“Em Timor-Leste eu estava a estudar para ser engenheiro civil!

“E eu para ser engenheiro eletrónico!

“Vocês já têm documentos?”

“Sim, sim, NIF e NISS!

“Então têm de me mandar os vossos documentos. Quero que mandem para o meu telemóvel“.

Os olhos de Tomerlius, ou Lius, como é conhecido o jovem timorense de 24 anos, iluminam-se perante a perspetiva de emprego em Lisboa. E também os de Fabianus, o seu amigo de 30. Ambos estudaram Engenharia na faculdade, em Díli. Lius andava em Engenharia Civil, Fabianus em Engenharia Eletrónica. Hoje estão em Lisboa, à procura de um futuro que o país deles lhes nega.

João Bosco tem 24 anos e é licenciado, mas em Saúde Pública. Também trocou Timor-Leste por Lisboa: “O trabalho é pouco, é preciso sair”. E saiu, deixando para trás o pai e a mãe, com quem fala todos os dias: “É uma tristeza…”, desabafa.

Lisboa anoitece às portas de uma pensão nas proximidades do Martim Moniz. Com a noite, chega o “pai Tiago”, como é conhecido Tiago Cardoso, um consultor de recursos humanos, também ele de origem timorense, que aqui vem prestar auxílio aos timorenses que chegaram a Lisboa nos últimos tempos… e foram muitos.

“Timor é um país recente, está na fase de enriquecer os tubarões e esquece-se de criar postos de trabalho”, acusa Tiago.

Fabianus e Lius estudavam engenharia em Timor. Foto: Inês Leote

O salário médio em Timor ronda os 160 euros. E por isso quando jovens estudantes como Fabianus e Lius ouviram discursos como o de Marcelo Rebelo de Sousa na Universidade de Díli, numa visita de Estado em maio de 2022, Portugal tornou-se terra de oportunidades.

“Façam por ter melhores contactos, e irem mais a Portugal. Se for preciso uma ajudinha, não vão todos ao mesmo tempo, se não o Ministro das Finanças protesta imediatamente, mas vão assim por fatias… vão indo por fatias”, disse Marcelo.

Claro que o apelo do Presidente da República – involuntário – não explica por completo os 6 735 timorenses que terão entrado em Portugal em 2022, segundo dados apurados pela Antena 1 junto do SEF (Serviço de Estrangeiros e Fronteiras), mas contribuiu para criar a ilusão desse futuro que Lius, Fabianus e João procuram.

A Lisboa, os timorenses começaram a chegar em março e a fixar-se em três pontos: Martim Moniz, Igreja de Santo António e a Estação Fluvial do Terreiro do Paço.

Mas o sonho, para muitos, seria ainda mais longínquo: a Irlanda do Norte, considerada o “El Dorado”. “A comunidade timorense em Inglaterra foi aumentando, com as redes sociais a propagar vidas fictícias de luxo”, explica Tiago Cardoso.

O sonho que lhes venderam

Todos os timorenses nascidos até à independência podem pedir passaporte português – um documento que lhes permite circular e trabalhar na União Europeia. As agências aproveitaram-se e os timorenses endividaram-se para aqui chegar: pagaram a viagem com recurso a empréstimos a 100%, e com juros muito elevados, dizem.

Venderam-lhes o sonho.

Aterraram em Portugal, alguns foram encontrando trabalhos agrícolas sobretudo nas zonas de Beja e de Serpa, rumando para Lisboa quando o trabalho acabava. Outros conseguiram chegar a Inglaterra, como foi o caso do marido de Argentina Manuela Pinto.

Argentina tem apenas 24 anos, mas o seu passaporte já tem um “X” bem marcado: saiu de Timor-Leste à procura do marido que emigrou para Bristol. Ela, não passou a fronteira. Veio para Lisboa, onde agora procura emprego.

O imbróglio para se conseguir o NIF

Os cidadãos timorenses podem entrar em Portugal sem visto e aqui permanecer durante 90 dias. Para trabalharem em Portugal, estes imigrantes precisam do número de Identificação Fiscal (NIF) e de preferência do número da Segurança Social (NISS).

Será então possível, com um contrato ou promessa de contrato de trabalho, pedir-se a manifestação de interesse (processo de requerimento de autorização de residência).

Tiago pergunta a Lius e Fabianus: “Como é que vocês conseguiram os documentos?”. A resposta não devia ser a esperada, mas é: “Fomos a um escritório na Amadora, pagámos 123 euros”.

É aqui que começam, contam, as falcatruas.

Para pedir o NISS, os cidadãos estrangeiros podem ir a um balcão de atendimento, e até já é possível fazê-lo online. O problema é o NIF.

Embora se tenha publicado um Ofício Circulado com a informação de que a presença de um representante fiscal (qualquer pessoa, singular ou coletiva, com residência em território nacional) não é obrigatória para a atribuição do NIF a cidadãos estrangeiros, muitas repartições das finanças continuam a exigi-lo, como a Mensagem verificou ao ligar para a Autoridade Tributária.

Além disso, por vezes são exigidos documentos como certificados de residência com validade de seis meses, que nem todos têm, até porque muitos já estiveram meses na rua.

Mariana Carneiro, ativista dos direitos humanos da SOS Racismo, tem-se voluntariado para ser representante fiscal de muitos destes imigrantes. Ela, “a mana Mariana”, resume em poucas palavras:

“Tu sem NIF não existes”. O NIF é o primeiro passo para tudo o resto: “É uma pescadinha de rabo na boca, não tens NIF, não podes trabalhar, não trabalhas, não tens dinheiro, não podes sair da rua”.

E os timorenses garantem que há quem, à custa da burocracia, se aproveite da situação para lucrar com a atribuição do NIF e do NISS. “É uma hipocrisia dizer que um representante fiscal é uma proteção fiscal”, diz Mariana. “As pessoas são atiradas para as máfias e para os advogados gananciosos”.

“A atribuição do NIF e do NISS tem de ser feita pelas próprias pessoas e gratuitamente. As pessoas têm de ser capacitadas e têm de ter tradução em tétum”, acrescenta.

A Ordem dos Advogados (OA) anunciou que ia prestar auxílio jurídico aos timorenses, mas pouco parece ter sido feito em Lisboa. A Câmara Municipal explica que, quando os timorenses são identificados, são encaminhados para as entidades competentes para regularizarem a sua situação, com tradução disponível em articulação com a Embaixada.

Porém, Mariana denuncia: “Até hoje não há ninguém a tratar dos NIFs”.

Lius e Fabianus foram vítimas de um esquema para conseguir o NIF e o NISS. Foto: Inês Leote

Lius e Fabianus terão sido vítimas destes esquemas. E há quem se queixe de ter sido sujeito a contratos de trabalho que não eram cumpridos – muitas vezes estes contratos surgem apenas para se conseguir a manifestação de interesse que permite a regularização do estrangeiro.

Januário desce as escadas da pensão descalço. Usa uma camisola vermelha e calções: parece não ter frio, nem mesmo em janeiro. Conta a sua história: ao chegar a Portugal, a Pegões, um cidadão indiano ofereceu-lhe casa e trabalho numa estufa de morangos, a ele e a três amigos. Foi o patrão que lhes tratou dos documentos, mas nunca cumpriu com os pagamentos acordados.

Januário veio de Pegões, onde foi explorado por um homem indiano. Foto: Inês Leote

“O indiano tinha um contrato a trabalhar ao mês e pagava à hora. Quando lhe apeteceu, dispensou-me, mas não pagou nada. E correu comigo lá de casa”.

Ele e os amigos acabaram por vir para Lisboa. Dois deles voaram recentemente para Inglaterra. “E conseguiram lá chegar?” Januário acena com a cabeça. “E tu? Vais cá ficar?”. “Sim, quero ficar”, diz ele. “Procuro trabalho, qualquer coisa”, diz, a batalhar com o português.

À procura de uma cama para dormir

Lius e Fabianus fazem parte de um grupo de timorenses que ainda consegue pagar os dez euros por noite numa pensão. Mas, claro, sem trabalho, o dinheiro esgota-se.

Há pouco tempo, havia um grupo de timorenses que pernoitava junto à Estação Fluvial do Terreiro do Paço – junto do restaurante do Cais da Marinha que está prestes a abrir. Chamavam-lhe “a praia”, onde esperavam que as tendas onde dormiam virassem teto.

Na semana passada, uma semana antes da inauguração do Restaurante da Doca da Marinha (um investimento novo na cidade) entre a Estação Fluvial e o Terminal de Cruzeiros, a CML pediu à comissão informal que tem ajudado os timorenses, e da qual fazem parte Mariana e Tiago, para que encaminhassem 80 dos imigrantes que estavam na rua para o Centro de Alojamento em Sete Rios.

Por estes dias é preciso procurar para se encontrar vestígios daqueles que durante meses ali acamparam: ainda resta uma peça metálica que pertenceu a um velho corta-unhas, um cartão SIM, um desses papéis azuis onde ainda é possível ler-se a sigla AT (Autoridade Tributária), escovas de dentes gastas…

Tudo o resto desapareceu.

Isto ocasionou uma reação em cadeia: para se alojar esta população, outros migrantes tiveram de ser realojados em Fátima e Alcoutim. Passaram a ser 101 pessoas em Sete Rios. “Está sobrelotado. Foi criado para ser uma resposta de 72h, mas há pessoas lá há dois meses”, diz Mariana.

Cerca de 30 destes timorenses foram para o Fundão. Privilegiou-se a permanência no centro daqueles que ou estão a trabalhar ou estão à espera de um voo de regresso. Muitos timorenses já circularam por todo o país, sempre à procura de emprego para pagar as dívidas.

Sem alojamento nem lugar

Questionada sobre a possibilidade de abrir mais centros, a Câmara Municipal de Lisboa respondeu que “a abertura de novos pontos carecerá sempre de articulação com todas as entidades envolvidas e terá de ter em conta as soluções disponibilizadas pelos organismos competentes da Administração Central, como o ACM”.

O Centro de Alojamento de Emergência Social em Sete Rios.

Ao ligar para o Centro Nacional de Apoio à Integração de Migrantes (CNAIM), a resposta é inequívoca: “Não há alojamento, tem de arranjar emprego”, dizem, quando a Mensagem liga, como se fosse um refugiado. No final da chamada, aconselham tentar o número 144, a linha Nacional de Emergência Social.

As primeiras três chamadas para a linha 144 não são atendidas, provavelmente por estar sobrecarregada. À quarta, respondem que seria preciso identificar o timorense em situação de sem-abrigo, e que tentariam ver se havia alojamento disponível numa pensão.

São sempre soluções temporárias.

O que tem acontecido até agora é que estes imigrantes acabam por “girar pela rua, pelas pensões…”, explica Mariana Carneiro. Alguns timorenses queixam-se de escassez de alimentos e de falta de acompanhamento técnico.

Desde que começaram a chegar a Lisboa, Mariana diz já ter contactado com 537 timorenses: “Há graves problemas no acolhimento. Falta coordenação entre os serviços, todas as instituições dizem isso”.

Para Adriano, o caos fê-lo perder a esperança. Dias antes de ser levado do Cais Fluvial para o Centro de Alojamento, este jovem de 29 anos contemplava o Tejo e confessava a sua vontade: voltar. “O meu pai morreu, quero voltar para estar com a minha mãe”.

Nesse dia, os timorenses tinham reunido todo o seu dinheiro para comprar almoço. Numa frigideira, ferviam mexilhões embebidos em molho. Sobrevivia-se à espera de um futuro. E Adriano contava que o irmão, que viera com ele para Portugal, conseguira chegar a Inglaterra.

Ao abrigo do programa ARVoRE da OIM (Organização Internacional das Migrações), Adriano já pediu voo de regresso para Timor: “Aqui está frio, quero o calor de Timor”. Assim que chegar ao país dele, não poderá voltar a Portugal nos próximos três anos.

Um futuro em Lisboa?

Lius e Fabianus têm mais esperança. Falam sobre as suas expectativas, o seu futuro. Lius é o mais entusiasta dos dois. Já consegue falar português sem grandes atropelos. É um dos problemas: embora o português seja língua oficial de Timor-Leste, a maioria não o domina. “Dávamos na escola, mas falávamos todos tétum fora da sala de aula”, diz Lius.

“Era preciso pensar num plano de formação e desenvolvimento de competências”, explica Tiago. Ele fez isso: elaborou um plano e enviou-o para a Embaixada de Timor-Leste, sem resposta. “Portugal tem falta de eletricistas, de calceteiros, de mão-de-obra…”.

Nem o ACM, nem a Embaixada de Timor-Leste responderam às questões da Mensagem sobre planos de integração. Apesar disso, esta comissão informal tem conseguido alguns sucessos. “Já consegui colocar cerca de 20 timorenses entre novembro e outubro no mercado de trabalho”, diz Tiago.

Juvita Branco está agora a trabalhar num lar de idosos. Foto: Inês Leote

Juvita Branco esconde-se no meio dos timorenses que convivem à porta da pensão. Mas a vida dela, até agora turbulenta, está a mudar: no dia seguinte vai começar a trabalhar num lar de idosos.

Ela que, aos 37 anos, já atravessou muitas fronteiras: foi despedida de uma fábrica em Inglaterra por estar grávida, conta, e teve o filho em Timor-Leste, onde o deixou em segurança. Veio para Lisboa à procura de sustento para a família.

Foi graças a Tiago que encontrou emprego. O mesmo pode dizer João Bosco, o jovem que traz um passe amarelo ao pescoço. É o cartão mágico que Tiago e Mariana conseguiram pagar pedindo ajuda aos amigos.

Com o passe, João vai até à pastelaria onde trabalha com um contrato de um ano e até ao Centro de Alojamento de Emergência Social onde, por agora, está a viver. “É o mais difícil: arranjar casa em Lisboa”, diz ele.

Um dia, João quer trabalhar na área em que estudou, mas até lá, contenta-se em amassar croissants. “Gosto do trabalho, gosto de aprender a Língua Portuguesa”, começa por dizer.

“Eu agradeço pelo meu pai Tiago e por todas as pessoas portuguesas que me ajudaram”, diz. Com os olhos postos no céu, Lius repara nos edifícios: “Gosto da construção de Lisboa”, diz, sorrindo. Quando não se tem nada, tudo pode ser um sinal de esperança.

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Ana da Cunha

Nasceu no Porto, há 27 anos, mas desde 2019 que faz do Alfa Pendular a sua casa. Em Lisboa, descobriu o amor às histórias, ouvindo-as e contando-as na Avenida de Berna, na Universidade Nova de Lisboa.

ana.cunha@amensagem.pt

Inês Leote

Nasceu em Lisboa, mas regressou ao Algarve aos seis dias de idade e só se deu à cidade que a apaixona 18 anos depois para estudar. Agora tem 23, gosta de fotografar pessoas e emoções e as ruas são o seu conforto, principalmente as da Lisboa que sempre quis sua. Não vê a fotografia sem a palavra e não se vê sem as duas. É fotojornalista e responsável pelas redes sociais na Mensagem.

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3 Comentários

  1. Obrigada, Roger! É verdade. Mas, apesar desse ofício circulado, as Finanças continuam a exigir um representante fiscal, como a Mensagem verificou ao ligar para lá. Iremos acrescentar essa informação.

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