Quem hoje procura casa na cidade de Lisboa ou em toda a Área Metropolitana não encontra tarefa fácil – isso já se sabia. Mas quando a crise da habitação é colocada num desenho, a verde e a vermelho – entre as casas que nos estão acessíveis com o nosso rendimento e aquelas que não -, ganhamos outra visão das dificuldades enfrentadas.

Manuel Banza, um lisboeta, cientista de dados, pegou em 2637 anúncios de arrendamento e procurou oferecer uma visão gráfica do mercado imobiliário em Lisboa.

Inspirado por um trabalho do jornal Público, decidiu agarrar nos anúncios de uma das maiores plataformas de procura de casa em Lisboa, para gerar gráficos capazes de ilustrar a falta de habitação acessível na cidade e nos concelhos que a rodeiam.

A conclusão? A cidade está quase toda a vermelho e uma pessoa, sozinha, não consegue arrendar com uma taxa de esforço aceitável (35%, segundo definido pelo Governo) em nenhum dos 18 municípios da Área Metropolitana de Lisboa (AML).

A vermelho são sinalizados os anúncios a cor com valor de arrendamento acima da taxa de esforço máxima considerada (35%).

A verde surgem os anúncios abaixo da taxa.

Nos gráficos que gerou, Manuel Banza sinaliza cada um dos 2637 imóveis presentes na plataforma imobiliária a 22 de fevereiro com um círculo.
Os vários gráficos interativos que mostramos neste artigo permitem, para cada tipo de agregado considerado, selecionar a tipologia associada a cada anúncio.

1 pessoa, 1 dependente: oferta inexistente

A tarefa mais difícil no acesso ao mercado habitacional está reservada a quem procura casa sozinho e a quem tem dependentes. Seguindo uma taxa de esforço de 35% – adotada pelo governo no pacote de medidas para a habitação apresentado na passada quinta-feira – verifica-se que, no mercado, praticamente não há casas que garantam um peso aceitável do custo da habitação face ao rendimento mensal disponível.

Para os gráficos elaborados pelo cientista de dados, foi considerado o salário médio líquido na Área Metropolitana de Lisboa – 1047 euros mensais, segundo o estudo Brighter Future, conduzido pela Fundação José Neves. Para este valor de rendimentos, a taxa de esforço máxima definida pelo governo aponta para um valor máximo de renda de 367 euros, no caso de uma pessoa sem dependentes, e de 733 euros, no caso de um agregado composto por duas pessoas sem dependentes.

Uma pessoa sem dependentes não encontra, de acordo com a análise, um único imóvel com um valor de renda compatível com o salário médio em nenhum dos 18 municípios da AML. Nem mesmo um T0.

No caso de uma pessoa com um dependente a seu cargo, a situação fica ainda mais no vermelho – a oferta é também inexistente e, neste caso, a taxa de esforço aumenta ainda mais. É preciso olhar para agregados compostos por duas pessoas para encontrar opções viáveis no mercado. São, contudo, poucas.

Quando olhamos para agregados de duas pessoas que aufiram o salário médio líquido na AML – 2095 euros, na soma de dois salários médios líquidos – constata-se que a oferta existente numa das maiores plataformas de procura de habitação não está ajustada aos valores dos salários.

Um salário médio e o T1 mais barato de Lisboa: 72% de taxa de esforço

Idealmente, num cenário de alguém que aufere o salário médio líquido na AML (1047 euros) e em que a taxa de esforço máxima definida pelo governo para a habitação é atingida, isso significaria que o valor da renda seria de 367 euros, sobrando 680 euros para as restantes despesas.

A 22 de fevereiro, o T1 com o valor mensal de arrendamento mais reduzido em Lisboa apresentava uuma renda de 750 euros, entre mais de 1100 imóveis listados no município numa das maiores plataformas online de habitação.

Olhando para a realidade do mercado e da oferta online, o preço revela-se incompatível com o rendimento médio dos agregados familiares. O valor mais reduzido disponível na cidade de Lisboa para um apartamento com um quarto era, a 22 de fevereiro, de 750 euros. Para este apartamento, situado na freguesia de Santa Clara, a taxa de esforço para alguém a auferir o salário médio na AML seria de 72%. Com um rendimento de 1047 euros mensais e uma renda de 750 euros, sobrariam, apenas, 297 euros para todas as despesas, incluindo energia, comunicações, alimentação e transportes.

Mesmo no caso de um agregado composto por duas pessoas a auferir o salário médio líquido na AML, a taxa de esforço seria de 36%, ligeiramente superior ao máximo recomendado de 35%.

2 pessoas sem dependentes: não na cidade

No município de Lisboa, duas pessoas à procura de um T1 ou um T2 não encontram ofertas dentro da taxa de esforço máxima, sendo preciso olhar para municípios periféricos, como Setúbal, Sintra ou Moita para encontrar alguns – poucos – anúncios dentro da taxa de esforço referência.

No total, para agregados de duas pessoas, apenas 3% dos anúncios encaixam na taxa de esforço recomendada. Para duas pessoas com um dependente, Manuel Banza também criou um gráfico, que pode ser consultado aqui.

“As pessoas com um rendimento médio estão completamente expulsas”

Para Luís Mendes, geógrafo e investigador no Instituto de Geografia e Ordenamento do Território (IGOT) da Universidade de Lisboa, a representação gráfica dos valores praticados no mercado de arrendamento na AML ilustram “um cenário de uma cidade altamente especulativa”.

“As pessoas com um rendimento médio estão completamente expulsas, são centrifugadas para as periferias e para as margens e as zonas limítrofes da Área Metropolitana de Lisboa”

LUÍS MENDES

O especialista afirma que, hoje, “só os mais ricos, ou a classe média alta bem estabelecida é que consegue aderir à oferta privada – e com muita dificuldade, com taxas de esforço sempre muito acima dos 35%”.

Sobre as medidas apresentadas pelo governo na semana passada, Luís Mendes considera que podem vir a ter “impacto no valor das rendas em Lisboa”, mas considera virem “tarde” para surtir efeito rápido nos valores do mercado de arrendamento.

“Estamos sempre a partir de um diagnóstico de um mercado de arrendamento sobreaquecido, o que revela que estas medidas já são tardias e que deveriam ter sido adotadas de forma mais precoce, para evitar precisamente esta escalada galopante dos preços”.

Sobre o caminho a seguir, o especialista elenca uma medida prioritária: “o Estado poderia aumentar a regulação do mercado se mobilizasse uma grande parte dos seus devolutos”, sublinha.

Recorde-se que entre as medidas propostas pelo governo para fazer face à crise da habitação, estão a proibição de novas licenças de Alojamento Local (AL), benefícios fiscais para proprietários que coloquem as suas casas no mercado de arrendamento a preços acessíveis e um travão ao crescimento desmesurado dos valores das rendas, através da indexação das subidas à taxa de atualização das rendas definida pelo Estado a cada ano e ao valor da inflação previsto pelo Banco Central Europeu (BCE) – atualmente de 2%.

Apesar do travão à subida dos valores, os valores altos atuais mantêm-se com as novas medidas do governo.

Para fazer os valores das rendas descer, Luís Mendes considera que é essencial aumentar a oferta de habitação a preços acessíveis e, para isso, o primeiro passo deve ser dado através da mobilização do património público devoluto com vocação residencial.

“É muito complicado conseguir, do ponto de vista inflacionário, aplacar ou mesmo reduzir o valor das rendas. A não ser por uma situação de mercado, em que o mercado fique efetivamente inundado de propriedades e, por concorrência, os preços acabem por influenciar-se uns aos outros”.

Esta mobilização, afirma, deve acontecer antes ainda da anunciada adoção de medidas como a tomada de posse administrativa, o arrendamento forçado ou as obras coercivas; deve estar na mobilização do património devoluto: em primeiro lugar, do património devoluto público com vocação residencial, dos devolutos de instituições como a Santa Casa da Misericórdia de Lisboa e, só depois, do parque habitacional devoluto privado.

Ainda entre as medidas apresentadas pelo governo, está a criação de um subsídio de até 200 euros, atribuível a agregados cujos contratos de arrendamento se encontrem dentro dos valores tabelados pelo Instituto da Habitação e Reabilitação Urbana (IHRU) para cada concelho do país (disponível aqui, em formato PDF). Para aceder a este subsídio em Lisboa, um T1 deve ter valores de renda até aos 900 euros e um T2 até aos 1150 euros.

Carta Municipal de Habitação quer 9600 casas acessíveis em dez anos

Há 48 mil devolutos em Lisboa, a cidade tem um potencial de mobilização de habitação elevado. E foi com um olho no potencial habitacional municipal e na diversificação dos modos de produção de habitação, olhando para o património autárquico – que o município estima ser de 9624 fogos, entre edifícios públicos e terrenos municipais – que foi apresentada a Carta Municipal de Habitação.

A apresentação do documento orientador das políticas de habitação da cidade para a próxima década – até 2032 – refere a falta de produção de habitação pública na última década como uma das grandes causas da atual crise habitacional em Lisboa.

Até 2032, a vereadora da Habitação da Câmara Municipal de Lisboa, Filipa Roseta, destacou o compromisso municipal de produzir 9624 casas a custos acessíveis. Destas, 5623 fogos dizem respeito a produção de habitação exclusivamente municipal – que se somariam aos já existentes 21936 fogos municipais – e 4001 são respeitantes a produção através do recurso a parcerias público-privadas e a cooperativas de habitação.


Frederico Raposo

Nasceu em Lisboa, há 30 anos, mas sempre fez a sua vida à porta da cidade. Raramente lá entrava. Foi quando iniciou a faculdade que começou a viver Lisboa. É uma cidade ainda por concretizar. Mais ou menos como as outras. Sustentável, progressista, com espaço e oportunidade para todas as pessoas – são ideias que moldam o seu passo pelas ruas. A forma como se desloca – quase sempre de bicicleta –, o uso que dá aos espaços, o jornalismo que produz.

frederico.raposo@amensagem.pt


O jornalismo que a Mensagem de Lisboa faz une comunidades,
conta histórias que ninguém conta e muda vidas.
Dantes pagava-se com publicidade,
mas isso agora é terreno das grandes plataformas.
Se gosta do que fazemos e acha que é importante,
se quer fazer parte desta comunidade cada vez maior,
apoie-nos com a sua contribuição:

Entre na conversa

5 Comentários

  1. Prezado Frederico, parabéns pela sua matéria. Moro no norte do Brasil (estado do Pará), e estou quase para aposentar. Pretendo passar uma temporada em Portugal e sempre é bom saber dos desafios e possibilidades.
    Abraços

  2. It’s funny that a “scientist” takes the average salary value and says that “no one” can rent. An average is, as the name implies, an average. Some people earn more, a lot more.

    Beyond that, no where in the world would someone making an average salary live in the center of the capital. Do people that make an average salary live in Manhattan? In London Soho? In Paris on the Champs elisa?

    These dangerous communist ideas are going to take the country back 40 years.

Deixe um comentário

O seu endereço de email não será publicado. Campos obrigatórios marcados com *