso.”

As mãos não têm marcas que as distinguissem, como tatuagens ou cicatrizes. São mãos que dificilmente seriam reconhecidas, mas a possibilidade deixa-a desconfortável.

Sara só tem 27 anos. E trabalha. Mas não ganha o suficiente para pagar uma casa. É essa a sua gritante situação.

É uma trabalhadora pobre, como mais de uma em cada dez pessoas empregadas em Portugal (12,1%), segundo o estudo “Portugal, Balanço Social 2022” da Nova/SBE, em parceria com a Fundação “la Caixa”, e o BPI. Para esses pobres, como ela, a habitação já representava mais do que 40% dos rendimentos.

Tudo parecia ter mudado no ano passado. Depois de anos a viver na rua, conta que tinha finalmente uma casa com o marido e pai das duas filhas, em Marvila. Era assim, até Vitor ter sido preso, no início do ano, conta. Em julho, sozinha e sem o rendimento do marido, deixou de conseguir pagar a renda – com as duas filhas a seu cargo. Especialmente depois de a senhoria a ter avisado de que iria aumentar a renda de 530 para 900 euros. O único rendimento que tinha eram os 230 euros do abono da filha. Diz ter entregado currículos em cafés e lojas, mas sem qualquer resposta.

Ela sabia: mais cedo ou mais tarde, cairia outra vez na rua.

Sara conta como, às custas da pobreza, a filha mais velha, de três anos, já lhe tinha sido retirada uns meses antes. Depois, sob a iminência de ir parar à rua, tivera tomado a difícil decisão de entregar também a mais nova que, na altura, tinha apenas nove meses. “Sabia que vinha para a rua. Isto não é lugar para crianças, é muito perigoso. Nenhuma mãe quer entregar os filhos, mas que vida era esta para as minhas filhas?”, pergunta.

Entretanto, Sara terá recebido um convite para começar a trabalhar. E agora receberá 650 euros. E nem assim consegue suportar uma renda: é vítima da crise de habitação que Lisboa (e outras cidades) vivem e que torna uma casa uma realidade inexistente para pessoas na sua condição social.

O salário que recebe por mês vai para pagar o telefone, para falar com as filhas, para comer nos dias em que a carrinha não vem, para o passe dos transportes, de que precisa para chegar ao emprego e para lavar a roupa na lavandaria self-service.

“Eu trabalho. Recebo um salário mínimo e conseguia pagar uma renda justa, se me dessem essa oportunidade. Mas com os preços das rendas, não tenho hipótese. É que não é apenas a renda, são as cauções e o fiador. Quem é que quer ser fiador de uma pessoa sem-abrigo?”


O vizinho Márcio, eletricista e canalizador

Márcio é o “vizinho” de rua de Sara. “Foi ele quem mais me ajudou. Conhecemo-nos desde os meus 14 anos”, diz ela sobre o amigo, que logo se apressa em falar. “A mim podem-me gravar à vontade! Já toda a gente sabe quem eu sou e o que sou.”

Foto: Carlos Menezes

Márcio tem 31 anos e veio de Santarém para Lisboa há dez anos. Pelo meio, voltou para Santarém e esteve preso por ter sido apanhado a conduzir sem carta sete vezes. Quando foi libertado, não teve outra solução que não fosse a rua e acabou por escolher voltar para Lisboa – onde havia mais apoios. Passaram dois anos. “Aqui em Lisboa é mais fácil. Há mais trabalho, segurança e não preciso de carro para andar de um lado para o outro.”

“Eu faço-me à vida todos os dias. Trabalho na zona do Rato, faço manutenção de prédios e casas. Sou tudo: eletricista, canalizador, faço pequenas obras… o que for preciso”, diz Márcio.

Vídeo: Carlos Menezes; Edição: Inês Leote

Ou seja, também tem trabalho, mas não tem como suportar uma casa ou um quarto. Recebe menos do que um ordenado mínimo e, sozinho, isso não chega. 

Facilmente se assume que quem dorme na rua é “mendigo”, mas com a crise que se vive na habitação, suportar uma renda lisboeta (ou mesmo nos arredores) não é fácil, nem mesmo com um salário. O dinheiro não estica para tudo e acaba a escolher-se entre o pão e a habitação. Este é o fim da linha, depois de se abdicar de tudo. 

No último relatório anual do Núcleo de Planeamento e Intervenção Sem-Abrigo (NPISA), que saiu no final de 2022, estimava-se que existiam mais de três mil pessoas em situação de sem-abrigo em Lisboa, das quais 394 estariam na rua. Estes números foram apresentados na 69ª Reunião Plenária da Assembleia Municipal de Lisboa, a 16 de maio deste ano. 

A percepção das pessoas que trabalham na Avenida Almirante Reis e das que por lá estão em condição de sem abrigo é de que, durante este ano, o número de pessoas a dormir na rua tem aumentado.

Foto: Carlos Menezes

Márcio e Sara tencionam continuar na avenida Almirante Reis até terem uma casa. Naquela rua, que lhes parece sempre mais segura do que todas as outras na cidade, por causa do movimento constante. Tem infraestruturas de que precisam, como os chuveiros públicos ou os cacifos, e toda a rede de pessoas em quem confiam.

É o plano deles, até que a avenida não possa ser mais casa. Falam entre eles de uma nova data para a limpeza de rua e expulsão de tendas: dia 30 de julho. Eles dizem que a pedido saem, sim, mas estão confiantes de que voltariam.


*Ana Narciso tem 22 anos, vem de Rio Maior, mas vive em Lisboa desde os 18. Foi pela paixão de contar histórias que escolheu licenciar-se em Jornalismo. Durante três anos, escreveu para o jornal da faculdade e passou muitas horas na rádio. É estagiária na Mensagem de Lisboa – este texto foi editado por Catarina Carvalho.


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17 Comentários

  1. O verdadeiro problema da habitação começou antes do 25 de abril quantos casais e não só moravam em quartos e também trabalhavam? A segurança das pessoas era muito diferente e os apoios também, a distribuição e apoio já era assegurada por voluntários, atualmente o que vimos em todos os cantos são na maioria pessoas oriundas do desconhecido e com hábitos de vivencia que nos são impostas onde a agressividade se vira contra todos, quantos que não tem casa são agredidos e roubados por outros na mesma situação? Agora tenho casa mas irei sempre a manifestações para alertar este governo PS / PSD que a dignidade de ter uma vida e casa são isso sim um direito.

  2. Gostaria de obter o número do telemóvel da Sara,será que me podem dar. Gostava de a poder ajudar.

  3. Esta reportagem/notícia é muito semelhante a uma que li no @porto canal, digo isto com pesar no coração.
    Também era um casal que morava em casas devolutas e também trabalhava.
    É de facto de lamentar que pessoas que contribuem com os seus descontos e assim para a descida do desemprego, que não sejam providenciadas medidas para que possam ter condições médias de vida.
    E quando há pessoas com proteção migratórias que são passadas à frente destes casos sendo que, no final nem aceitam permanência em Portugal.
    Exemplo: família que é protegida devido a ser refugiada não quis permanecer num apartamento providenciado pela câmara, pois só iam ligar o gás para o fogão no dia seguinte. Sendo assegurada as refeições desse dia.
    Pediram para ir para a Alemanha.
    E nós portugueses que trabalhamos, não há o direito ao princípio básico a ter uma habitação (sem adjectivos qualificativos).

  4. Vivo em Portugal escrevam Português ñao interessa dizem que é duplicado

  5. Alguem tem o numero da sara e do Márcio sou youtuber português com grande visibilidade na midia quero ajudar estas pessoas que nao tem casa pois ah casa devoltas em Lisboa e ate armazem a cair aos bocados que poderia se transformar em pequenas habitação contentores marítimo se nao querem gastar muito dinheiro isso era uma opção mas o estado so se priocupa com viagens bons carros boas casa vidas de luxo mas nao se esqueçam que se os portugueses falham eles nao tem nada o estado depende dos contribuintes andamos uma vida toda a pagar para depois serem tratados desta Maneira eu tou disposto e os demais que me seguem atranjar uma solução para isto compra de uma fábrica ou armazem e com contentores fazer casas T1 independentes para cada pessoa de rua com as condições minimas para que se possa viver..obrigado

  6. E também é considerado pela Autoridade Tributária “sem abrigo” quem viva numa embarcação. Independentemente do valor da mesma…

  7. Tenho uma pequena obra na minha cozinha. Como contactar o Márcio de Santarém pra ajudar?
    Obrigado

  8. Bom dia, Jorge
    Faremos esta mensagem chegar ao Márcio e, se ele puder ajudar, irá contactá-lo através deste e-mail que nos deixa aqui (jorgepintosousa@hotmail.com).
    Obrigada por nos ler!

  9. eu não acredditava no que constava em outros orgãos de informação até ver as vossas noticias e comentarios anexos. os portugueses deviam envergonhar-se com o estado de coisas a que chegamos- Infelizmente há
    muitos orgãos de comunicação social que se alimentam de casos e futebal

  10. Gostei de houvir o marcio pois deu-me uma grande ideia.
    Como sabe fazer pequenos trabalhos de casa.
    E eu estou a precisar por uma altura no meu poliba, + uma porta para a entrada da rua+ umas dobradiças + por só a televisão em cima do movel mais nada ( sou pequena)
    Eu pagava-lhe o trabalho e se quiser arranjo-lhe aqui um quarto só para uma pessoa ,no parque das nações, 5 minutos da gare oriente.
    Pensei em si porque ( sabe alguns trabalhos podia dar jeito.)
    Pensei na sara .
    Quanto ao emprego aqui na gare oriente arranja como reforço de natal.
    Se tivere entrece ligue-me 926475722 a sempre solução.
    Menos pra morte ok.
    Esperança é a ultima a murrer feliz natal.

  11. Olá, Paula
    Muito obrigada pela solidariedade. Vamos encaminhar esta sua mensagem para eles.
    Boas festas!

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