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A história não é conto de fadas – por aqui, não se cresceu a ouvi-los –, mas assemelha-se bem a uma velha narrativa. Como Cinderela, os jovens residentes nos bairros sociais da Alta de Lisboa acreditam que a solidariedade e o trabalho dão frutos. Crescem conscientes das suas limitações financeiras, mas nem por isso deixam de sonhar.

Estraca, 24 anos, hoje um rapper conhecido internacionalmente, começou por trocar ténis por videoclips e correr entre a banca de bifanas no Cais do Sodré, onde trabalhava, e pequenos concertos que dava pela cidade. Sem saber, abria caminho a jovens sonhadores. Como Henrique Santos, 17 anos, que está prestes a assinar o seu primeiro contrato musical, com o single de estreia… “Cinderela”.

Tudo começou numa comunidade onde a música sempre foi residente, mas onde foi preciso um conjunto de adultos recém-chegados criarem um palco (e agora um estúdio) para a exportar para o resto da cidade e país.

O projeto Centro Periférico quer ser o sapato perfeito para estes pés que tanto desejam voar, com a criação de um estúdio de gravação comunitário onde jovens amadores e com vontade de produzir música se juntam com produtores e outros músicos experientes.

Da Alameda da música para um bairro
que não conhece o silêncio

O silêncio não mora nestas bandas. Entre os altos prédios, cada um com a sua cor e feitio, todos avistam rostos familiares, os mesmos que sempre por ali param há anos. Por isso, os cumprimentos espalham-se nas ruas e no tempo, como conversa de casa ao relento. À falta de varanda ou de um café ao virar da esquina, trazem-se as mesas e cadeiras de casa para junto da janela de um rés-do-chão e faz-se ali o convívio. No ouvido, resiste o chuto na bola que os mais novos dão a uns metros, no campo de futebol.

E, a coser estes sons que acontecem quase em sequência, estão os jovens que passam de telemóvel e coluna na mão e que trazem o rap e o hip-hop às ruas que entrelaçam os vários bairros da Alta de Lisboa. Viemos para falar de música e não há dúvida de que ela paira no ar. Até nas placas toponímicas: partimos de uma das pontas da Alameda da Música, como assim foi designada, que une toda a urbanização da zona.

Mas, por aqui, unir sempre foi tarefa mais fácil a nível toponímico do que na prática.

A paisagem destes bairros em pouco se compara a muitos outros construídos pela cidade. Não é só porque há prédios de cara lavada e uma arquitetura mais moderna do que a habitual. É porque ali se fundem, de facto, agregados de diferentes estratos socioeconómicos: pessoas com mais possibilidades financeiras ocupam prédios que se parecem com os prédios integrados no PER – Programa Especial de Realojamento. Apenas parecem, porque o desgaste – ou a falta de manutenção – entre uns e outros torna-se visível a olho nu.

Isto acontece porque neste espaço nasceram alguns dos maiores bairros de barracas de Lisboa (como a Musgueira), mas também aqui se idealizou, em tempos, algo semelhante ao que, entretanto, se tornou a zona da Expo’98.

O Plano de Urbanização do Alto do Lumiar (PUAL), aprovado em 1998 (cinco anos após o início do PER nesta zona) e ainda em desenvolvimento, previa uma fusão entre os realojados das barracas e novos residentes de fogos comercializados pela SGAL (Sociedade Gestora da Alta de Lisboa).

Previa-se que a Alta viesse a alojar cerca de 60 mil pessoas, quase o equivalente a toda a população residente na cidade de Faro, uma cidade dentro de outra cidade, Lisboa. O que nunca chegou a acontecer.

Foi o encontro entre estas diferentes camadas da sociedade que abriu fendas nesta comunidade ainda tão desigual.

Um blog despertou para as diferenças e a música uniu

Quando João Tito aqui chegou, há 16 anos, isso estava à vista desarmada. Vindo da zona do Rato, “não conhecia minimamente esta realidade”. A antiga casa tornara-se demasiado pequena para os planos de vida, que incluía filhos. “Naquela zona”, tal como hoje, “era impossível comprar uma casa com três quartos” a um preço acessível. O que aqui encontrou foi “um estaleiro de obras”, já com as barracas demolidas e o PER em desenvolvimento, entre entulho e terra.

Hoje, Tito – como é conhecido por estas bandas – e o colega Eupremio Scarpa são tão importantes para esta história como a música se tornou para os jovens deste bairro.

João Tito é vice-presidente da associação de moradores e coordenador do projeto Centro Periférico. Foto: Francisco Romão Pereira

A mudança, Tito viu-a a acontecer nas suas mãos. E tudo começou num blog, quando estas plataformas funcionavam como a rede social que hoje já não são. O “Viver na Alta de Lisboa” era o local onde ia descobrindo tudo o que se passava na sua nova zona de residência, longe de imaginar que dali nasceria uma associação de moradores que ajudou a fundar e da qual é hoje vice-presidente.

“Sempre estive muito focado em mim, no meu trabalho [como designer], na minha família, e nunca pensei um bocadinho que fosse nestas dinâmicas. Mas, a determinada altura, começas a pensar que falta qualquer coisa e que tens de ter uma participação cívica.” Um blog era bom, mas uma associação poderia fazer mais por quem ali viva. Seis meses depois, lá nasceu. A ARAL (Associação de Residentes da Alta de Lisboa) faz agora 15 anos.

Primeira missão: reduzir, até extinguir, as diferenças sociais encontradas na zona. “Mantêm-se até hoje. Ainda temos cafés para pessoas da SGAL [novos residentes] e cafés para pessoas de PER.” Mas a batalha vai-se fazendo: “se conseguirmos mudar essa atitude para uma ou duas pessoas, já é uma vitória”. Parte desse trabalho começa na criação de pontos em comum e na celebração do espírito de comunidade. Em que a música teve um papel gerador.

Quando se fala de 2013, a memória está viva e fresca na mente do rapper Estraca. Ainda que a carreira já o tenha levado aos grandes palcos e a ser figura de cartaz para grandes plateias, nacionais e internacionais, o concerto de 2013 ALL ARTES continua a ser o que faz os pelos dos braços eriçar e a voz tremelicar, quando recordado.

Aconteceu no Lumiar, era ele um adolescente a rimar para oito mil pessoas, como terceiro membro do grupo CLK, formado ali no bairro.

Antes, os seus versos só tinham saído a público no centro social da Musgueira, o bairro de barracas e alvenaria onde cresceu, antes de ser realojado no bairro da Cruz Vermelha. “Tu eras muito mais puto do que os teus colegas [do CLK]”, interrompe Tito. “Era, era. Eu tinha 11 anos e eles mais três ou quatro”, o que nestas idades pode fazer toda a diferença, diz Estraca.

Aos 16, o palco do Lumiar foi dele.

O agora e o antes do rapper Estraca. À esquerda [foto do Facebook do artista], num dos seus concertos, já como músico reconhecido. À direita [foto da My Sound Mag], no seu primeiro grande concerto, em 2013, no Lumiar.

Passavam dois anos desde o arranque do projeto ALL ARTES, criado pela associação de moradores no âmbito dos projetos BIP/ZIP, através do qual se criaram dinâmicas de formação de jovens para as artes – teatro e dança, além de música. “Já passaram dez anos?”, atiça em espanto Henrique Santos, 17 anos, morador num destes bairros da Alta, na Quinta dos Cavalos.

“Nessa altura, o Henrique tinha este tamanho”, diz João Tito, levando a mão à sua cintura e fazendo-nos adivinhar o pequeno rapaz que este grande adolescente um dia foi. Ainda assim, com aquele tamanho, Henrique conseguiu ter visão para o impacto que aquele ano de 2013 teve na Alta de Lisboa: o ALL ARTES culminou num grande festival, montado numa “gigantesca” tenda de circo no Parque Oeste, onde “as pessoas do bairro puderam mostrar aquilo que sabiam fazer”. E “misturados com aqueles que, de alguma forma, eram as referências deles”, lembra Tito.

Henrique Santos subiu a palco, pela primeira vez, com a banda PCG (Putos com Garra). Foto: My Sound Ma

Tudo isto “num território onde não acontece nada, ou muito pouca coisa”. De repente, a cultura urbana e as artes tornavam-se um selo destes bairros, cada vez menos invisíveis até para os seus vizinhos.

Henrique (hoje com nome artístico Deejay Rifox) subiu a palco nesse dia, com sete anos. Juntos, ele e o colega Moreno criaram a banda PCG (Putos com Garra), depois de inseridos numa formação de criação de rimas. O suficiente para darem asas às palavras e, dentro de algum tempo, levarem as suas letras para debaixo dos holofotes da cidade.

Henrique: o fim dos impossíveis

“Hey!”

Num passeio pelos bairros que fazem a Alta de Lisboa, raros serão os que não estendem a mão ou o braço a Estraca. Há nele uma sensação de plenitude, a ideia de que os sonhos levam a um fim e que o bairro não tem de ser esse fim, pode muito bem ser o início.

De soslaio, Henrique aprecia a cena. Com 17 anos, vê tudo isto no amigo e anseia pelo dia em que o braço lhe seja estendido a ele também e possa ser visto como um exemplo para a sua comunidade. Esse dia já esteve mais longe.

Ainda adolescente, Henrique prepara-se para assinar contrato com uma editora, como produtor musical de um disco. “Em julho, esperem coisas”, promete.

No início e no fim das suas frases, está sempre a palavra “trabalho”. Diz estar consciente de que o caminho é mais longo para quem começa nestas difíceis geografias, mas que a sorte é dos audazes.

Henrique, de 17 anos, apenas encontrou a união no seu bairro. Fora dele, não sente pertença. Foto: Francisco Romão Pereira

Desde sempre, a morada foi uma guerra que teve de aprender a combater. “Eu tive uma mini-batalha comigo mesmo, porque eu era daqui, mas estudava em Telheiras e em Telheiras as cenas são bué diferentes. A minha mãe sempre quis que eu fosse estudar para lá, porque dizia que aqui era muito agitado e podia seguir um mau caminho”, diz Henrique.

E é fácil cair nesse mau caminho? “Não acho. Acho que depende muito da mentalidade das pessoas. Cada um cai onde quer. Eu vi mais em Telheiras aquilo que era suposto ver aqui do que vi aqui. Tive todas as possibilidades do mundo para cair, mas não caí.”

No outro lado da cidade, onde estudou desde sempre até agora, à chegada do 10.º ano de escolaridade, Henrique viu o lugar “da classe mais alta, com uma educação diferente”, um lugar a que não sentia pertencer. Diz que, por lá, o fizeram sentir-se menor, quer por vir de onde veio, quer, às vezes, pela cor.

“Acho que nós, daqui, daquilo que vivi, temos muito mais educação. Ensinam-nos a respeitar o menor e eles lá não sabem respeitar o menor, então, gozam com ele, porque se acham maiores.”

Henrique Santos, 17 anos, Quinta dos Cavalos

“Na minha escola, éramos só dez negros – e nem era dez na mesma turma, era um no 5.º ano, outro no 2.º. Por exemplo, do meu 7.º ao 9.º anos, éramos dois e nem éramos da mesma turma. E eles lá gostavam muito de gozar. A minha batalha era sempre com os mais velhos.” Daí trouxe uma lição: “Acho que nós, daqui, daquilo que vivi, temos muito mais educação. Ensinam-nos a respeitar o menor e eles lá não sabem respeitar o menor, então, gozam com ele, porque se acham maiores.”

Por isso, foi-lhe fácil acreditar que o sucesso estava vedado a um miúdo do bairro fascinado pelas mesas de mistura [começou como DJ] e pelo estilo Afro House. Até ao dia em que Estraca, o outro puto do bairro, começou a tocar na rádio das esplanadas e a soar no recreio da escola. “As pessoas que o ouviam nem sabiam que o Estraca era do Lumiar”, conta, como quem assobia o orgulho.

Naquela altura, soube exatamente o que queria: “mostrar às pessoas que não é por sermos jovens do bairro que não podemos ter o mesmo sucesso do que alguém que já cresce com mais condições do que nós”.

Do lugar de DJ para a produção de música foi um pequeno passo. Henrique era curioso em relação a tudo o que o rodeava, a ele e à música. “Nas festas, lá víamos o Henrique junto aos DJ’s. Na minha festa de casamento, ficou amuado porque o DJ não lhe ligou nenhuma”, lembra Eupremio, a quem Henrique chama carinhosamente de “avô”, embora isso roube um expressão zangada ao próprio e risadas a outros.

Um dia, elevou a curiosidade para outro patamar: “Estou a mixar sons de outras pessoas, mas como é que posso fazer um som meu para tocar? Mandei mensagem, na altura, pelas redes sociais, a DJ’s que conhecia. Uns não responderam, outros não queriam e outros não tinham tempo para ajudar. Então, tive de fazer por mim. Mas eu queria começar a produzir Afro House, que era o meu estilo, e no YouTube ainda não havia nenhum vídeo a explicar como fazer. Tive de ir para outra variante – o rap e o trap. Comecei a aprender a mecânica do programa, para começar a partir daí a fazer os meus beats de som sozinho”.

O talento não o escondia e via-o quem andasse atento. Em 2015, um amigo convida-o para ajudar a gerir uma produtora, hoje a Ghetto Records. A determinada altura, decidiu focar-se no seu próprio caminho. “O meu pai, infelizmente, entretanto, faleceu, e isso só me deu mais força.” Como se algo ainda estivesse para ser provado. E estava.

Assim que Henrique larga a produtora, conhece a Vandex, da mesma idade. Foi na internet que a descobriu, a rimar “como nunca” viu alguém fazer. “Tivemos logo muita cumplicidade, parece que já não conhecíamos há muito tempo.”

Mas Vandex “não estava numa boa fase”: “ela sabia que tinha talento, mas estava numa fase de insegurança, não sabia se tinha o talento necessário para dar [certo]”. Henrique tomou aquilo como a sua missão. Chamou-a para um rés-do-chão de um dos prédios do seu bairro, onde tinha montado um pequeno estúdio, no espaço da Associação Espaço Mundo, à qual ainda hoje Henrique se dedica. Ali, ele, Vandex e o amigo Moreno gravaram diversas demos, entre as quais a “Cinderela”, prestes a sair a público, graças à parceria entre o Centro Periférico e a Associação Espaço Mundo.

Foi no estúdio de uma associação que Henrique e os amigos construíram a música que lhes veio a valer um contrato profissional numa editora. Foto: Francisco Romão Pereira

“Recebi uma chamada do Tito a dizer que gostou do projeto [estúdio] que tínhamos feito e que o Centro estava a fazer um estúdio, mas – como ainda não estava aberto – que nos levava a um estúdio comunitário para gravarmos. Adoraram o som e o Tom Enzy, o produtor com o qual trabalhamos, mostrou ao dono da Vidisco [editora] – o Carlos Nazir -, que adorou. Decidiu fazer uma proposta.” A vida de Henrique está prestes a mudar, mas nem por isso a humildade se esvazia do tom com que fala. Não toma nada por garantido e diz que o caminho ainda é longo.

A acendalha que fez deflagrar esta chama foi aquele festival em 2013, não duvida João Tito. Foi o que lançou Estraca, o que incendiou a paixão de Henrique e o que começou a mudar a forma como os jovens Alta de Lisboa passaram a olhar para os ditos impossíveis.

“Se forem falar com pessoas um bocadinho mais velhas que o Henrique, toda a gente sabe. Aquilo marcou mesmo. As pessoas começaram a perceber que era possível fazer coisas e mostrar o que fazes. Porque, antigamente, mostravas na escola, aos teus amigos, e ficava por aí.  Foram coisas que marcaram muito a mudança de algumas pessoas e disseram a toda a gente que é possível saírem do bairro e terem uma visibilidade nacional.”

Lado a lado, Estraca e Henrique são já exemplos de sucesso entre a comunidade. Posam no espaço a partir de onde vai nascer mais arte no bairro. Foto: Francisco Romão Pereira

Estraca: rap underground para os palcos

Estraca sabe-o bem. Não esperava chegar onde chegou, cresceu a acreditar nestes impossíveis e hoje tem a possibilidade de mostrar aos outros que, afinal, não os há.

“A probabilidade de acontecer e de chegar àquele patamar não era muito grande. Para já, vinha de um bairro social…” E isso é impeditivo? Não hesita em dizer que é, de facto, uma barreira, não pela morada, mas por aquilo que leva a essa morada, a situação socioeconómica. O que, no seu caso, ele transformou em sucesso: dos limões, Estraca fez mesmo uma limonada. E boa.

A música começou nas ruas da antiga Musgueira e do Bairro da Cruz Vermelha, onde ainda vive, a ouvir rap com os amigos. Um rap “mais underground e não tão comercial, como Valete e Sam The Kid, que na altura já tinham álbuns”. Encontrava naqueles versos o que há muito já queria dizer ao mundo. Depois, das rimas dos outros saltou para as suas, escritas quase “em forma de desabafo”, quando tinha apenas 12 anos. “Falava sobre os problemas em casa, sobre os problemas do vizinho do lado.”

Aprendeu a fazer os seus poemas, qual Fernando Pessoa a fazer rap (não por acaso o trazia desenhado na camisola, no dia da entrevista), na Oficina Portátil de Artes, um projeto anterior ao Centro Periférico, em que João Tito esteve também envolvido. E, ali, conheceu também mundos diferentes: como o jazz. “O que é isto?”, pensou, quando ouviu. A estranheza não o deteve e criou até o projeto JazzOPA, “uma banda de jazz com hip-hop”.

O “desenrascanço” aprende-se no bairro, por saberem, desde cedo, que terão de “caminhar dez vezes mais” que todos os outros. “É como se estivesses todos os dias a trabalhar no ginásio e ficas grande e com mais força.”

Em casa, fazia do quarto palco, um microfone do [jogo de karaoke] Singstar ou um outro “comprado no chinês” e do telemóvel a objetiva. Chegou a trocar ténis por videoclips. “Havia um rapaz, que era o Ricardo Constantino, que gravava uns clips e agora também rebentou, está a trabalhar com grandes artistas. Na altura, ele também estava a começar e eu, que não tinha dinheiro para fazer os vídeos, negociava: ‘Calças que número?’/ ‘Ah, 43’ / ‘Ah, eu também. Olha, tenho aqui estes ténis. Dou-tos e gravas-me um vídeo’ / ‘Ya, mano, está feito’.”

O “desenrascanço” aprende-se cedo quando se sabe que é a única forma de “caminhar dez vezes mais” que todos os outros. “É como se estivesses todos os dias a trabalhar no ginásio e ficas grande e com mais força.”

E “foi-se abrindo a janela e, depois, as portas”. Estraca “já não cantava só dentro do quarto”, cantava “para o mundo inteiro, a participar em projetos no estrangeiro – Israel, Sérvia, Itália”. Viajou com o grupo Farra Fanfarra, ao abrigo do projeto Musicians for Humans Rights, tinha “uns 17 ou 18 anos”.

Todos o reconhecem pelo espírito de sacrifício. Estraca ainda mora no bairro da sua infância. Foto: Francisco Romão Pereira

Mas houve travagens bruscas neste percurso em nada linear e fácil, como já Estraca esperava. Findo o 12.º ano, o sonho da música persistia, mas ainda não enchia a carteira. Por isso, teve de se fazer à estrada e procurar trabalho. Primeiro, na Confeitaria Nacional, vindo ele de um curso de teatro e sem perceber “nada de pastelaria”, brinca.

“Às vezes, entrava às 23h e saía à uma da tarde. Aquilo não era mesmo para mim. Estávamos no inverno, estava a chover e eu até vinha para casa a pé e nem levava chapéu [de chuva], vinha na rua a apanhar chuva na cabeça… perdido. Perdido, porque não sentia que era aquilo que eu queria para mim.”

Mais tarde, serviu bifanas no Cais do Sodré, nos Santos Populares. Mas esta fase encarou-a de forma diferente: “Tinha um pressentimento de que algo bom estava para breve, então, estava ali com outra motivação”.

“Cada vez menos” vir de um bairro social é meio caminho de atraso. “Já vemos grandes jogadores de futebol [como Renato Sanches], grandes artistas e músicos que vieram de bairros sociais.”

Estraca, rapper

Quem lhe deu trabalho admirava a sua música, além da força de vontade, por isso, facilitou-lhe o caminho para o sonho. “De vez em quando, lá pedia: ‘Tenho um concerto ali às 18h00 na Casa Independente. Achas que dá para ir lá? Às 20h00, estou aqui outra vez para trabalhar.’ / ‘Vai lá, mas despacha-te’. Eu ia a correr, ia dar o concerto e voltava para o trabalho. Nessa altura, juntei um bom dinheiro, investi nos videoclips e tudo rebentou.”

Nunca foi de se queixar da complexidade do processo até chegar onde chegou e agradece que assim tenha sido, porque “é sempre bom lutar”. Mas olha para as novas gerações com mais otimismo: “cada vez menos” vir de um bairro social é meio caminho de atraso. “Já vemos grandes jogadores de futebol [como Renato Sanches], grandes artistas e músicos que vieram de bairros sociais.”

E reconhece que as oportunidades, por estas bandas, sobretudo com o nascimento do Centro Periférico, são outras: “Quem me dera, na altura, ter tido isto. Tive, mas não o acompanhamento que eles estão a ter agora.”

O projeto, o melhor cotado da última candidatura ao programa BIP/ZIP, está a fazer nascer um estúdio comunitário na Alta de Lisboa, onde jovens amadores se juntam à experiência.

O estúdio comunitário da Alta, a oportunidade de retribuir

No bairro da Cruz Vermelha, Tito abre a grade de um rés-do-chão, pede perdão pelo estado do espaço para o qual nos dá as boas-vindas e onde nos faz entrar. Lá dentro, odor a velho, a abandono, cerca de dez divisões envoltas em paredes com resquícios de humidade, tetos por concertar. No chão, o que ficou para trás: documentos, livros e até telas, CD’s e computadores. Numa das portas, memórias de quem por aqui passou em fotografias de crianças, coladas.

Pode parecer nada, mas aqui nascerá tudo o que Tito idealiza para o Centro Periférico, que coordena com o colega Eupremio Scarpa. Um estúdio de gravação para unir amadores a experientes, desenhado por um grupo de artistas também fora do território, num gesto que Tito intitula de “cúmplice e solidário”. Um outro de serigrafia, para criar t-shirts e cartazes, além de um estúdio de dança. Tudo irá ao seu lugar com a ajuda da Gebalis, que gere o edifício, e do financiamento da Câmara Municipal de Lisboa, através do BIP/ZIP.

“Olhe, desculpe, o que vão fazer ali?”

Não se sabe ao certo há quanto tempo estará este espaço desocupado, por isso, a curiosidade dos residentes no bairro aguça-se à mínima movimentação. “E vai ter coisas para si também, não vai ser só para os mais novos.”, responde Tito, anunciando os planos futuros.

“Farta de estar sozinha estou eu”, brinca uma das mulheres, já idosa, que o escuta. Entretanto, outro olhar curioso, de um homem, levanta a preocupação: “Se não forem coisas para prejudicar os moradores…” O historial deste espaço parece não ter jogado a favor de todos, como conta. “A malta até fez um abaixo-assinado”. E, por fim, Tito conquista-os: “E paga-se para participar?”. Negativo. “A gente vai-se vendo, então.”

“A ideia era pegar nas subculturas da cultura urbana – que tem a ver com o skate, com o street basket, com a música, com a dança – e, de alguma maneira, tornar tudo um elemento de apropriação do bairro.”

João Tito, vice-presidente da ARAL e coordenador do Centro Periférico

Anos de dedicação à música nos bairros culminaram no projeto Centro Periférico. Antes dele, veio a Cultura Urbana Alta de Lisboa, também vencedor de edições BIP/ZIP. “A ideia foi: a Câmara e a Junta de Freguesia fazem muitos festivais aqui que duram uma semana ou duas e depois desaparece; há uma dinâmica, o pessoal fica entusiasmado, mas depois acaba e vai-se tudo embora”.

A Alta volta a ser invisível perante o resto da cidade.

“E nós queríamos perpetuar as coisas, criar dinâmicas que tivessem continuidade aqui no bairro, com outras cenas pelo meio [como aulas de skate]. Na altura, já surgiam algumas coisas com música. O Estraca já fez umas oficinas de rimas e brincadeiras com som. A ideia era pegar nas subculturas da cultura urbana – que tem a ver com o skate, com o street basket, com a música, com a dança – e, de alguma maneira, tornar tudo um elemento de apropriação do bairro e de criação de dinâmicas”, explica Tito.

O Centro Periférico foi o passo seguinte – não a continuação. E sobre ele mantém uma fé quase inabalável: “Percebemos que faria todo o sentido ter aqui um espaço onde pudessem acontecer coisas. Não havia nenhum estúdio de som comunitário aqui perto e fazia todo o sentido, com a quantidade enorme de pessoas a fazer música aqui no território. Cada vez mais [há pessoas a fazer música]. E vai crescer com o estúdio, garantidamente.”

À porta do futuro estúdio, Estraca conversa com um morador, que segura uma Coca-Cola na mão direita e se mostra intrigado – até desconfiado – com o sucesso do que lhe conta. Diz que outros projetos semelhantes pelas bandas já surgiram, mas não correram como deviam – nunca chegaram realmente a avançar.

Tito confidencia que é Estraca quem vai estar à frente deste e o rosto muda de figura. “Que ele é batalhador, é. Ele não está onde está por causa dos olhos dele”, responde, já convencido. Rapidamente, trocam contactos e combinam a primeira vinda ao estúdio.

O rapper encontrou aqui a forma de retribuir o que há muito lhe foi dado. “Há uns seis ou sete anos, também fiz parte da OPA (Oficina Portátil de Artes), projeto aqui no bairro, quando já rimava, e era idêntico a este, com o Francisco Rebelo – baixista dos Orelha Negra -, para agarrar pessoal do bairro e levar a periferia ao centro em concertos. Passados estes anos todos, sinto que devo retribuir aquilo que recebi, inverter o papel: recebi, agora dou.”

Neste canto da cidade, João Tito, que aqui aterrou por acaso, já não é hoje homem para largar a sua veia ativamente cívica. Como designer, aprendeu aqui também a desenhar e ilustrar os sonhos de outros. E o seu maior continua a ser esse: “O meu sonho é que, daqui a cinco anos, nós já não tenhamos quase nada a ver com isto e isto seja gerido pelo pessoal que o utiliza. Não há nada que pague isso.”

O que mais vê a acontecer na cidade e que merece a nossa atenção? Conte-nos:

Reportagem áudio
Captação e edição: Catarina Reis
Música/instrumental: Estraca – Não Quebro ft. Murta [gravação rádio] / Youtube audio library


Catarina Reis

Nascida no Porto há 27 anos, foi adotada por Lisboa para estagiar no jornal Público. Um ano depois, entrou na redação do Diário de Notícias, onde aprendeu quase tudo o que sabe hoje sobre este trabalho de trincheira e o país que a levou à batalha. Lá, escreveu sobretudo na área da Educação, na qual encheu o papel e o site de notícias todos os dias. No DN, investigou sobre o antigo Casal Ventoso e valeu-lhe o Prémio Direitos Humanos & Integração da UNESCO, em 2020.

catarina.reis@amensagem.pt

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