Está a parecer-me mais fácil apanhar um comboio em dia de greve do que escrever um artigo sobre a CP – Comboios de Portugal. Note-se que há quinze sindicatos e duas associações para trabalhadores e trabalhadoras da ferrovia. Consideremos 17 (ver lista abaixo). Não me cabe aferir se são muitos ou poucos, não conheço as especificidades de uma empresa de ferrovia, mas que é difícil organizar tanta informação, é.
Nomeio quatro: Sindicato Independente dos Operacionais Ferroviários e Afins (SIOFA), Sindicato Independente dos Trabalhadores Ferroviários, das Infraestruturas e Afins (SINFA), Sindicato Nacional dos Ferroviários do Movimento e Afins (SINAFE), Sindicato Independente dos Ferroviários e Afins (SIFA).
E queremos que as greves tenham fim? Nem a tomar pelos nomes é possível – tudo tende para infinito. Greves de longo curso.
Comecei a andar de comboio há praticamente um ano, desde que fiquei sem carro. Se não fosse a CP, não sei como teria conseguido continuar a trabalhar em Lisboa. Não há alternativa direta. Quando os comboios funcionam, a minha experiência é que funcionam a horas e muito bem.
A CP foi a minha salvação pública.
E a linha que me calhou foi precisamente a de Sintra, onde aconteceram os incidentes de há uns dias – carruagens sobrelotadas e os passageiros a abrir portas fora e a saltar para a linha, porque uns se sentiram mal. O ataque de ansiedade podia ter sido comigo, que me lembro de ter o meu primeiro num metro sardinha em lata igual, só que na América do Sul. Tenso.
Felizmente, ando em horários pouco concorridos e, felizmente, não tenho ido sequer à estação em dias de greve. Ou porque consigo boleia (excelente!), ou porque consigo um carro emprestado (pago a gasolina a preço de rainha, excelente!), ou porque não vou trabalhar (não recebo, excelente!).
Acontecem as três opções aleatoriamente e tenho que gerir em função das vontades dos dezassete sindicatos, semana a semana.
Sei que há pessoas com realidades piores do que minha e bem as vejo quando ando de comboio. Mas é a minha que conheço e posso garantir que não tenho subsídio de refeição, nem um salário fixo mensal, nem subsídio de transportes, nem contrato de trabalho. Tudo o que qualquer trabalhador ou trabalhadora da CP tem direito (e bem!).
Quando as lutas de uns sufocam as lutas de sobrevivência diária dos demais, como se resolve? Gostava de ter resposta.
Não é o mesmo que alunos e alunas ficarem sem matéria, normalmente reposta pela supra capacidade de milhares de professores e professoras deste país, que são maltratados há anos. Está mais próximo de ver milhares de famílias sem várias refeições na mesa, sem consultas necessárias, sem escola, sem dignidade. Os afins que só custam às pessoas deste lado de cá, as que não têm sindicato que as defenda.
Vale ressalvar que eu defendo a existência de sindicatos robustos, que lutem por direitos, liberdades e garantias, principalmente numa era capitalista desenfreada como a que vivemos hoje. Continuamos a precisar que um grupo alargado de pessoas recorde a um grupo muito reduzido de pessoas, normalmente regado de privilégios, que quem trabalha tem um corpo, uma alma e uma vida.
Quanto à CP, é fundamental como empresa pública de transporte, prestadora de um serviço público essencial que é “ligar pessoas e comunidades, de forma sustentada e alicerçada no modo ferroviário”, a sua missão.
Continuamos a precisar de nos deslocar dentro das cidades, entre cidades, de norte a sul, do litoral ao interior, com uma gestão virada para a realidade social do país, não para a realidade de ouro de quem manda nele.
E convém lembrar que a CP foi uma empresa fundada em 1860 por um empresário espanhol para construir linhas ferroviárias que ligassem Lisboa ao Porto e à fronteira com Espanha e Badajoz, tendo sido nacionalizada depois do 25 de abril.
Foi mais anos privada do que pública, embora tenha sempre prestado um serviço público ao país. Precisaria de outro tempo e de outro espaço para perceber o que mudou na CP desde que é uma empresa pública, nomeadamente no acesso ao interior.
Como não é isso que me traz aqui: lamento. Hoje gostava de falar do que se passa hoje.
Analisando períodos de greve da CP, e recuando apenas uma década, em 2012, 2013, 2014, 2015, 2018, 2021 e 2022, tivemos períodos intensos de greve em que se reivindicou sobretudo, mais Acordo de Empresa menos Acordo de Empresa, mais alterações ao Código do Trabalho menos alterações ao Código do Trabalho, melhores condições salariais.
Em 2023, o que poderia acontecer? O mesmo. Há inflação? Há. É legítimo? É. Mas o que é interessante no meio disto tudo? É que, entre os 17 sindicatos, uns marcam greve num dia, outros noutro, outros apenas num ano, outros todos os anos.
Exemplo: o Sindicato Nacional dos Maquinistas dos Caminhos de Ferro Portugueses (SMAQ) não marcava uma greve na CP desde 2013. Faço ideia da dor de cabeça que são as negociações. Quando as há, claro. Alô, alô, João Galamba?
E já que falei no SMAQ: achei particularmente interessante ouvir o respetivo presidente, António Domingues, no podcast Sobre Carris, do Público, a dizer que o Fundo de Greve do SMAQ não consegue ressarcir na totalidade os dias de greve, apenas parcialmente.
Talvez os elementos do sindicato, que contribuem financeiramente para a existência deste Fundo, devessem pensar em fazer uma greve dentro da greve, uma espécie de greve urbana ou regional. É que o dinheiro não estica, mesmo num sindicato.
Ora, e o que aconteceu em maio de 2022, há pouco menos de um ano?
A CP chegou a acordo com doze sindicatos para a revisão do Acordo de Empresa, 12 sindicatos esses que representavam, e ainda representam, 71% dos trabalhadores e trabalhadoras sindicalizadas da CP.
O que se conseguiu da negociação CP vs. Sindicatos? O aumento salarial para todos os trabalhadores de 0,9%, com efeitos retroativos a 01 de janeiro de 2022, a uniformização do subsídio de refeição para 7,74€ e a integração dos trabalhadores da ex-EMEF (Empresa de Manutenção de Equipamento Ferroviário) na tabela salarial da CP, com efeitos retroativos a 01 de janeiro.
Conseguiram alguma coisa, por isso ficaram satisfeitos? Não. Porque agora a inflação é de 7,8%, porque está previsto para 2023 um aumento salarial na função pública de 5,1%, mas isso, na CP, só vai representar um aumento real de 3,49%, porque os aumentos salariais não acompanham o aumento do custo de vida.
Dói? Dói. É justo que lutem sempre por mais e melhor? É. Falta é perceber à custa de quê e, principalmente, de quem.
A CP não ganha em dias de greve, como nos tentou comprovar Miguel Sousa Tavares no Expresso da semana passada. Segundo uma reportagem do Público, “é um mito que a empresa compense a perda de receita com o que poupa nos custos operacionais por não realizar comboios. Pelo contrário, a perda de receita é devastadora para as suas contas e o que já perdeu nestas greves daria para satisfazer as reivindicações salariais dos seus trabalhadores.”
Olhemos antes para a tabela de remunerações da CP de 2022: o ordenado mais baixo é da categoria profissional de Contínuo, 712,11€ se for homem e 711,92€ se for mulher; o ordenado mais alto é de Técnico Superior Nível I, 3.526,17€ se for homem e 2.332,52€ se for mulher.
Já viram, que lindo? A CP explica: “A tabela salarial em vigor na empresa é única. As diferenças salariais entre os géneros resultam essencialmente do nível de antiguidade na empresa.” Volto a lamentar não conseguir desenvolver isto, mas os dados chocam por si.
Talvez não ficasse mal aos sindicatos lutar também pela igualdade salarial. Fica a sugestão.
Quanto ao resto, a maior parte das categorias profissionais ronda os 1.000€/1.200€, andando a média salarial à volta dos 2.100€. Num país como o nosso, há mesmo bem pior.
Termino este artigo no dia em que começa uma nova greve. Uma greve de sexta a sexta, claramente razoável, para entrarmos mesmo bem no fim de semana. A partir de segunda-feira, deixo de ter carro emprestado e não prevejo nenhuma boleia, mas tenho trabalhos em Lisboa na terça, na quarta e na quinta aos quais não posso faltar.
Nenhum destes trabalhos cobre uma deslocação privada alternativa entre Sintra e Lisboa, por isso é bem provável que aquilo que vá gastar em transportes seja superior ao que vou ganhar.
Já não tenho ataques de ansiedade há anos, foram tratadas as causas em local devido, mas só mesmo muita meditação e muito yoga e muita arte e provavelmente alguma loucura não patológica é que me permitem não ter um enquanto escrevo, sem precisar de chegar a um comboio lotado.
Por muitas contas que faça à vida, e sei fazê-las, e estão em dia sabe a família como, a precariedade a que somos sujeitos, sobretudo jovens, é um círculo vicioso.
Que me mostre o Governo como se sai desta roda, quando parece que nem de casa consigo sair.
Lista de Associações e Sindicatos
Associação Sindical das Chefias Intermédias de Exploração Ferroviária (ASCEF)
Associação Sindical Independente dos Ferroviários da Carreira Comercial (Assifeco)
Federação dos Sindicatos de Transportes e Comunicações (Fectrans)
Sindicato dos Engenheiros (SERS)
Sindicato dos Trabalhadores do Metro e Ferroviários (STMEFE)
Sindicato dos Transportes Ferroviários (STF)
Sindicato Ferroviário da Revisão Comercial Itinerante (SFRCI)
Sindicato Independente dos Ferroviários e Afins (SIFA)
Sindicato Independente dos Operacionais Ferroviários e Afins (SIOFA)
Sindicato Independente dos Trabalhadores Ferroviários, das Infraestruturas e Afins (SINFA)
Sindicato Independente Nacional dos Ferroviários (SINFB)
Sindicato Nacional Democrático da Ferrovia (SINDEFER)
Sindicato Nacional dos Ferroviários do Movimento e Afins (SINAFE)
Sindicato Nacional dos Maquinistas dos Caminhos de Ferro Portugueses (SMAQ)
Sindicato Nacional dos Quadros Técnicos (SNAQ)
Sindicato Nacional dos Trabalhadores do Setor Ferroviário (SNTSF)
Sindicato Nacional dos Transportes Comunicações e Obras Públicas (FENTCOP)
* Nascida em Coimbra em 1989, Rita Dias canta, compõe, escreve e representa. Lançou o disco “Com os pés na terra”, participou no Festival da Canção e editou o livro de poesia “O Encontro do Tempo Ternário”, em Portugal e no Brasil. Em 2020/2021, estreou-se em duas peças de teatro e, em 2022, lançará o seu segundo disco, “Morremos tanto para crescer“.

O jornalismo que a Mensagem de Lisboa faz une comunidades,
conta histórias que ninguém conta e muda vidas.
Dantes pagava-se com publicidade,
mas isso agora é terreno das grandes plataformas.
Se gosta do que fazemos e acha que é importante,
se quer fazer parte desta comunidade cada vez maior,
apoie-nos com a sua contribuição:
Concordo a 100% e já emiti uma opinião semelhante. Só adiciono que muitas vezes irrito-me com a CP não só por causa das greves, mas num cenário como o nosso é muito importante ter a oportunidade de escolher um método de transporte amigo do ambiente e o comboio é o mais acessível e barato.
Uma multidão de sindicalistas para fazer greves o ano inteiro e não resolver a contento. Um sindicato forte para toda a empresa. Três dias de greve com passagens de graça e sindicalistas explicando o porque da greve para o povo. Todos seriam solidários e, sem entrada de renda, a empresa chegaria em acordos melhores.