E se o Estado se tornasse nosso senhorio? E se também se substituísse, de vez em quando, aos nossos inquilinos com mais fragilidades socioeconómicas? À procura de enfrentar a crise na habitação e garantir habitação a preços acessíveis, o Governo tomou a decisão de ir ao mercado arrendar habitações para as subarrendar a preços módicos e construir: haverá dois concursos para construção modular (para reduzir os tempos de construção), um em Lisboa que terá 350 fogos (na Quinta da Alfarrobeira), além de outros 70 fogos no Porto (Quinta do Viso).

Estas foram duas das muitas medidas a sair do programa “Mais Habitação”, apresentado esta quinta-feira, 16 de fevreiro, em conferência de imprensa pelo governo. Um plano a nível nacional que representará um valor de cerca de 900 milhões de euros no orçamento – segundo disse Fernando Medina. O que muda para Lisboa – a cidade onde até há bem pouco tempo ele era edil?

Entre os mecanismos apresentadas pelo Governo para o combate à crise habitacional há um pouco de tudo: da tomada de posse administrativa, ao fim dos vistos Gold, à simplificação dos processos de licenciamento, à proibição de novas licenças para Alojamento Local (AL) e à criação de um subsídio para quem arrenda casa.

Recorde aqui todas as medidas apresentadas a nível nacional

Para Luís Mendes, geógrafo e investigador no Instituto de Geografia e Ordenamento do Território (IGOT) da Universidade de Lisboa, as medidas dadas a conhecer pelo Governo representam um momento histórico.

“É um pacto que faz história na política de habitação. E pode ter impacto no valor das rendas em Lisboa.”

Luís Mendes

Gonçalo Antunes, investigador do Centro Interdisciplinar de Ciências Sociais da Universidade Nova de Lisboa (CICS.NOVA – NOVA FCSH), mostra-se surpreendido.

“Devo confessar que aquilo que saiu foi muito para além daquilo que estava à espera. Uma atitude do Estado que é muito intervencionista no mercado, muito mais do que aconteceu nos últimos anos. Uma alteração de postura clara. Tivemos largos anos em que se deixou o mercado evoluir à sua sorte e agora temos uma intervenção do Estado que é muito ativa e intensa.”

Gonçalo Antunes

Mas podem muitas destas medidas ter real impacto na habitação em Lisboa, cidade que hoje sofre particularmente com esta crise?

Estado quer convencer proprietários a arrendar, mas medida não funcionou em Lisboa

O Estado vai passar a arrendar para subarrendar a custos acessíveis. O objetivo, assegurou o primeiro-ministro António Costa, é dar garantias aos proprietários, para que estes se sintam seguros e motivados a colocar os fogos habitacionais no mercado de arrendamento.

Aos proprietários, a renda será paga pelo Estado. E garantindo que quaisquer incumprimentos dos inquilinos – situação que já hoje é rara, assegura o primeiro-ministro – não terá consequências para quem é titular da propriedade.

Com contratos de cinco anos e com um valor de renda que assegura aos inquilinos uma taxa de esforço de 35%, as casas arrendadas pelo Estado serão subarrendadas e distribuídas através de sorteio, garantindo igualdade de oportunidade no acesso.

“Na teoria, é uma excelente medida, mas foi colocada em prática em Lisboa e não teve sucesso”, diz Gonçalo Antunes. Também por isso, o desafio, agora, é que o plano consiga convencer os proprietários e, para isso, apresenta algumas vantagens.

Lembra-se que…?

Esta não é a primeira tentativa de um programa assim em Lisboa. O que se apresenta agora é, em boa parte, idêntico ao programa Renda Segura, criado pela Câmara Municipal de Lisboa em 2020, depois de ter começado a panemia, por Fernando Medina, com o objetivo de arrendar apartamentos a senhorios de alojamento local e pô-los no mercado a preços acessíveis. A verdade é que, na altura, foi um fracasso. O objetivo inicial era a disponibilização de 600 imóveis com rendas controladas até ao final desse ano. Não conseguiu. Terminou o ano com apenas 284 imóveis angariados. E desses, apenas 85 terão sido resgatados ao AL.

Inquilinos ganham mão amiga para “regular” rendas, mas medida pode ser “limitada”

Ainda com o propósito de reforçar a confiança dos senhorios no arrendamento, foi anunciado que o Estado vai substituir-se aos inquilinos, nos contratos já em vigor, sempre que haja incumprimento por parte destes: quer isto dizer que o próprio Estado substitui o inquilino ao final de três meses de incumprimento e assegura a renda.

Mas para tentar pôr travão à subida galopante que os valores das rendas têm vindo a registar, com subidas que chegaram aos 23% num único ano, foram ainda anunciadas medidas que pretendem, nas palavras do primeiro ministro, “regular aquilo que tem sido o crescimento das rendas colocadas no mercado”.

Assim, vai passar a haver um travão ao crescimento desmesurado dos valores das rendas, com uma indexação das subidas à taxa de atualização das rendas definida pelo Estado a cada ano e ao valor da inflação previsto pelo Banco Central Europeu (BCE) – atualmente de 2%.

Gonçalo Antunes, investigador do CICS.NOVA – NOVA FCSH. Foto: DR

Esta pode ser uma medida agridoce. Gonçalo Antunes encontra potenciais defeitos e virtudes.

“Seguramente que é um travão nas rendas que serão praticadas no futuro, porque impossibilita que as rendas continuem a subir à velocidade a que estavam a subir”.

Avisa, porém, que “acaba por ser uma medida algo limitada, porque os valores que são hoje praticados vão continuar a ser os mesmos – muito altos e demasiadamente altos para a esmagadora maioria dos agregados familiares”.

Impacto em Lisboa vai depender do número de fogos no mercado

O especialista Luís Mendes classifica as medidas apresentadas como “arrojadas” e considera-as especialmente “penalizadoras” para o “mercado especulativo”. Vêm permitir, diz, “aplacar os valores das rendas” e “agilizar o mercado de forma robusta e assertiva”.

Luís Mendes, especialista do IGOT. Foto: DR

Mas, no final, acredita que o sucesso das medidas agora apresentadas vai depender da dimensão da solução. Quer isto dizer:

“Depende do volume de fogos envolvidos. Se forem algumas dezenas ou centenas, não será considerável, mas se for uma migração massiva de devolutos e de alojamento local ao nível dos milhares, acima de dois mil, para arrendamento acessível, já vai haver impacto no valor das rendas.”

Luís Mendes

Vistos Gold: travão à especulação?

Há aqui sinais de uma “orientação política muito forte, muito vincada, para proibir a especulação imobiliária” através da eliminação da concessão de novos vistos Gold, que atribuem autorização de residência a cidadãos que invistam no mercado imobiliário nacional, diz Luís Mendes.

O especialista do IGOT lembra ainda que esta medida permite a mobilização do património devoluto – há atualmente 15% de casas vazias em Lisboa, divididas entre devolutos e casas com condições habitacionais que não estão no mercado.

Já a renovação de vistos Gold existentes só servirá a investimentos imobiliários se forem habitação própria ou permanente do proprietário, ou se o imóvel for colocado no mercado de arrendamento.

Vender casas para renda acessível: Estado pode ser mais que um mediador

Apesar de elogiar a “coragem política para assumir estas medidas” e o facto de estar a haver “concretização” após a recente criação do Ministério da Habitação, que agora passa do “discurso para a prática”, Luís Mendes considera que estas medidas colocam o Estado na “figura de mediador, de gestor do parque habitacional privado” e aponta para a necessidade de ser também o Estado a garantir, através de um parque público de habitação, o direito à habitação.

Nesse sentido, está prevista a isenção de imposto de mais valias a quem vender ao Estado ou autarquias qualquer tipo de habitação.

Para além do investimento de 2,7 mil milhões de euros do PRR em habitação para criar 26 mil novas habitações públicas até 2026, o Estado e município procuram assim aumentar o número de habitações públicas.

Os terrenos classificados para fins de comércio ou serviços passam a poder ser licenciados para habitação. Foto: Inês Leote

Milhares de casas vazias de Lisboa entram no mercado

Há um “número muito significativo de casas em condições de habitabilidade mas que não estão no mercado”. As palavras foram proferidas por António Costa, mas já há muito que se sabe que o património devoluto do país – e de Lisboa – representa um potencial considerável, no que diz respeito ao cumprimento do direito à habitação e à disponibilização de habitação a valores acessíveis.

No país, são mais de 700 mil habitações vazias e em Lisboa, sabe-se que em 2021 eram 48 mil os fogos que se encontravam vagos (15% do total da cidade), segundo dados do INE. Destes, 25 999 eram mesmo dados como desocupados.

A nova construção e a reabilitação vão ser promovidas através da cedência de terrenos a cooperativas ou ao setor privado, para que aumente a oferta de habitação acessível. Além de que os terrenos classificados para fins de comércio ou serviços passam a poder ser licenciados para habitação. Noutro campo, o da mobilização do vasto parque habitacional devoluto, há novidades importantes.

O Estado promete agora tirar partido de ferramentas já existentes mas pouco utilizadas. Uma dessas é a tomada de posse administrativa: significa isto que, perante um fogo habitacional devoluto, o Estado ou os municípios podem proceder à realização de obras coercivas e à colocação do imóvel no mercado, a custos controlados, até que o valor investido seja recuperado e, então, a gestão da propriedade regressa ao seu proprietário.

Para isto, e porque os “municípios dificilmente recorrem [a este mecanismo] por dificuldades financeiras na realização de obras coercivas”, afirmou António Costa, será agora criado um fundo, no valor de 150 milhões de euros, para que os municípios possam financiar estas obras e coloquem estas habitações no mercado.

O especialista Gonçalo Antunes duvida da medida. Sobretudo, diz, “porque a verba parece muito reduzida”. “Não vai dar para muita coisa”, acredita.

Proibidos novos alojamentos locais: refazer o mercado?

A quebra no número de unidades de Alojamento Local e a transferência de imóveis para o mercado do arrendamento ocorrida durante a pandemia é prova, para Luís Mendes, de que muitas das atuais unidades de AL poderão, de facto, passar a servir a função de habitação.

Recorde-se que, atualmente, estão ativas mais de 20 mil licenças de AL dentro dos limites da cidade de Lisboa. 

A proibição de novas licenças de AL em todo o país, com exceção para concelhos do interior sem registo de pressão urbanística – vai ser das medidas mais polémicas, sobretudo em Lisboa, onde, contudo, já se impõe limites à concessão de novas licenças de AL em várias freguesias.

Recentemente foram suspensos temporariamente novos registos de alojamento local em freguesias da cidade em que o número de AL superava os 2,5% do total de fogos existentes – apesar do desacordo da coligação Novos Tempos, em setembro do ano passado, foi aprovado em reunião de câmara novo prolongamento por seis meses da suspensão aplicada à emissão de novas licenças de AL em 11 freguesias da cidade.

Estão proibidas novas licenças de AL em todo o país, com exceção para concelhos do interior sem registo de pressão urbanística. Foto: Orlando Almeida

Ação popular torna-se obsoleta?

Num momento de ebulição de movimentos populares em defesa do direito à habitação, está em curso uma campanha de recolha de assinaturas para a realização de um referendo local em Lisboa para impedir a existência de unidades de AL em prédios de habitação. Mas o que vêm estas medidas fazer à ação popular já programada?

Luís Mendes considera que as medidas agora anunciadas não vêm tornar esta ação popular obsoleta.

“A campanha do movimento está a aglutinar e mobilizar muita cidadania descontente. Está também a consciencializar as pessoas para os impactos do AL na cidade. O referendo vai mais longe do que essa medida, porque o que o referendo quer é ilegalizar todos os alojamentos locais em fogos com licença habitacional. Pode ter efeito retroativo.”

Luís Mendes

Além da proibição de registo de novas unidades de AL, foi agora anunciado um conjunto de medidas fiscais que procuram promover a transferência de AL para habitação. Exemplo disso é a isenção de IRS até 2030 para quem, até ao final de 2024, colocar as suas unidades AL no mercado habitacional. E o aumento da fiscalidade para quem tem AL.

Grupo de proprietários de AL quer fechar a 1 de agosto

Floresbela Pinto, vereadora da CML pelos Cidadãos por Lisboa. Foto: site CML

Floresbela Pinto, vereadora na Câmara Municipal de Lisboa e membro da associação política Cidadãos por Lisboa, não esconde que “o turismo foi importante” na alavancagem do desenvolvimento da cidade, mas reconhece-lhe, também, um “efeito pernicioso ao longo do tempo”. Por isso, vê “com bons olhos” as medidas agora apresentadas relativamente ao Alojamento Local.

O mesmo não acontece com o grupo de Facebook de proprietários de Alojamentos Locais, que reagiu às novas medidas com um protesto: “Portugal fecha a 1 de agosto”, prometendo encerrar portas a todos os hóspedes no primeiro dia da Jornada Mundial da Juventude, que se espera trazer milhares de pessoas à cidade.

A associação dos Alojamentos Locais (ALEP) acredita que o Governo “pretende acabar com o Alojamento Local (AL) e, não o querendo fazer agora, adiou o seu fim para 2030”, assim interpretou o representante Eduardo Miranda.

A medida agora apresentada prevê a proibição da emissão de novas licenças de AL em todo o país, excetuando com exceção para AL rural em faixa de concelhos do interior do país sem pressão urbanística. Na fiscalização também surgem novidades, com o alargamento das competências nesta matéria também às juntas de freguesia.

Gonçalo Antunes tem dúvidas sobre a abrangência da medida. Concorda com a restrição em casos como o de Lisboa, em que “o Alojamento Local já é excessivo”, mas considera que “é uma dicotomia muito simplória da diversidade do próprio país”. “uma medida destas a nível nacional acaba por ser muito geral, porque existem certamente municípios urbanos e no litoral onde o Alojamento Local ainda faz sentido”.

Carta municipal para a habitação à vista – que mudanças

As medidas para a habitação em Lisboa parecem não ter terminado neste plano governamental: para a semana, a Câmara Municipal de Lisboa prevê apresentar uma Carta para a Habitação na cidade.

A vereadora Floresbela Pinto, dos Cidadãos por Lisboa, considera que o programa político do Governo para a habitação surge em “contraciclo com políticas municipais”, numa altura em que a vereadora com o pelouro da habitação, Filipa Roseta, anunciou a desistência do projeto de habitação municipal previsto para o Alto do Restelo. Diz desejar que o novo programa do governo para a habitação contribua, em Lisboa, para a colocação no mercado dos fogos vazios, para que estes cumpram “a sua função social”.


Reveja algumas das medidas apresentadas esta quinta-feira pelo Governo:

  • Estado vai ceder direito de superfície em terrenos públicos para construção de habitação cooperativa e de habitação privada a preços acessíveis
    Em Lisboa, está já prevista a construção de 350 fogos na Quinta da Alfarrobeira, em São Domingos de Benfica.
  • A simplificação de processos de licenciamento
    Projetos de arquitetura deixam de estar sujeitos a licenciamento municipal e as câmaras emitirão licenças com base num termo de responsabilidade assinado por projetistas.
  • Estado vai arrendar casas a proprietários para as subarrendar a preços acessíveis
    Será garantida uma taxa de esforço de 35% aos inquilinos. A distribuição das casas vai acontecer por sorteio.
  • Em contratos já existentes, o Estado substitui o inquilino no pagamento das rendas, no caso de incumprimento do mesmo
  • Reforço do parque habitacional público
    Isenção de mais valias a quem vender ao Estado qualquer tipo de habitação. Habitações adquiridas serão colocadas no mercado, a valores acessíveis.
  • Tomada de posse administrativa
    Criação de um fundo de 150 milhões de euros, para realização de obras coercivas por parte de municípios. As habitações intervencionadas serão colocadas no mercado, a valores acessíveis.
  • Proibição de novas licenças de Alojamento Local (AL)
    Serão isentados de IRS até 2030 os proprietários de unidades de AL que as transfiram para habitação até ao final de 2024.
    Será aplicada uma taxa extraordinária a proprietários de unidades de AL, que financiará políticas de habitação do IHRU.
  • Benefícios fiscais para o arrendamento acessível
    Isenção de IMT para quem compra casas para colocar em arrendamento acessível.
    Incentivos fiscais para contratos de longa duração.
  • Fim dos vistos Gold
  • Apoio às famílias no arrendamento
    Agregados até ao 6º escalão de IRS, com taxa de esforço superior a 35% e com renda de casa dentro dos valores tabelados pelo IHRU para o programa Porta 65 (tabela em PDF) recebem apoio mensal até máximo de 200 euros por agregado – não acumulável com o apoio do programa Porta65. O modelo de candidatura ainda não foi criado.
  • Apoio às famílias no crédito à habitação
    Isenção do pagamento de mais valias na amortização do crédito à habitação própria e de descendentes.
    Obrigatoriedade de oferta de taxa fixa por todos os bancos.

Frederico Raposo

Nasceu em Lisboa, há 30 anos, mas sempre fez a sua vida à porta da cidade. Raramente lá entrava. Foi quando iniciou a faculdade que começou a viver Lisboa. É uma cidade ainda por concretizar. Mais ou menos como as outras. Sustentável, progressista, com espaço e oportunidade para todas as pessoas – são ideias que moldam o seu passo pelas ruas. A forma como se desloca – quase sempre de bicicleta –, o uso que dá aos espaços, o jornalismo que produz.

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2 Comentários

  1. Um bem haja! O governo está finalmente a atuar para acabar com a especulação.

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