Estivemos aqui, no início de julho, por outros motivos. Vimos encher uma sala do Centro de Alojamento de Emergência de Santa Bárbara, em Arroios, para o lançamento do livro que juntas as crónicas de Jorge Costa, que morreu em abril – “Diário de um Sem-abrigo – Os dias (e noites) de Jorge Costa a viver nas ruas de Lisboa”.
A escolha do lugar foi simbólica: é onde estão mais de 100 pessoas em situação de sem-abrigo. Mas a quem faltou, naquele dia do lançamento, ouvir realmente. Como o Jorge quereria.
Prometemos voltar. E cumprimos: no final do mês de julho, numa outra sala, sentámo-nos à conversa com mais de dez homens e mulheres que vivem e dormem neste centro de abrigo.

Na plateia, estava Augusta Bandeira, de cabeça rapada pela mesma doença que a deixa sem fome e a emagrece. Embora “viciada na solidão” seja o diagnóstico que faz à sua vida, ela que se prepara para sair finalmente deste centro de abrigo e ir agora viver com o filho, que estará a reunir condições para a receber. E para ser avó.
Naquele dia, escrevia numa pequena sebenta, quase só parando para ouvir o que lhe assaltava a atenção. Como quando os colegas “de casa” falavam sobre as muitas habitações vazias que podiam ser deles. “Tantos edifícios ao abandono que ultrapassam a nossa alma como uma flexa”, redigiu Augusta no caderno.
Ou como os balneários para se lavarem podiam ser mais e com horários mais longos, como lamentam que o apoio (sobretudo o psicológico) não seja maior e mais próximo.
Mas também como muitos vieram de fora de Lisboa – de outras cidades da área metropolitana e até do país -, para a capital, porque é aqui que encontram “condições para serem sem-abrigo”. Aqui, na “bela Lisboa de todos e de ninguém”, escreveu Augusta.
Depois deste encontro, ela decidiu que escreveria mais. O resultado foi este:
Eu, de nome Augusta Bandeira…
Este foi um dia que podia ter sido como qualquer outro. Mas não foi. E o dia em que escrevo este texto, que com certeza por muitos será lido, é mais uma das formas que tenho de me expressar.
Recentemente tive uma experiência no Centro de Acolhimento Municipal de Santa Barbara, onde diariamente me dão mais que um abrigo.
Estava eu sentada num banquinho, a fumar o meu cigarro, quando se dirigem a mim duas senhoras de um jornal de Lisboa e o Diretor Gonçalo. Tal é meu espanto, com tantos anos que tenho (e não me perguntem a idade, pois nela não me revejo), quando me propõem que participe. Nunca tive o privilégio de assistir a um encontro de jornalismo.
Vieram a este centro de acolhimento, que considero casa, recolher testemunhos das pessoas sem-abrigo, que, como eu, têm experiência de rua. Vieram saber como se pode mudar a nossa linda cidade.
Aprendi muito nesse dia.
Mas voltando a Lisboa: esta cidade não precisa de mudar o que tem! Precisa, sim, de mudar a mentalidade das pessoas, quer as que cá habitam, quer as que vêm para cá trabalhar – ou as que vêm simplesmente passear.
A pessoa sem-abrigo não é só aquela pessoa desencaminhada, humilhada e envergonhada. Pode ser qualquer uma pela qual se passe ao longo do dia, pois as aparências não espelham o que a pessoa passa, muito menos o que leva no coração.
Eu, por exemplo, ainda esta semana, sentei-me junto ao metro dos Anjos, onde passa diariamente uma senhora e um senhor, o seu empregado, que tem um carrinho de fruta, e cada vez que ambos por mim passam, vejo o desprezo e desrespeito nos seus rostos e uns olhares de humilhação. E por três dias seguidos que ou varre para cima de mim ou me amarrota os desenhos, passando com o carrinho da fruta por cima. Mas ainda mais que as ações… são os seus olhares.
Afinal de contas, aquele é aquilo que eu chamo “o meu trabalho”, pois sou doente oncológica em tratamento e sem-abrigo, por isso, isto é tudo o que posso fazer: desenhar e assinar, porque tenho orgulho no que sou e faço. Eu poderia estar ali a incomodar, a atrapalhar a passagem, mas não estou, acreditem em mim. Simplesmente sento-me no meu cantinho a desenhar, com o meu chapéu na frente, a ver se alguma alma caridosa deixa uma moedinha.
Eu acredito piamente, que, tal como eu, todos as pessoas sem-abrigo já passaram por estas desagradáveis ações e olhares de outros, ou até mesmo piores. Se bem que, como se não bastasse, noutro dia, do topo de uma varanda de uma residencial, um turista urinou, sobre quem? De mim, claro! Não se faz!
Mas deixando isto para trás… eu continuo a ir ao mesmo sítio todos os santos dias, pois a minha condição ainda o permite e, acima de tudo, porque amo muito esta cidade. Porque são ainda mais os que a tornam acolhedora.
Um grande e sincero obrigada da Augusta.
P.S.: Atenção, habitantes desta cidade, sejam trabalhadores ou turistas: enfim, o sem-abrigo também é gente.


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