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“Foi um inferno. Nunca tinha visto nada assim. Pau, pau, pau. ‘Entrem para dentro, entrem para dentro’. ‘Vai haver fogo, vai haver guerra’.” Apesar de reconheceram a relação difícil que o bairro foi construindo com as forças de segurança, em parte por causa da droga que se trafica há anos por estas ruas, os moradores da Quinta das Lagoas, em Santa Marta de Corroios, Seixal, garantem nunca ter vivido dias como aquele 23 de março deste ano.
Perto do meio-dia, a polícia foi chamada ao local, para atender o que, na altura, se pensava ser um tiroteio entre moradores. O Grupo de Operações Especiais cercou o bairro: ninguém entra, ninguém sai. Foi assim durante oito horas.
Cá fora, mães de crianças não conseguiam consolar a fome dos filhos. Os jovens vindos da escola ficavam com os trabalhos de casa por fazer. E os trabalhadores que chegavam de um dia de labuta e se preparavam para mais uma madrugada de trabalho suplicavam para saltar o cerco policial para dormir umas horas.
Ainda hoje ninguém sabe muito bem o que se passou. No final, só um homem acabou detido pelas forças de segurança, mesmo depois de terem enchido o céu do bairro de drones e as ruas de agentes armados.
O episódio abriu telejornais, naquele dia de março, e fez manchetes nos sites de notícias. Nas imagens, saltava à vista um cenário onde muitas das casas pareciam não merecer sequer o estatuto de assim serem chamadas. O cimento sobre o tijolo ficou esquecido em muitas delas, há tetos de chapa, paredes de madeira, a maioria escondida por mobília esventrada e eletrodomésticos obsoletos que o tempo tratou de oxidar. As portas, ora lençóis esticados ao vento, ora vindas de elevadores abandonados.
Na TV, tudo parecia mau. Ao perto, não deixa dúvidas: o bairro está pintado a cinzento e castanho-terra, não fosse disso que as ruas e becos que o atravessam são feitos. Mais parece o desenho de um bairro inacabado, o rascunho de algo que nunca chegou a ser.
Estas imagens rapidamente atiçam a memória dos antigos e conhecidos bairros de lata parisienses, os bidonvilles, que, em França, acolheram a população portuguesa emigrante que fugia de uma ditadura, nas décadas de 1960 e 70. Aqueles tempos de pobreza chocante ficaram relatados ao longo dos anos através de reportagens e fotografias.
O primeiro e mais famoso bindoville estava em Champigny-sur-Marne, situado nos arredores de Paris, e tornou-se no maior bairro de lata francês: cerca de 150 mil pessoas terão passado por lá. Tal era a sua dimensão, que ficou até conhecido como a “capital dos portugueses”. Acabaria por ser desmantelado em 1972.
Aconteceu em Paris, mas o que vemos em Corroios é parecido, quase 50 anos depois, e com os portugueses a fazer o papel de anfitriões, que era o dos franceses nesses tempos. Acontece que de Corroios não reza a história. Nunca ninguém a contou, não há fotógrafos que vejam ali arte e os jornalistas também pouco ali vão (sobretudo sem a polícia).
A história da Quinta das Lagoas ficou por contar até hoje. Aliás, no dia seguinte ao incidente, as perguntas dos habitantes do bairro, em Santa Marta de Corroios, morreram sem resposta. E, mais uma vez, ninguém ali voltou para conhecer os seus meandros.
O sítio onde começam os sonhos
Algumas das mais famosas fotografias dos bidonvilles franceses dos anos 60 foram captados pela lente do fotógrafo Gérald Bloncourt. Os registos que ali fez só sobreviveram no tempo porque, quando foi detido pela PIDE, em Portugal, os escondeu nas costas para que não fossem apreendidos. Gérald, que morreu em outubro de 2018, lembrava em 2015, numa entrevista à Agência Lusa, a miséria que testemunhou nestes bairros de lata. “Era uma forma de escravatura moderna. Havia lama no inverno, era frio. Eram barracas feitas com tábuas, bocados de chapa. Era uma vida difícil, muito rude. Os homens iam trabalhar para as obras, as mulheres ficavam com as crianças.”
Décadas depois, não é difícil ver o mesmo neste bairro em Corroios.
“Agarrava no carrinho de mão, ia apanhar papelão e ferro, para poder dar de comer às crianças. Para água, carregava do mercado de Corroios para cá, no bidão, no carrinho. Para lavar a roupa e para cozinhar.”
Maria, 81 anos – a primeira a chegar ao bairro
A diferença começa no ouvido. Aqui, o português não é só de Portugal. Mistura-se com outros dialetos africanos e crioulo. “Somos todos de cor escura”, diz Maria Tavares, 81 anos, a primeira, garante, a assentar pedra neste bairro. Não se lembra bem quando, apenas que foi “muito antes do 25 de Abril”.
Como ela, muitos vieram de Cabo Verde e São Tomé – ela passou por ambos os países, uma vez que o segundo era local de emigração do primeiro. O que se adivinha facilmente pelos cartazes em muitas casas: nos vermelhos, a promessa eleitoral de “Um Cabo Verde para todos”; num outro amarelo, o rosto e assinatura de Janira Hopffer Almada, a primeira mulher a chefiar o Partido Africano da Independência de Cabo Verde (PAICV) e licenciada em Direito pela Universidade de Coimbra.
Mas ao contrário dos bidonvilles, este, em Corroios, não é só ponto de chegada, como foram os bairros de lata franceses para os portugueses emigrantes. Este bairro é também o ponto de partida. “Agora são quase todos de São Tomé que estão aqui. Cabo-verdianos foi quase tudo para França, para Luxemburgo, para procurar dinheiro, coitadinhos”. Diz a matriarca desta família que “quem está novo, salta, procura”. “Eu estou velha, sento, espero a morte.”
Foi para dar o “salto” para uma vida melhor que a maioria aterrou neste terreno da margem sul do Tejo, de propriedade privada mas cuja ocupação nunca foi reclamada. O bairro que aqui construíram tornou-se a terra de todos os sonhos para quem ainda podia apenas sonhar, o bilhete para voos felizes de centenas de famílias.
Maria inaugurou o bairro. Antes disso, deu voltas ao mundo e o mundo que viajou também lhe trocou as voltas. Substituiu Portugal por São Tomé aos seis anos. Só sairia depois com 13, mas agora em direção a Cabo Verde. Foi seguindo a família, que viajava sempre sob o pretexto de encontrar uma vida melhor.
Em Cabo Verde, conheceu Heduíno, com quem ainda hoje vive, e voltou casada com ele para São Tomé, para lá viver durante nove anos. Depois, as saudades de Portugal voltaram ao mapa e o regresso aconteceu. Com ela, veio a mãe e as duas irmãs – Cesaltina e Alda. “Antes do 25 de Abril, muitos anos” – na memória dos seus 81, as datas já são só sinais na estrada tapados pelo nevoeiro.
No destino, estava um quarto improvisado numa casa em Algés. Mas, entretanto, a renda pesou face à falta de trabalho e os planos mudaram. Maria percorreu o rio Tejo, em direção à outra margem, para encontrar neste terreno abandonado e vazio de Corroios o lugar para construir um teto com as suas próprias mãos. Chegou ali até antes de o cemitério da zona ser também inquilino.
“Era só mato. Pensei: vim de Algés, de um quarto na cozinha, para ficar no mato.” Debaixo dos seus pés, terra virgem, e nada mais. “Tinha de andar com sapato na mão e depois limpá-lo.”
Aqui, foi construindo uma casa a sério e uma família inteira dentro dela. Tão inteira se tornou que o seu pátio abrigou todas as crianças que ali iam chegando, quando mais casas vieram depois da sua. Foi a salvação de muitas famílias, que somavam horas e horas de trabalho por dia, partindo de madrugada, chegando com o sol já posto, e que não tinham como cuidar dos filhos. “Fiquei com este quintal cheio de netos”, lembra ao elevar as duas mãos juntas, arregalar os olhos azuis cor de esmeralda e esboçar um sorriso tímido mas que prova tratar-se de uma memória feliz.
Por isso é que, ainda hoje, tantos jovens e adultos deste bairro a tratam por “avó”, mesmo que o sangue não o prove.
Por eles, mais tarde, e pela sua própria sobrevivência, Maria percorria quilómetros todos os dias à procura de água ou de sucata para vender e arrecadar dinheiro para as refeições. “Agarrava no carrinho de mão, ia apanhar papelão e ferro, para poder dar de comer às crianças. O meu marido trabalhava longe, em São João do Estoril, e eu ficava aqui com as crianças, com fome, com sede. Tinha de procurar. Para água, carregava do mercado de Corroios para cá, no bidão, no carrinho. Para lavar a roupa e para cozinhar.”
Hoje em dia, os “netos” reconhecem nos sacrifícios desta “avó” o exemplo para a vida, mas sobretudo a infância que lhes permitiu, também a eles, sonhar com mais. Para muitos, isso passa por largar tudo e ir viver para outro país. Para outros, continuar em Portugal, mas viver numa casa com melhores condições.
O rap que canta a memória de todas as infâncias
“Isto fui eu que construí”. Estamos na casa de Rui Gomes, 32 anos, nascido e criado neste bairro, onde foi escolhendo ficar, mas de onde sonha também sair. Não é exceção ao assumir-se como o engenheiro e construtor do seu próprio teto. A prática é, na verdade, regra por aqui. Por isso mesmo, cada casa é o reflexo das possibilidades de cada família, que vão aumentando para o topo ou para o lado as suas paredes, para caber sempre mais um. A casa onde Rui dorme foi construída mesmo junto àquela onde cresceu, com a mãe e os irmãos.
Entre estas paredes de cimento, conta-se grande parte da sua vida. No pequeno pátio que as une, duas luvas de boxe, que partilham o estendal com roupa húmida, contam a profissão de um dos irmãos – personal trainer. Na casa que se ergue paredes meias com a dele, encontramos um covil de cinzas, a residência da tia, que ardeu.
“É comum” acidentes como este que provocou o incêndio nesta casa. As instalações elétricas são feitas de forma amadora, sem muita segurança – por isso é que passeamos pelo bairro com dezenas de fios de eletricidade suspensos sobre as nossas cabeças.
Em frente, a porta para o quarto a partir de onde dá notas musicais e letras às histórias desta mesma vida, que partilhou com tantas crianças e jovens do bairro. É um estúdio de gravação. Cá dentro, as paredes cobertas de um pano preto pedem “silêncio” repetidamente, mas raramente o há por aqui.
Rui não consegue dizê-lo senão com timidez: é rapper. Tem várias músicas escritas e dois videoclips gravados. Nas suas letras encontramos contos sobre o bairro que o viu nascer e crescer. “Um bairro grande, mas que é só uma casa”, como diz.
Filho de pai cabo-verdiano e mãe natural de São Tomé, é um dos muitos “netos” de Maria e Heduíno. A partir das portas daquela casa viu pela primeira vez os seus amigos, muitos deles os mesmos com os quais se ia defrontar num jogo de futebol, naquele mesmo dia em que o visitamos.
Todos os domingos, o seu grupo de amigos e um outro vindo do vizinho bairro da Jamaica partilham um campo de futebol arenoso, ali mesmo, no bairro. “12 contra 12”, quebram as regras. No peito, erguem emblemas de equipas da primeira ou segunda divisão. Ninguém parece repetir um único. O que os une não é a cor do clube que vestem ao domingo, mas a infância pobre e rebelde.
Foi por ela que Rui escolheu fazer rap.
Não conheceu outra realidade senão esta. “Toda a gente que passa ao lado [do bairro] fica tipo ‘wow’. É uma cena à parte. Para mim, já não faz diferença.” O que soa a miséria para quem olha o bairro de fora, soa a luta para Rui.
Na sua casa, lembra ter faltado a satisfação de necessidades como “saneamento básico e água quente”. “Para tomar banho, na altura, era preciso aquecer a água [manualmente]. Depois, tentamos ter um termoacumulador. Mas, na altura, era mais difícil.” Sobretudo para uma mãe solteira, tornada viúva quando Rui tinha apenas dois anos.
“Eu e os meus irmãos, que temos quase a mesma idade, tornámo-nos homens mais depressa.” Ainda nem somavam um dígito a outro de idade. Cedo as crianças deste bairro, envoltas na pobreza e conscientes da iminência da fome nas suas casas, procuraram ser parte da solução.
É memória comum, entre esta geração, as idas ao supermercado Lidl, ali na zona, para recolher moedas dos carros de compras: pediam a quem estava a carregar o carro para ficar com aquela moeda. “Quase toda a criançada fazia isso, basicamente todos os dias. Eu chegava a casa e dava o dinheiro à minha mãe. Uns mil escudos, na altura. Outras vezes, comprava também uma coisa para mim, como chocolates. A minha mãe ficava surpresa: um filho dela de nove anos a ajudar!”
Quando a espera para as moedas era muita, arriscavam a investigar os contentores de lixo do supermercado. “De vez em quando, descobríamos bué iogurtes, tudo em bom estado. Levávamos para casa e aquilo virou rotina.”
Mas Rui desconfia da fome, que diz nunca ter passado. “Quem diz que passa fome neste bairro está a mentir”, garante. Na falta de comida, havia sempre uma porta aberta ao lado e mais um lugar na mesa. “Se eu não tenho em casa, vou bater na porta do lado. Ninguém deixa ninguém com fome. E todos fomos criados assim: se saio de casa e vou brincar para casa dos meus amigos, é tudo corrido a comida, antes de irmos brincar.”
Uma aldeia dentro de um bairro
Todo o bairro ainda preserva esta ideia de ser autossustentável. É ali dentro que se trava a fome. Foi sob este ideal que o bairro se tornou uma pequena aldeia dentro dele próprio. Os terrenos das casas dividem-se com terrenos agrícolas, pequenas hortas improvisadas e que gabam o seu verde, a única cor viva por estes lados. Há até quem crie animais, como galinhas.
E Zé, 50 anos, vidreiro de profissão, natural de Cabo Verde, traz a sua terra até aqui: numa pequena área de vegetação escondida entre paredes de chapa, está a sua plantação de cana de açúcar. À porta do terreno, três homens sentados em cadeiras de esplanada mastigam o caule doce que Zé colheu, como quem come uma maçã.
“Quero voltar [para Cabo Verde], mas tenho de ganhar para dar de comer aos meus filhos. Um dia. Agora, ganha-se um bocadinho, mas tem de dar de comer e não chega.” Nada sobra nesta aldeia que é um bairro. Só a vontade de não desistir, que todos dizem ser fator comum entre quem cá mora.
O cheiro a peixe assado na brasa e calulu – prato de fumado de peixe famoso em África – no ar é a prova disso mesmo. Aqui, há casas que abrem portas para serem restaurantes. O que nos parece, à primeira vista, uma mariscada entre amigos é, na verdade, um bar aberto a todos. Há, pelo menos, três.
Um deles é o bar da Nani e do Sebastião, 51 e 60 anos, marido e mulher. Foram os primeiros a abrir um bar no bairro, em 1994, quando Sebastião chegou de São Tomé. Nani veio mais tarde e foi só aqui que se conheceram e apaixonaram, já largados outros casamentos. Vieram cá parar porque “as rendas lá fora eram altas” e “aqui é possível construir e não pagar renda”, como acontece com todos os que cá param.
Atrás do balcão, falam-nos de comida típica da terra onde nasceram: banana com peixe é o prato mais popular. E lançam desejos de que a popularidade os segure financeiramente. Sebastião ficou desempregado no arranque da pandemia e juntou-se a Nani no bar.
Entretanto, ele respira fundo e fita um quadro na parede. “Aquilo ajuda”, lança. Estão ali desenhados eles os dois, como casal, abraçados à frente de um carro. “O nosso carro de São Tomé”, explica Nani. O marido interrompe para declarar-se apaixonado. “Ela é linda. Eu gosto dela. Trocar ela com outra é impossível.”
Lá fora, alheio às declarações de amor, Rui corre para o campo de futebol e os golos – os marcados e os que se suplicam – ecoam restaurante dentro.
A plateia vai crescendo nas margens do campo que todos sabem quais são, mas não se veem. Atrás das balizas, guardam-se malas de viagem abertas, com bolas e luvas suplentes, não vá algo falhar, que aqui os jovens levam o jogo muito a sério. Quer seja no campo, quer seja à volta da mesa, a jogar às cartas. Há sempre um que guarda um caderno A4 para apontar a pontuação. Como se de um campeonato se tratasse e nenhum ponto pudesse ficar por contar.
O velho “Casal Ventoso da margem Sul”
Se não estavam a colher trocos no Lidl, as crianças da geração de Rui Gomes estavam a brincar “na lixeira”, junto à desmantelada fábrica da Pólvora, mesmo por detrás do bairro. “Era tipo Discovery. Andávamos e encontrávamos uma lagoa, por exemplo. Depois, íamos para lá todos.”
Com o passar do tempo, as tentações tornavam-se outras além de desbravar mato nas imediações.
“Casal Ventoso da margem sul. Mas sempre não era, era conversa e muita palha de jornal.” Um dos versos da música Memory, escrita e cantada por Rui, conta que os tempos, por aqui, nem sempre foram fáceis, embora tenham melhorado. No início do milénio, as ruas assemelhavam-se ao antigo e desmantelado Casal Ventoso, no vale de Alcântara, em Lisboa: um vai e vem de pessoas que aqui encontravam os seus vendedores de droga.
Os consumidores, garantem, eram externos ao bairro. “Vejo ainda hoje pessoas que andaram comigo na escola, filhos de pais médicos, que passam aqui para vir buscar droga.” Quem o conta é Isabel Lopes, 32 anos, também ela criada neste bairro e uma das responsáveis pela Associação de Moradores.
“Já foi um Casal Ventoso, ali até 2001, quando fechou mesmo o Casal Ventoso e veio tudo para aqui. Nessa altura, era muito mau. Via-se muitos drogados.” Depois, uma vaga de rusgas levou “muita gente presa e acalmou”. “Não é o meu mundo, não sei dizer como está agora, mas não é nada do que era”, assegura.
Rui reconhece que se caía neste mundo de que Isabel fala com a mesma facilidade com que a rapaziada aprendia a jogar à bola. “É fácil. E não há aquela cena de amigo empurra amigo, depende de cada um. Naquela inocência da criança, experimentamos. A mim já me caiu muito a ficha de: ‘será que vale a pena?’. Mas sei que só entra quem quer.”
A estes, Rui deixa uma mensagem através da música que produz. O travão para piores caminhos, na sua infância, aconteceu entre os refrões do rap que cresceu a ouvir. E, hoje, quer ser esse exemplo para os mais novos também. “Quero tentar salvar algumas crianças através da música. O que faço é o que fizeram comigo.”
Aqui também se chega longe
Diz Rui que é regra “não julgar alguém pelo sítio onde vive”. Mas, não raras vezes, se assume que nascer num bairro como este e tendo por memória a pobreza que a infância foi e prolongou na vida é meio caminho para o insucesso escolar e profissional. Contudo, neste bairro já se deram várias provas do contrário.
Não enche o peito de orgulho para o dizer, escolhe antes contá-lo com a naturalidade que o tema pede: “Tenho um amigo meu, nascido aqui, que é polícia de intervenção. A minha prima, criada aqui, é engenheira técnica.”
Também Isabel Lopes prova que uma casa no bairro não define um futuro menor. Nascida em Lisboa, aterrou aqui ainda com meses de vida, depois de o avô ter falecido e a família ter decidido que não abandonaria a sua casa. Passados 32 anos, é licenciada em intervenção e animação sociocultural (no Politécnico de Setúbal) e a vontade de cá estar mede-se da mesma forma há anos: “Gosto muito de viver aqui, com todo o mal que tem”.
Apesar disso, admite não querer ficar aqui para sempre. Sonha mais alto do que continuar com a vista que tem hoje da janela. Mas abandonar o bairro não estará para breve. “Aos preços que as casas estão, ou passava fome ou não sei…”
Foi motivada a estudar desde cedo, sabendo que disso dependia este futuro que agora tanto almeja. Acreditou nas palavras da mãe e decidiu estudar. Terminado o secundário “com boa média”, arriscou nos exames nacionais e na candidatura ao ensino superior. A área, animação sociocultural, diz, foi escolhida tendo por base a intervenção que já exerce no bairro, como membro da associação de moradores.
Reconhece a sorte que hoje tem, face às gerações anteriores. Isabel cresceu a ver partir o autocarro das 5:35 da manhã, a carreira 110, de Santa Marta de Corroios para Cacilhas, “cheio de mulheres”. Os dias delas começam cedo e erguem-se duros também. “Vão para as firmas, depois saem às nove horas da manhã e vão para a patroa. As mulheres aqui normalmente têm vários trabalhos e até vários patrões – um dia vão a um, outro dia vão a outro. Os homens, no geral, têm um e é nas obras, o dia inteiro.”
Apesar de as oportunidades de trabalho atuais terem mudado relativamente às da geração anterior, o espírito de sacrifício corre de geração em geração. À falta de emprego na área em que se formou, Isabel não cruzou os braços e trabalha hoje num call center, enquanto espera pelo seu momento.
Também Rui Gomes traz consigo este sentido de missão, “pela necessidade”. É pai de duas raparigas, “uma delas filha do coração”, e concilia três trabalhos. De manhã, é pintor e decapador de motores elétricos numa firma. À noite, estafeta numa pizzaria. Quando o tempo o permite, entre um ponto e outro do dia, faz entregas de refeições pelas plataformas digitais.
Outros esperam tanto pelo sonho de ter uma casa e vida melhor, que se apressam na viagem e escolhem voar do país para a começar.
É o caso de Roberto Carlos, 36 anos, que está de volta ao bairro, vindo de França, para passar os seus dias de férias. Encontrámo-lo no número 121, onde tem inscrito na parede “café chapitona”. “Uma brincadeira, em nome da alcunha do meu pai”, justifica-se.
À porta, vai vendo passar caras familiares como se nunca tivesse realmente abandonado o posto. O coração, esse, não diz o mesmo. “Estava a morrer de saudades.” As memórias mais recentes que tem do bairro foram as mesmas que o fizeram abandoná-lo, mas aqui tudo ainda soa a casa.
A rebeldia típica da adolescência prolongou-se, os desacatos eram mais do que os que deviam e trouxeram-lhe confrontos com a justiça. Chegou até a estar detido. E foi exatamente este o primeiro passo para largar de vez o bairro. “Já tinha saído da prisão, já tinha entrado na má vida outra vez, isto começou a piorar, havia muita confusão dentro do bairro e a minha mãe mandou-me para França com o meu cunhado, à procura de trabalho. Depois, foram todos atrás.” Todos, não. “Ainda tenho família cá. O Rui é minha família, os meus amigos são minha família”, responde prontamente.
Já em França, a via de saída rápida que escolheu tornou-se num pesadelo. Roberto Carlos chegou a viver na rua. “Estive na rua com a minha ex-namorada, com uma criança de dez meses no colo e com ela grávida de gémeos. Uma ex de um amigo meu foi lá, abriu duas contas de dois bancos diferentes e pôs tudo [nosso] numa. Ficou com tudo. Fomos para a rua. A minha madrinha que lá estava não nos podia acolher, com tanta criança. Durante 48 horas estivemos mesmo na rua. Depois, andamos de hotéis para hotéis [pela mão de associações]. As associações viram-se obrigadas a dar apoio, por termos uma criança. Estive dois anos e tal assim.”
Fotos: Rita Ansone Foto: Catarina Reis
Até que puxou pelo espírito de sacrifício que cresceu a ver nos mais velhos do bairro. “Vou lutar, vou fazer a minha casa e vou trazer toda a família para aqui.” Hoje, é funcionário público em França e diz, de expressão empertigada, que leva “uma boa vida”. Ele e a família que lá está também. “A minha irmã já conseguiu comprar uma grande vivenda. Até faz inveja aos brancos.”
Mas há coisas que não encontra lá, por mais que escave. “No bairro tem uma coisa: se te afrontam, tens quem te ajude. Pedes a alguém e ajudam-te.”
Lá fora, a vida é mais solitária e os amigos não soam a família nem a casa como estes.
Um novo futuro para o bairro?
O jogo de futebol é interrompido por braços no ar que barafustam perante a entrada de um carro em campo. No topo do tejadilho, tábuas de contraplacado. A baliza deixou de ser o ponto para onde todos correm, substituída pelo carro, a partir de onde um a um, todos ajudam a carregar a mercadoria. Caminham com as placas em direção a uma área vedada, mas sem habitação, e atiram-nas para lá.
Desde o início da pandemia, o bairro está a crescer em tamanho. As betoneiras são cada vez mais presença ativa por ali. Mas a expansão faz temer: “Daqui a pouco, não temos campo de futebol.” Nas margens, já há paredes de tijolo por acabar. Ninguém sabe ao certo quem são os novos inquilinos: se família de quem já cá mora, ou quem nunca por cá andou.
O som das obras confunde-se agora com todos os outros. Mas, ao contrário do que muitos desejavam, tal não significa que as casas vão sofrer melhorias. Há muito que o bairro parece esquecido no plano. Isabel Lopes conta que em 1993 chegou a estar contemplado no Programa Especial de Realojamento (PER) e envolveu a realocação de “umas 15 famílias” para a Tercena. “Parecia o início do realojamento tão esperado”, mas nunca mais avançou.
Ainda hoje se espera o dia em que tudo será retomado. “Sou recenseadora do INE para o Censos e quando as pessoas do bairro me viram a fazer perguntas pensavam que era uma oportunidade para ganhar uma casa”, conta Isabel. Embora, admitem alguns, esse processo não devesse ser tão simples quanto a realocação de famílias, porque gostariam de se manter juntos, como o bairro que são.
A Câmara Municipal do Seixal diz já ter “contemplado, no seu Plano Municipal de Habitação, um modelo de realojamento e respetivo financiamento para a criação de soluções habitacionais para o núcleo habitacional de Santa Marta de Corroios e para todos os moradores daquele bairro que se encontram diagnosticados em ‘situação habitacional indigna'”. Afirma, contudo, esperar o parecer do Instituto da Habitação e da Reabilitação Urbana.
A solução passaria pela “criação de novas construções assim como pela aquisição e reabilitação de habitações dispersas pelo concelho, de forma a conseguir-se realojar a população ali residente”. A autarquia garante ter em curso um trabalho que envolve a criação de uma equipa técnica para o acompanhamento das famílias neste processo, de forma a ser “um trabalho participativo e cívico”.
Reconhece que este bairro é um desafio e “uma prioridade”, “apesar de as condições habitacionais terem melhorado, quer ao nível da estabilidade das habitações (com construções em alvenaria, com cobertura), quer ao nível da salubridade (em cada habitação foram improvisadas infraestruturas básicas de água, luz e esgotos)”. A própria autarquia diz ter instalado no local um ponto de água.
Mas há quem já esteja a estudar outras alternativas. Como o arquiteto Afonso Nuno Martins, que há anos foca o seu trabalho na área de arquitetura comunitária como investigador da Faculdade de Arquitetura de Lisboa e da ONG Building4Humanity. Desenvolveu sobretudo iniciativas em favelas do Rio de Janeiro, no Brasil, onde tentou provar que repensar a arquitetura é meio caminho para resolver questões de saúde pública.
Em parceria com colegas da área, na Índia, Afonso Nuno Martins procura agora montar uma investigação que cruze a arquitetura com a covid-19, estudando a fundo um bairro português. “Porque está sempre tudo ligado: a vulnerabilidade, os riscos e os desastres. A transmissão de covid-19 tem tudo que ver com a arquitetura. Está mais do que provado que as transmissões decorrem entre quatro paredes”, explica. Tem na mira o bairro de Santa Marta de Corroios, que começou a estudar.
As soluções passam por propor alternativas que envolvam as pessoas e procurar parcerias que integrem não só a autarquia, mas também empresas. “O que não é muito comum em Portugal”, admite. O princípio básico do processo de reabilitação que idealiza para este bairro é manter o mais possível. Mas, antes, perceber os pontos mais vulneráveis (como o risco de cheias) e atacar estes pontos, com a ajuda das pessoas, “porque são elas que vivem lá”.
Um dos desafios, reconhece, pode ser o facto de a intervenção decorrer em terreno privado. Neste caso, “tem de haver uma cedência, mas a Câmara Municipal do Seixal pode ter aqui um papel importante, ao propor uma permuta com o proprietário para ele reaver esta porção de território, mas noutro lugar”. As próprias ONG’s “também fazem aqui um papel intermediário”. “E isto não é uma utopia. Nunca houve uma iniciativa que não avançasse por esta razão, por não conseguirmos demover um ator privado.”
O investigador dá exemplos de sucesso em que esteve envolvido. Um deles, em que este modelo de intervenção com parcerias resultou, foi na favela da Rocinha, no Rio de Janeiro. “Às vezes, consegue-se salvar vidas com projetos urbanísticos”.
Neste local, criaram um mercado solidário, “onde as mulheres traziam pacotes de leite para que o alumínio da embalagem fosse transformado pela fábrica de cimento da zona [com quem tinham feito uma parceria] em coberturas [telhados] mais resistentes do que zinco e com melhores características térmicas, a troco de uma moeda local virtual”. O que vê ser passível de réplica por cá.
Afonso Nuno Martins olha para este bairro como a Cova da Moura “em embrião”. A Cova da Moura está estabilizada, hoje já ninguém fala em realojamento. Fruto do envolvimento da comunidade, que quis ali ficar e criar as suas próprias condições, com a ajuda de intervenientes externos. “Quando olho para Santa Marta, vejo isso.”
Vê o mundo de possibilidades que podem tornar este um bairro mais saudável. Sem que para isso seja necessário destruir o que aqui há de bom. Mas melhorando o que é nitidamente desumano e que causa estranheza sobretudo num país da União Europeia, no século XXI.
Catarina Reis
Nascida no Porto há 26 anos, foi adotada por Lisboa para estagiar no jornal Público. Um ano depois, entrou na redação do Diário de Notícias, onde aprendeu quase tudo o que sabe hoje sobre este trabalho de trincheira e o país que a levou à batalha. Lá, escreveu sobretudo na área da Educação, na qual encheu o papel e o site de notícias todos os dias. No DN, investigou sobre o antigo Casal Ventoso e valeu-lhe o Prémio Direitos Humanos & Integração da UNESCO, em 2020.
Santa Marta. Cresci e nasci. O Rui é meu irmão e conhece bem as zonas. Estou fora, mas por mais que se saia, o bairro nunca sai de nós. Voltamos sempre. É a nossa primeira casa. Sem dúvida. Mto boa matéria. Sim senhora, estão de parabéns .
Bairro de santa Marta e nos primeiro casa mesmo pá nos imigrantis stm sta na crescimento
Muito bom. Grandes fotos
Surpreendente, chocante, fabulosa reportagem. Só contando as histórias e mostrando as pessoas por detrás de notícias alarmantes mas sem contexto, se consegue separar a realidade do fictício e entender o outro. Parabéns pela reportagem e parabéns a essa grande ‘família’ do bairro da Quinta das Lagoas. Que as vossas condições de habitabilidade melhorem, mas que esse espírito perdure.