Nany Aguiar procurou em Lisboa a segurança que o “reinado” de Bolsonaro lhe tirou. É quando toca violino ou atua no Palácio do Grilo, em Xabregas, que Nany traz ao de cima tudo o que sentiu naquela noite de outubro de 2018. A noite em que apagou todas as luzes de casa, acendeu velas e tomou a decisão de sair do Brasil e deixar para trás o Recife, a cidade onde nasceu há 30 anos, e morar em Lisboa.

Naquela noite, de 22 de outubro de 2018, Jair Bolsonaro saía vencedor das eleições presidenciais, com 55% dos votos e no segundo turno – ou segunda volta, como se diz em Portugal. A vida de Nany e da comunidade lgbtqi+ brasileira nunca mais foi a mesma.

Apesar de viver no extremo oeste da capital de Pernambuco, perto da favela da ribeirinha e da cidade universitária, Nany Aguiar jamais tirou da casa da mãe, no extremo sul do Recife, a morada do colégio eleitoral. “Era uma desculpa para passar mais um domingo com ela”, diz rindo. “Nesse dia, votei, almocei com a minha mãe e só voltei a casa à noite”.

A vida de Nany e da comunidade lgbtqi+ brasileira nunca mais foi a mesma desde a eleição de Jair Bolsonaro. Por isso, a violinista decidiu sair do Brasil, rumo a Portugal. Foto: D.R

Foi na viagem de regresso, de carro, que a “deceção” tomou conta de si. “Esse cara não surgiu em 2018, há muito que sabíamos quem era Bolsonaro, um racista e homofóbico. O problema é que ele era uma piada. Ninguém há dez anos pensava que uma chacota podia estar legitimamente no poder.”

Agora, sentava-se no Palácio de Alvorada, a residência oficial do Presidente, em Brasília, um homem que faz declarações como “ter filho gay é falta de porrada” ou “seria incapaz de amar um filho homossexual. Prefiro que um filho meu morra num acidente”.

Nany percebeu que as coisas iam mudar. Já estavam a mudar.

A zona onde vivia é um dos maiores bairros da comunidade trans do Recife. Ali perto, uma praça servia de “ponto de convívio da comunidade”, onde se faziam até “concursos de travestis”. Naquela noite, a folia, cor e união habituais deram lugar a um “silêncio mórbido”.

Por toda a cidade, lançava-se fogo de artifício e ouviam-se tiros. Numa “atmosfera sinistra”, os apoiantes do novo presidente saíram à rua e muitos gritaram «Bolsonaro vai matar veado”. “Tive medo”, confessa Nany.

Em casa, “apaguei as luzes, fiquei no silêncio, acendi algumas velas para refletir e foi nessa noite que decidi sair do Brasil”.

“O meu bairro deixou de ser um sítio hospitaleiro para a comunidade lgbtqi+”

A terminar o curso de música, Nany estava há meses a traçar um perfil de estudantes e professores lgbtqi+ da escola e que servia de tese final, mas foi encorajada pela própria Universidade a mudar de tema. “O colegiado disse-me que, perante a escalada de violência homofóbica, encetada pela vitória do Bolsonaro, não iam garantir proteção a ninguém que entrevistei.”

“Abriram um regime de exceção e escrevi um novo trabalho sobre o ensino de violino. Senti-me censurada”, recorda.

O pior estava por vir. 

Quando a pessoa com quem Nany tinha uma relação, que se identifica como não-binária, foi vítima de uma tentativa de “estupro coletivo” perto de casa. “Isso mexeu muito comigo. O sítio onde morávamos deixou de ser hospitaleiro. Toda a gente me conhecia, sabia que era sapatão e que morava na rua tal. Tinha medo.”

Não é um medo infundado. 316 é o número de pessoas lgbti+ que morreram “de forma violenta” no último ano no Brasil, segundo dados do Observatório de Mortes e Violência LGBTQI+. A ANTRA, principal associação trans do país, denuncia o Brasil como o país do mundo que mais mata transexuais.

A violência sempre foi um problema que perpassou a sociedade brasileira e 316 mortes pode parecer um número residual num país que conta com 212,6 milhões de habitantes. Mas imagine ser alvo de morte por algo tão básico quanto ser quem se é ou amar quem se ama.

“Não é que mais pessoas ficaram homofóbicas. Aqueles que sempre foram sentiram-se legitimados para exercer violência sobre nós, porque é aquilo que ouvem do cargo mais poderoso do país”, explica Nanny.

Fugir do Brasil para sobreviver

Nany decidiu sair do Brasil e procurar alguma segurança em Lisboa, onde chegou em fevereiro de 2019. Portugal é o destino mais escolhido “por questões burocráticas”: “aqui os brasileiros não precisam de visto para entrar como turista”.

Os relatórios de imigração mostram um aumento significativo de brasileiros em Portugal depois da eleição de Jair Bolsonaro. Em 2018, eram 105 mil, passando para 151 mil em 2019 e quase 184 mil em 2020.

É impossível quantificar quantos partiram por medo da homofobia, mas a Queer Tropical, um coletivo que nasceu na noite eleitoral de 2018, para ajudar brasileiros lgbtqi+ a vir para Portugal, fala em milhares.

Débora Ribeira vivo em Portugal desde 2009, mas na noite em que Bolsonaro foi eleito presidente do Brasil, percebeu que a comunidade lgbtqi+ do seu país iria precisar de ajuda. Foi daí que nasceu a associação Queer Tropical, de que é fundadora. Foto: D.R.

No Porto desde 2009, já casada com uma portuguesa e com duas crianças, Débora sempre conjugou o trabalho com o ativismo. Lembra-se bem daquela noite, embora não tenha sido uma surpresa o desfecho: “Parte da minha família, branca e de direita, vota Bolsonaro”.

“Ele despertou um sentimento de identificação nas pessoas. Todas tinham ideias negativas sobre imigrantes haitianos ou sobre os pobres. Pensavam «o Bolsonaro vai pô-los na linha» – e isso é mais forte do que ele ser racista e homofóbico”.

De vários amigos, Débora Ribeira, brasileira de Minas Gerais, 37 anos, começou a receber pedidos “desesperados”. Queriam entrar em Portugal e mostravam fotografias de agressões que haviam sofrido na rua. “Iam à polícia, mas não faziam nada, porque não havia leis que penalizassem a homofobia”, relata.

Ironicamente, a lei que pune a “discriminação e o preconceito relativos à identidade ou orientação sexual” foi aprovada pelo Senado Brasileiro em 2019, durante o mandato de Jair Bolsonaro.

Mas a realidade é outra.

Um estudo conduzido por jornalistas, em 2020, mostra que 50% dos entrevistados lgbti+ foram vítimas de agressão no próprio dia da eleição de Jair Bolsonaro. 92% disse que a violência aumentou depois da sua chegada ao poder.

Emmelin de Oliveira, investigadora de Direito Internacional e Europeu da NOVA SCHOOL OF LAW, admite que acompanhou, como jurista, pedidos de estatuto de refugiado de brasileiros lgbtqi+, tal é a brutalidade das suas histórias.

Os pedidos são negados, por vários motivos. Primeiro, “há legislação” contra a homofobia no país. Segundo, quando se fala em Brasil, “espera-se que os números sejam grandes, por isso números que deviam ser assustadores são minimizados”.

Depois, há a questão política: “Quando um Estado atribui um estatuto de refugiado, o Estado diz que o país de origem não consegue ou não quer proteger aquele grupo. É uma afirmação política”, remata a investigadora.

Uma associação portuense com ecos em Lisboa para ajudar a comunidade lgbtqi+ brasileira

Muitos queriam sair.

Na mesma noite que deu a vitória a Jair Bolsonaro, Débora decidiu agir e criou um grupo no Facebook para dar conselhos sobre migração legal a todos os que se sentiam ameaçados. Em poucas horas, o post chegava aos seis mil comentários e choviam dois mil pedidos de adesão ao grupo.

Com 18 brasileiros, do Porto e de Lisboa, começou a dar aconselhamento, de forma voluntária: “Muitos queriam saber questões de documentação, outros sobre o funcionamento do tratamento do VIH em Portugal, por exemplo”.

É impossível, para Débora, esquecer uma das primeiras histórias com que lidou: um casal de dois homens, na praia, acompanhados pela filha de três anos, violentados por um grupo com garrafas de vidro.

A história de Nany não passou inicialmente pela Queer Tropical. Com amigos na Marinha Grande, foi aí que as duas refizeram a sua vida em Portugal, para depois se instalarem no Lumiar, em Lisboa.

Nanny vive agora no Lumiar e trabalha como violinista, no Palácio do Grilo, em Lisboa. Foto: D.R.

Hoje, Nany continua como violinista e atua com um grupo de imigrantes brasileiras no Palácio do Grilo, num espetáculo de música, dança e movimento.

Aqui, aproximou-se da Queer Tropical, que se constituiu há um ano como associação, um ponto de união e de ativismo da comunidade.

A missão da associação é ligar a comunidade a associações portuguesas que prestam auxílio em várias áreas, como habitação, saúde ou justiça. “Há brasileiros que não se sentem no direito de recorrer a associação portuguesas, ora porque estão indocumentados, ora porque não têm número de utente. Nós dizemos «vai a essa, não vai acontecer nada»”. É ainda uma função de aconselhamento, porque, garantem, viver em Portugal como imigrante brasileiro lgbtqi+ “é foda”.

Lisboa, um oásis imperfeito: “Quando abro a boca, tenho o sotaque errado”

Delso Batista, 37 anos, psicólogo e um dos principais membros da Queer Tropical em Lisboa, sentiu todos os desafios de ser um homem brasileiro, negro e gay na cidade.

Aqui chegou em 2010, vindo de Minas Gerais. Guiava-se pela narrativa tradicional de um emigrante: “Há um sonho de que do outro lado seja tudo melhor”. Embora a homofobia tenha escalado com Bolsonaro, Delso saiu do Brasil pela “impossibilidade de ser completamente livre”.

“Se no Brasil tinha medo de ser gay, em Portugal tenho medo de ser negro”, diz Delso Batista, 37 anos, psicólogo. Foto: D.R.

“Ser gay e negro no Brasil é um atestado que te coloca em risco de vida. Na rua cheguei a levar um soco de forma gratuita por ser gay. Perdi amigos quando saí do armário”, começa por contar Delso. “Evitas falar sobre o assunto, mesmo nos relacionamentos é tudo às escondidas e isso condicionava a minha autoestima. Há um constante medo de marginalização e de ser alvo de violência.”

Em Lisboa, Delso concluiu um mestrado na área de Psicologia e conseguiu naturalizar-se português. Hoje, diz que esta é a sua “casa”, uma que precisa de ser “ordenada”.

Embora exista um “pacto social” para aceitar a homossexualidade, há “preconceito”. “Mesmo em relações com homens brancos, gays e europeus, que me inferiorizam por ser negro”.

Aqui, Delso percebeu que o racismo ia mitigar parte dos seus sonhos. Sem trabalho como psicólogo, procurou emprego em supermercados e em lavagens de carros, onde ouviu respostas como «não damos emprego a estrangeiros».

“Quando abria a boca, não tinha o sotaque certo”.

“Se no Brasil tinha medo de ser gay, em Portugal tenho medo de ser negro”, diz. “No Brasil, sendo negro, olhando para todo o canto, vês pessoa como tu. Na escola, tinha mais agressões e bullying por conta de ser o menino afeminado, não por ser negro”. 

Tempos depois, conseguiu um trabalho como psicólogo. “Primeiro tive de estar na empresa três meses sem ganhar nada, à experiência. Depois, passei a ganhar o ordenado mínimo, na altura na ordem dos 400€, ao mesmo tempo que pagava um quarto de 300€”, conta Delso. “Demorei muito a ganhar o mesmo que os meus colegas portugueses.”

Imigrantes lgbtqi+ brasileiros enfrentam a dupla fragilidade de pertencerem a uma minoria sexual e, muitas vezes, étnica. “Há pessoas que me enviam mensagens a dizer ‘não me dão emprego por ser brasileira, não tenho o que comer, tenho de me prostituir’ As pessoas acham que alguém quer estar nessa posição?”, questiona Débora Ribeiro, da Queer Tropical.

“Há pessoas que se querem matar”, confessa Débora. “Se há pessoas trans que não têm acesso a tratamento hormonal para continuar a sua transição, como é que a cabeça delas estará?”

E muito tem de ser feito para continuar a ajudar esta comunidade. Que comporta sonhos. Alguns deles estão por concretizar no próximo domingo, noite eleitoral. Esperam “uma escolha consciente” e aguardam tudo “com medo e esperança”. Nany admite: “Se Lula ganhar, penso em voltar para o Brasil, mas primeiro quero ver como correm os primeiros 100 dias de governação”.

Porque ninguém quer estar longe dos seus. Quando se parte, é por algo maior.

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João Damião

João Damião

É aluno do mestrado de Jornalismo da Universidade Nova de Lisboa/ FCSH. É um tanto idealista. Acredita que o melhor futuro é pautado pela educação, informação, beleza e tolerância. É isso que o move a contar histórias.

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