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Ao contrário daquilo que acontece com os auatomóveis, dotados de muito maior massa, velocidade e, por consequência, poder destrutivo, as trotinetes e as bicicletas elétricas têm a velocidade dos seus motores limitada por via da lei. Desde que a presença destes veículos nas ruas dos grandes centros urbanos passou a ser comum que a velocidade máxima dos seus motores está limitada a 25 quilómetros por hora.
Sabe-se que a velocidade de circulação dos automóveis é determinante na gravidade dos sinistros rodoviários. No caso dos atropelamentos, que entre 2010 e 2016 representaram 53,6% das vítimas mortais em sinistros rodoviários na cidade de Lisboa, a velocidade é a diferença entre a vida e a morte.
Segundo dados da Comissão Europeia, existe uma ligação direta entre a probabilidade de um atropelamento revelar-se fatal e a velocidade do automóvel. Os atropelamentos de peões por veículos que circulam a uma velocidade inferior a 32 quilómetros por hora revelam-se fatais em apenas 5% dos sinistros, mas quando a velocidade aumenta, a mortalidade cresce exponencialmente.
A 48 quilómetros por hora, perto do limite de velocidade atualmente definido dentro das localidades, os atropelamentos são fatais em 45% dos sinistros e quando a velocidade atinge os 64 quilómetros por hora, ocorrência comum nas avenidas mais largas da cidade, o atropelamento tem como resultado a morte do peão em 85% das ocorrências.
É este o grande argumento para a redução da velocidade máxima de circulação nas cidades para os 30 quilómetros por hora. Se nas trotinetes e nas bicicletas elétricas, a velocidade dos motores está regulamentada, pode o mesmo ser feito nos automóveis?
A tecnologia utilizada pelas trotinetes pode desacelerar carros também
Apesar de trotinetes e bicicletas terem a aceleração e velocidade máximas dos seus motores regulamentadas, o que acontece por via das normas europeias e da sua transposição para os códigos da estrada dos vários estados membros, Lisboa foi recentemente além do atual limite.
Num acordo entre Câmara Municipal de Lisboa (CML) e os operadores de micromobilidade de Lisboa, assinado no passado dia 9 de janeiro, determinou-se que os motores de trotinetes e bicicletas elétricas passam a funcionar, apenas, até aos 20 quilómetros por hora.

A medida visa o aumento da segurança de quem utiliza estes veículos, mas visa também o aumento da segurança dos restantes utilizadores rodoviários e de quem circula pelos passeios da cidade, muitas vezes utilizados – de forma irregular – por quem se desloca de trotinete, face à inexistência de vias segregadas do trânsito automóvel.
O impacto da presença de trotinetes e bicicletas na segurança rodoviária não é, contudo, comparável ao perigo representado pelo automóvel.
Segundo dados da Polícia de Segurança Pública (PSP), em 2022 não se registou nenhuma vítima mortal na utilização de trotinetas em todo o país. O mesmo aconteceu nos quatro anos anteriores – zero mortes.
Do lado do restante tráfego rodoviário, o panorama é bem diferente. Números provisórios fornecidos pela Autoridade Nacional de Segurança Rodoviária (ANSR) davam conta, no final de 2022, de 460 mortes nas estradas portuguesas.
Nas trotinetes dos operadores que atuam em Lisboa, a redução das velocidades é efetiva, automática e efetua-se através de um clique. Frederico Venâncio, responsável de micromobilidade da Bolt em Portugal, explica à Mensagem que todas as trotinetes e bicicletas elétricas da operadora contam com um dispositivo de ligação remota que se liga ao sistema da empresa “e que basicamente vai beber toda a informação que inserimos”. Mudanças nos locais onde é possível estacionar os veículos, onde estes podem circular e a que velocidade são realizadas à distância refletem-se imediatamente na experiência do utilizador.
“Se conseguimos implementar [esta tecnologia] em trotinetes e bicicletas elétricas, imagino claramente que possa implementar-se em veículos [automóveis]. Não só acho que é possível, como acho que é algo que deveria ser tido em consideração”
Frederico Venâncio, responsável de micromobilidade da Bolt em Portugal
Mário Alves, especialista em mobilidade e transportes, acredita que a tecnologia que tem vindo a ser utilizada na gestão dos sistemas de micromobilidade partilhada, como “o geofence e o controlo dos limites de velocidade por software, pode ser uma das dádivas políticas das trotinetes. Digo politicamente, porque tecnologicamente já há muito que é possível fazer o mesmo para automóveis”.
“Apesar de socialmente lidarmos bem com a hipocrisia”, diz, em referência à recente mediatização das trotinetes em matéria de segurança rodoviária, “ela é cada vez mais óbvia e dará cada vez mais força a quem argumenta pelo controlo de velocidade dos automóveis”.
A partir de 2024, os carros vão avisar quem exceder os limites
Em 2019, a Comissão Europeia procurou fazer com os carros algo parecido com aquilo que hoje as trotinetes fazem. Aprovou o Intelligent Speed Adaptation (ISA). Este sistema de adaptação inteligente da velocidade é uma funcionalidade que tem como objetivo “ajudar o condutor a manter a velocidade adequada à situação rodoviária, fornecendo-lhe indicações”, lê-se em documento da Comissão Europeia.

Durante as negociações, foram várias as funcionalidades equacionadas, incluindo a adoção de tecnologia idêntica à utilizada nas trotinetas e que forçaria o cumprimento dos limites de velocidade em vigor em cada local.
O rumo das negociações do ISA não terá sido imune à pressão do lóbi automóvel e a forma final encontrada para promover a adequação das velocidades por parte dos automóveis não implica a adequação automática das velocidades praticadas aos limites em vigor.
Mário Alves esteve envolvido nas negociações pela introdução do ISA e explica que “no início a ideia era que todos os carros teriam um controlo automatizado da velocidade que obedecesse ao limites estabelecidos pela sinalização. Depois de um lóbi imenso e intenso da indústria automóvel, a Comissão Europeia acabou por diluir as primeiras intenções. Acabou como um sistema que pode ser desligado pelo motorista”, diz.
O ISA é tecnicamente implementado de duas formas: através do reconhecimento, com recurso a câmara instalada no veículo, da sinalização vertical e dos limites aí impostos, ou, em alternativa, através da geolocalização.
Tal como foi aprovado, o ISA garantirá apenas que todos os automóveis novos, até julho de 2024, emitem avisos ao condutor sempre que a condução se realize acima do limite legal de velocidade.
Assim, continua a ser possível exceder os limites em vigor, sempre que a pessoa que conduz decidir ignorar os avisos. Adicionalmente, os condutores com esta funcionalidade podem desativar o sistema, caso desejem.
Mesmo sem a garantia da redução efetiva das velocidades, o Conselho Europeu de Segurança dos Transportes (ETSC) acredita que a implementação do ISA vai permitir uma diminuição de 30% nas colisões e de 20% no número total de mortes. Recorde-se que a Comissão Europeia assume o objetivo de alcançar zero mortes e feridos graves nas estradas até 2050.
Não se reduz a velocidade com a mudança de um sinal
Em 2018, morreram 30 pessoas em Lisboa vítimas de sinistros rodoviários. No ano seguinte, a cidade anunciava o início da construção do seu Plano Municipal de Segurança Rodoviária, sob o mote Visão Zero. O objetivo? Alcançar zero mortes na estrada até 2030.
A redução generalizada dos limites de velocidade em Lisboa, votada favoravelmente em maio do ano passado, ainda não foi implementada pela cidade. Quando isso acontecer, não há, contudo, a garantia do cumprimento dos mesmos. O alerta é deixado por Ana Tomaz, vice presidente da Autoridade Nacional de Segurança Rodoviária (ANSR).
À margem de um evento subordinado ao tema das trotinetas e outros veículos de micromobilidade nas cidades, Ana Tomaz sublinhou que “quando conseguimos reduzir a velocidade, estamos a reduzir o risco”, mas lembrou que “reduzir a velocidade não é pôr um sinal”. A convivência entre todos os utilizadores da cidade faz-se através do “redesenho das cidades”, diz, sublinhando que deve ser o “desenho urbano” e das ruas o responsável por “condicionar o comportamento e as velocidades”.

Segundo a dirigente da ANSR, a estratégia nacional Visão Zero 2030 está concluída e será agora submetida a comissão parlamentar. Esta estratégia tem como base a abordagem Sistema Seguro, que visa a eliminação das consequências graves dos sinistros rodoviários através de mudanças no desenho das vias, encorajando velocidades reduzidas e mais atenção à envolvente. Esta estratégia vai, afirma, obrigar “determinadas zonas nos centros urbanos” a impor os 30 quilómetros por hora como limite.
“Temos uma perceção errada da leitura da estrada que nos leva a ter colisões. O ambiente rodoviário condiciona e é no ambiente rodoviário que devemos agir, essa é a Visão Zero”.
Ana Tomaz, vice presidente da ANSR
A cidade espanhola de Pontevedra, com mais de 80 mil habitantes, com o centro encerrado à circulação automóvel, decretou, em 2011, 30 quilómetros por hora em toda a cidade. Desde então, não há mortes em resultado de sinistros rodoviários. Em 2020, o edil, Miguel Anxo Llores esteve num debate na Brasileira do Chiado, e referiu a responsabilidade política: “O espaço público é um direito. Um espaço público dinâmico e que não te mate. Os políticos têm responsabilidade porque podem decidir quem circula no espaço público”.
A receita para a segurança rodoviária não está por descobrir e Ana Tomaz lembra que “Oslo e Helsínquia já reduziram para zero mortes”.

Frederico Raposo
Nasceu em Lisboa, há 30 anos, mas sempre fez a sua vida à porta da cidade. Raramente lá entrava. Foi quando iniciou a faculdade que começou a viver Lisboa. É uma cidade ainda por concretizar. Mais ou menos como as outras. Sustentável, progressista, com espaço e oportunidade para todas as pessoas – são ideias que moldam o seu passo pelas ruas. A forma como se desloca – quase sempre de bicicleta –, o uso que dá aos espaços, o jornalismo que produz.
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