Num bairro como este, ainda em parte uma extensão do antigo e desmantelado Casal Ventoso, poucas são as oportunidades de levar ao mundo o nome e os retratos de quem ali vive por boas razões. Quase sempre, o tema é o outro: a droga, a sujidade, a exclusão e a pobreza. O rasto do bairro antigo perseguiu os moradores até aos prédios onde foram realojados – alguns aqui, na Quinta do Loureiro, no Vale de Alcântara.
O que não significa que não haja boas notícias ou exemplos para dar. A Mensagem já falou de alguns – o projeto que devolveu o espírito de vizinhança e a capacidade de sonhar através da fotografia; e o grupo de jovens que viraram campeões da Europa, com direito a um mural a homenageá-los no bairro.
Mas ainda são raras as histórias felizes para contar e as que ousam cá entrar. Em parte, porque este vale verde e castanho por detrás dos prédios e a grande avenida que se pousa na frente parecem ser muros para o resto da cidade, que vai resistindo a chegar aqui.
É por isso que, ao longo deste ano, o Festival Iminente tornou-se não só um festival de quatro dias, mas um motor de mudança, ao levar a arte a cinco bairros sociais de Lisboa, com 16 workshops – Alta de Lisboa (PER 7 e PER 11), Bairro do Rego, Vale de Alcântara e Vale de Chelas. Há música, dança, cinema, artes visuais, performance e sensibilização ambiental, nesta iniciativa à qual chamaram Projeto Bairros.
A Mensagem é media-partner do festival, onde fará jornalismo ao vivo. Antes, nos dias anteriores, serão publicadas cinco reportagens sobre estes workshops, uma por bairro.

A avaliar pelo lixo que há no chão deste bairro, sabemos que a informação sobre o que pode fazer-se com uma simples tampa de plástico tem uma única resposta por aqui: desperdício.
Era assim, até uma associação ter viajado de Cascais até ao bairro, no âmbito dos workshops do Festival Iminente, para lhes ensinar a fazer do plástico desporto. Uma história que se atreveu a entrar na Quinta do Loureiro, para que daqui saia outra ainda mais feliz.
Aprender a ver o lixo
Na infância de Carlos Stock, vindo de um outro bairro social, o bairro da Torre, em Cascais, não havia grande espaço para olhar o lixo além do que é, lixo.
“Os bairros acabam por ser iguais e diferentes uns dos outros. Mas, aqui, os miúdos não deixam de ser semelhantes aos do meu bairro.” Miúdos para quem a educação ambiental talvez seja a menor das preocupações, num contexto social e económico tantas vezes frágil.

Mas “teria sido interessantes olhar para o lixo de outra maneira”. Teria sido interessante alguém ter tentado mostrar a Stock o valor do plástico – como ele veio aqui fazer neste dia. Ainda para mais se virmos o plástico que deitamos ao lixo transformado em algo tão cool como skates.
Foi exatamente a isto que a Movimento Claro se propôs, uma associação que vem lá do bairro dele e à qual pertence desde há uns meses – um dia, convidado para grafitar um contentor amarelo da associação, no outro parte dela.
“Temos um campeão português skater e é fixe usar esta referência para eles.” Stock fala de Gustavo Ribeiro, o português que fez furor ao ser o primeiro no país a vencer o Tampa AM 2017, o mais antigo campeonato de skaters amadores, nos EUA. Uma arte desconhecida para ele, artista de mãos, até há pouco tempo. Afinal, foi só por causa do plástico que a associação transformou skates que também ele aprendeu, só agora, a manusear um.

Lixo, forno… ação!
À iniciativa chamaram de Torre Plstik – por referência ao nome do bairro da Torre. E para que aconteça só precisam de uma trituradora, de um forno e de moldes.
Há muito que a Movimento Claro trabalha sobre a reciclagem de plástico, mas faltava envolver os jovens de forma prática, “para que eles pudessem ver o plástico que recolheram, que é lixo, mas na verdade matéria-prima que pode ser utilizada de outra maneira”.
Chegaram à ideia de fazer skates – até porque, mesmo à porta da sede da associação, no bairro da Torre, num mato abandonado nasceu um parque de skate.
É Aura Rosa, coordenadora deste projeto da Movimento Claro, apoiado pela iniciativa Bairros Saudáveis, que nos conta. Está de luvas na mão, a admirar peças metálicas dentro de um forno pousado no espaço de um projeto local e comunitário no bairro, o CLDS–4G – Contratos Locais de Desenvolvimento Social–4G.




Nos dias anteriores, a equipa da associação e as crianças do bairro estiveram a triturar plástico tipo 2 e tipo 5 [os mais fáceis de manusear e que podem vir de tampas e garrafas, por exemplo], a separar por cores e tipos, e a prepará-los “como um bolo”, que depois vai ao forno, dentro de uma forma untada com lubrificante.
Derretido, é deixar o plástico arrefecer, lixá-lo, fazer-lhe furos e encaixar a estrutura que lhe dá rodas. Assim, murmuram as crianças na mesa, enquanto encaixam parafusos no plástico, “até parece fácil”. Quem diria que o plástico dava isto?
Esta matéria-prima que aqui trabalham chega diretamente à unidade da associação, mas também há pontos de recolha em restaurantes à volta do bairro da Torre e nas escolas públicas de Cascais.

No skate que Aura segurava, via-se como foram tampas de garrafas que lhe deram vida. “Por favor, recicla-me”, lia-se inscrito nelas – e eles cumpriram.
Pela primeira vez, neste dia, os jovens do bairro veriam os skates feitos e poderiam experimentá-los. Hoje, e daqui em diante, terão tempo para treinar as habilidades, porque cinco deles vão ficar cá, para usufruto de todos.
Mas Flávio, 13 anos, apressa-se. Agarra no primeiro skate a ficar pronto, sai lá para fora e testa quanto de Gustavo Ribeiro há naqueles pés. Está vaidoso – o plástico tornou-o o primeiro skater da zona.
O Iminente decorre entre os dias 22 e 25 de setembro, na Matinha, em Marvila. Veja aqui o programa dos quatro dias

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Catarina Reis
Nascida no Porto, Valongo, em 1995, foi adotada por Lisboa para estagiar no jornal Público. Um ano depois, entrou na redação do Diário de Notícias, onde escreveu sobretudo na área da Educação, na qual encheu o papel e o site de notícias todos os dias. No DN, investigou sobre o antigo Casal Ventoso e valeu-lhe o Prémio Direitos Humanos & Integração da UNESCO, em 2020. Ajudou a fundar a Mensagem de Lisboa, onde é repórter e editora.
✉ catarina.reis@amensagem.pt

Inês Leote
Nasceu em Lisboa, mas regressou ao Algarve aos seis dias de idade e só se deu à cidade que a apaixona 18 anos depois para estudar. Agora tem 23, gosta de fotografar pessoas e emoções e as ruas são o seu conforto, principalmente as da Lisboa que sempre quis sua. Não vê a fotografia sem a palavra e não se vê sem as duas. É fotojornalista e responsável pelas redes sociais na Mensagem.