Uma parceria com o Festival Iminente

Nos meses anteriores à edição de 2022 do Festival Iminente, criado por Vhils, a equipa por trás deste espetáculo de cultura urbana comprometeu-se a fazer dele mais do que uma festa de quatro dias em setembro, na Matinha, em Marvila. Propuseram-se a deixar uma marca nos bairros da cidade dos quais chega tanta da arte que vemos representada nos vários palcos do Festival.

Foi como dar de volta.

Assim, criaram-se 16 workshops locais, para levar outras artes aos jovens e moradores de cinco bairros de Lisboa – Alta de Lisboa (PER 7 e PER 11), Bairro do Rego, Vale de Alcântara e Vale de Chelas. Houve música, dança, cinema, artes visuais, performance e sensibilização ambiental, nesta iniciativa à qual chamaram Projeto Bairros. Alguns dos resultados destes workshops foram mesmo apresentados fisicamente no festival.

A Mensagem foi media-partner do Iminente, onde fez jornalismo ao vivo. Nos dias anteriores, publicou cinco reportagens sobre estes workshops, uma por bairro. Esta é a compilação destas histórias.

A história de uma garagem fechada, na Alta de Lisboa, agora o lugar onde nasce música para o Festival Iminente

Pedro Coquenão BATIDA PER 7 ºProjeto Bairros Workshop festival Iminente Música Coquen
Pedro Coquenão, também conhecido por Batida, atuou no Festival Iminente e participou nos workshops. Foto: Inês Leote

Para fazer música é preciso uns bons pares de ténis, vestir bem, ter uma imagem que cative. “Há muitos discursos, tanto no ensino como na televisão” que ainda fomentam este mito que Pedro Coquenão, conhecido pelo mundo artístico como Batida, procurava desconstruir no dia em que nos encontrámos, num workshop do Iminente. Ali, no lusco-fusco de uma garagem plantada e durante vários anos fechada no bairro PER 7, na Alta de Lisboa, em frente a três jovens.

Três jovens moradores de um bairro social onde os recursos financeiros para comprar os melhores ténis são escassos, mas onde a paixão pela música sobra. Batida estava aqui para lhes mostrar que, afinal, um Lá pode apenas nascer de um pé no chão e um Ré de areia a chocalhar dentro de um ovo.

Iara tem mais jeito com os pés.

Aos 18 anos, a moradora do PER 7 apresenta-se logo com uma lição: quem cá mora não reconhece este nome, o bairro chama-se mesmo é “BQG” – “bi-qui-gi”, lê-se. PER diz respeito ao Programa Especial de Realojamento – que faz agora 30 anos e acabou com muitos dos bairros de barracas que havia em Lisboa.

“PER 7 é a divisão oficial por bairros e nós nunca nos identificamos com aquilo, então, como já tínhamos um nome dos bairros passados [de onde vieram realojados, do Bairro da Quinta Grande], adotámos este nome”, conta, enquanto balança dois “ovos” na mão – nada mais que objetos de plástico com o que se parece areia dentro.

Embora a arte dela seja outra – Iara joga futebol e gostava “era que a música se fizesse com os pés” – está aqui “para aprender”.

Aqui, na garagem do bairro ao qual a cidade nem reconhece a designação e onde os nomes mais sonantes da cultura – como Batida – não costumam chegar.

Workshop de música do Festival Iminente. Vídeo: Inês Leote

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Estes artistas fizeram as crianças do PER 11 ver o presente com máquinas do passado

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Workshop de fotografia do Festival Iminente. Foto: Inês Leote

“Um hipopótamo, dois hipopótamos, três hipopótamos”. A técnica é contar cinco, até que os olhos já não doam quando largam o sol para vir para a escuridão que se faz dentro desta sala, forrada a enormes panos negros. O momento da entrada pede paciência – com pressa, o mais certo é que a íris do olhos ainda esteja a meio caminho de fazer o seu trabalho e que tropecem uns nos outros, cegos.

Mas a pressa é muita.

“Revelar uma fotografia é um processo moroso. E eles, que estão a três mil à hora, não compreendem porque demora tanto até vermos uma fotografia.” Foi no dia anterior que as tiraram, retratos uns dos outros em câmaras analógicas, que mais lhes parecem máquinas paleolíticas, explica o professor Ivo Relveiro.

O que se vai passar aqui? – sussurram à procura de uma resposta. Um truque de magia? Cinema?

O que quer que seja, já se sabe, exige paciência. Assim era o processo de criar uma fotografia no passado. E o passado estava a ser revelado aqui, no PER 11, na freguesia de Santa Clara, para estas crianças e estes jovens moradores do bairro, para quem o passado já nasceu digital.

Este é um dos que albergaram dezenas de famílias vindas de bairros de barracas espalhados pela cidade. PER é o que ficou conhecido como o Programa Especial de Realojamento: prédios de vários andares, em betão, partilhados entre pessoas que até então viviam nas mesmas precárias condições.

Cada bairro novo ganhou o seu número. Este é o 11.

Um bairro antes dividido pela etnia e pela droga. “Como o PER 11 é uma mistura de vários bairros, o princípio foi complicado, foi quase um choque de civilizações. Temos uma comunidade cigana aqui de Santa Clara que até conhecíamos bem, mas veio uma da Ajuda que chegou com uma postura de ‘isto é nosso’. O pessoal do meu bairro até era muito calmo e deixou andar. Até certo ponto”, conta Mauro Wah, morador e dinamizador comunitário.

O bairro dividiu-se.

As crianças de etnia cigana estavam proibidas de brincar com as de pele mais escura e vice-versa. Até que um campo de futebol ajudou a mudar a sina destes moradores, ao juntá-los na mesma equipa. À volta de uma bola, uniram-se as comunidades que ali residiam de costas voltadas. Assim nasceu a atual associação de moradores.

Mas este ainda é um bairro que sente ter a cidade de costas voltadas para ele, isolado da restante geografia.

Workshop de fotografia analógica do Festival Imimente. Vídeo: Inês Leote

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Um toldo transformou um pátio ao sol num lugar de sombra, brincadeira e comunidade

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Workshop com materiais reciclados, uma iniciativa do Festival Iminente. Foto: Inês Leote

Não sabemos se o arquiteto que desenhou o Bairro do Rego, nas Avenidas Novas, pensou que se plantariam ali árvores destas – há várias décadas associadas à resiliência – como prenúncio do que deveria ser a vida destes novos moradores, muitos deles vindos de velhas barracas na cidade. As Ginkgo Biloba são diferentes na folhagem, recortada e ondulada, com o feitio de um leque, e há muito que se conta como esta espécie de origem chinesa sobreviveu quase miraculosamente à radiação do desastre em Hiroshima, em 1945.

É curioso, por isso, que este grupo de artistas que agor aqui trabalha no bairro tenha como símbolo a folha de uma Ginkgo Biloba.

É como se o Rego se tivesse preparado para os receber – este grupo de atores, engenheiros, arquitetos, carpinteiros, cenógrafos, vindos de várias artes, membros de um movimento que quer revolucionar a cidade, um espaço de cada vez: a Mergulho Urbano.

Na Mergulho Urbano, a madeirense Ivone, o italiano Michele e os amigos fazem de lugares abandonados e de betão, espaços verdes e comunitários. Sempre com a ajuda de materiais reciclados, em prol da sustentabilidade.

E não é que o pátio comprido do bairro do Rego, por detrás da Associação Passa Sabi, estivesse ao abandono. Estava sobretudo desaproveitado. O sol, quando bate, afugenta as brincadeiras dos mais novos e o convívio dos mais velhos. E o que poderia ser um espaço ativo foi-se transformando em mais um vazio na cidade.

Assim nasceu uma sombra, feita do que um dia alguém deixou de querer – tendas de outros festivais de verão; guarda-sóis que as nortadas derrubaram; a lona do palco principal de uma antiga edição do Festival Iminente; e até os guarda-chuvas que não sobreviveram aos dias de inverno rigorosos. Os arames partem, mas o tecido fica.

Vídeo: Inês Leote

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Tampas transformadas em skates. A história do plástico que virou desporto para as crianças da Quinta do Loureiro

Workshop para fazer skates com material reciclado, uma iniciativa do Festival Iminente. Foto: Inês Leote

Num bairro como este, ainda em parte uma extensão do antigo e desmantelado Casal Ventoso, poucas são as oportunidades de levar ao mundo o nome e os retratos de quem ali vive por boas razões. Quase sempre, o tema é o outro: a droga, a sujidade, a exclusão e a pobreza. O rasto do bairro antigo perseguiu os moradores até aos prédios onde foram realojados – alguns aqui, na Quinta do Loureiro, no Vale de Alcântara.

O que não significa que não haja boas notícias ou exemplos para dar. A Mensagem já falou de alguns – o projeto que devolveu o espírito de vizinhança e a capacidade de sonhar através da fotografia; e o grupo de jovens que viraram campeões da Europa, com direito a um mural a homenageá-los no bairro.

Mas ainda são raras as histórias felizes para contar e as que ousam cá entrar. Em parte, porque este vale verde e castanho por detrás dos prédios e a grande avenida que se pousa na frente parecem ser muros para o resto da cidade, que vai resistindo a chegar aqui.

A avaliar pelo lixo que há no chão deste bairro, sabemos que a informação sobre o que pode fazer-se com uma simples tampa de plástico tem uma única resposta por aqui: desperdício.

Era assim, até uma associação ter viajado de Cascais até ao bairro, no âmbito dos workshops do Festival Iminente, para lhes ensinar a fazer do plástico desporto. Uma história que se atreveu a entrar na Quinta do Loureiro, para que daqui saia outra ainda mais feliz.

Vídeo: Inês Leote

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No Vale de Chelas, quatro canteiros abandonados viraram morada para flores e alfaces que vão dar almoços de vizinhos

Workshop de hortas urbanas, uma iniciativa do Festival Iminente. Foto: Inês Leote

“Achas que dá para salvar esta, André?”. Os moradores, de corpo vertido sobre um talhão de terra, perguntam ao especialista: há um vaso para plantar num dos quatro canteiros antes abandonados da Quinta do Lavrado, no Vale de Chelas, mas ela parece morta por fora. André Maciel não é de desistir da natureza e faz o truque que há muito aprendeu: com a ajuda da unha do polegar, raspa o pequeno tronco nascido de uma raiz, à procura de vida. Está castanha – se estivesse verde, não se declararia óbito aqui, haveria esperança.

Esta planta já não dará comida ao bairro, mas quando os especialistas em horticultura André Maciel e Tiago Sá Gomes abriram o tronco à Quinta do Lavrado, onde era a velha Curraleira, estava verde e pronta para ser mais um pulmão na cidade.

Chegar aqui foi inverter vontades – não as do bairro, as de Tiago, um dos fundadores da Upfarming, a equipa que projetou as primeiras hortas verticais rotativas, em Alvalade, com uma tecnologia importada de Singapura. Já falámos deles aqui.

“Tínhamos esta vontade de trabalhar com horticultura vertical, até porque era por isso mesmo que éramos conhecidos.” Eles, um arquiteto, uma marketeer e um social entrepreneur, para quem a agricultura estava destinada a crescer para cima, verticalmente, na cidade. Como os prédios que nela existem.

Mas, nos últimos meses, perceberam que a horticultura vertical era apenas uma das ferramentas com que queriam trabalhar. Cimentaram a vontade quando chegaram aqui ao bairro e viram potencial numa série de canteiros com espaço disponível “e que poderiam ser o primeiro passo deste namoro a longo prazo”. “Trabalhar outras dimensões com base no que já cá está, é o que queremos fazer agora”, confessa Tiago.

É uma história de amigos improváveis, a de uma equipa que pensa a agricultura nas cidades e de um bairro que nunca teve muito tempo para ela. Mas também a história de outros prováveis, que não o eram ainda: foi este workshop que juntou Tiago a André Maciel, com quem já partilhava a profissão e princípios, só aqui cruzados.

André está cá como representante da página Hortas LX. Tudo nasceu em Setúbal, a partir do restauro de uma casa muito antiga, onde se criou uma horta, num centro urbano, e se ensinou que se pode ser sustentável no meio de uma cidade. Entretanto mudado para Lisboa, criou esta página, na rede social Instagram, para dar ferramentas às pessoas, às escolas e às empresas que queiram cultivar. E para que saibam que não é preciso ter um espaço com terra para que isso aconteça.

Criar hortas urbanas sob os princípios da permacultura é hoje o trabalho dele. Quer isto dizer, que são hortas de cultura permanente, com uma arquitetura sustentável adaptada a ambientes humanos. Como é este bairro, onde mora gente.

Vídeo: Inês Leote

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Catarina Reis

Nascida no Porto, Valongo, em 1995, foi adotada por Lisboa para estagiar no jornal Público. Um ano depois, entrou na redação do Diário de Notícias, onde escreveu sobretudo na área da Educação, na qual encheu o papel e o site de notícias todos os dias. No DN, investigou sobre o antigo Casal Ventoso e valeu-lhe o Prémio Direitos Humanos & Integração da UNESCO, em 2020. Ajudou a fundar a Mensagem de Lisboa, onde é repórter e editora.

catarina.reis@amensagem.pt

Inês Leote

Nasceu em Lisboa, mas regressou ao Algarve aos seis dias de idade e só se deu à cidade que a apaixona 18 anos depois para estudar. Agora tem 23, gosta de fotografar pessoas e emoções e as ruas são o seu conforto, principalmente as da Lisboa que sempre quis sua. Não vê a fotografia sem a palavra e não se vê sem as duas. É fotojornalista e responsável pelas redes sociais na Mensagem.

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