“Achas que dá para salvar esta, André?”. Os moradores, de corpo vertido sobre um talhão de terra, perguntam ao especialista: há um vaso para plantar num dos quatro canteiros antes abandonados da Quinta do Lavrado, no Vale de Chelas, mas ela parece morta por fora. André Maciel não é de desistir da natureza e faz o truque que há muito aprendeu: com a ajuda da unha do polegar, raspa o pequeno tronco nascido de uma raiz, à procura de vida. Está castanha – se estivesse verde, não se declararia óbito aqui, haveria esperança.
Esta planta já não dará comida ao bairro, mas quando os especialistas em horticultura André Maciel e Tiago Sá Gomes abriram o tronco à Quinta do Lavrado, onde era a velha Curraleira, estava verde e pronta para ser mais um pulmão na cidade.
Estão cá a convite do Festival Iminente, que tornou-se não só um festival de quatro dias, mas um motor de mudança, ao levar a arte a cinco bairros sociais de Lisboa, com 16 workshops – Alta de Lisboa (PER 7 e PER 11), Bairro do Rego, Vale de Alcântara e Vale de Chelas. Há música, dança, cinema, artes visuais, performance e sensibilização ambiental, nesta iniciativa à qual chamaram Projeto Bairros.
A Mensagem é media-partner do festival, onde fará jornalismo ao vivo. Entretanto, serão publicadas cinco reportagens sobre estes workshops, uma por bairro.
Chegar aqui foi inverter vontades – não as do bairro, as de Tiago, um dos fundadores da Upfarming, a equipa que projetou as primeiras hortas verticais rotativas, em Alvalade, com uma tecnologia importada de Singapura. Já falámos deles aqui.
“Tínhamos esta vontade de trabalhar com horticultura vertical, até porque era por isso mesmo que éramos conhecidos.” Eles, um arquiteto, uma marketeer e um social entrepreneur, para quem a agricultura estava destinada a crescer para cima, verticalmente, na cidade. Como os prédios que nela existem.
Mas, nos últimos meses, perceberam que a horticultura vertical era apenas uma das ferramentas com que queriam trabalhar. Cimentaram a vontade quando chegaram aqui ao bairro e viram potencial numa série de canteiros com espaço disponível “e que poderiam ser o primeiro passo deste namoro a longo prazo”. “Trabalhar outras dimensões com base no que já cá está, é o que queremos fazer agora”, confessa Tiago.

É uma história de amigos improváveis, a de uma equipa que pensa a agricultura nas cidades e de um bairro que nunca teve muito tempo para ela. Mas também a história de outros prováveis, que não o eram ainda: foi este workshop que juntou Tiago a André Maciel, com quem já partilhava a profissão e princípios, só aqui cruzados.
André está cá como representante da página Hortas LX. Tudo nasceu em Setúbal, a partir do restauro de uma casa muito antiga, onde se criou uma horta, num centro urbano, e se ensinou que se pode ser sustentável no meio de uma cidade. Entretanto mudado para Lisboa, criou esta página, na rede social Instagram, para dar ferramentas às pessoas, às escolas e às empresas que queiram cultivar. E para que saibam que não é preciso ter um espaço com terra para que isso aconteça.
Criar hortas urbanas sob os princípios da permacultura é hoje o trabalho dele. Quer isto dizer, que são hortas de cultura permanente, com uma arquitetura sustentável adaptada a ambientes humanos. Como é este bairro, onde mora gente.

O lugar abandonado que já deu pepinos
“Se observarem, temos aqui várias espécies, muita variedade de vegetais, a própria cultura de solo, o facto de a cama ser elevada…”. São desafios que encontraram nos quatro canteiros que aqui estão sombreados por prédios altos, na Praça dos Pequeninos, e que estavam completamente abandonados. Lembra André que tinham algumas plantas, tentativas de outros tempos, algumas das quais ele e Tiago fizeram aproveitamento. É que estes talhões já foram uma horta, “mas que não tinha qualquer tipo de manutenção ou sistema de rega que hoje em dia tem.”
Carina, moradora e membro da associação Geração com Futuro, lembra que chegou a dar pepinos e “bem bons”. Mas a rega era sempre uma dor de cabeça e a coordenação de vidas no bairro também – cada um com os seus horários.
Era preciso começar do zero.

Lá estavam eles, os mais novos, a lutar pelos buraquinhos onde plantar. Sem camisolas (porque o dia fazia-se quente) e a pisar o chão regado com a água das mangueiradas, que os deixou de corpo pingado. Lá abriram pequenos buracos junto ao tubo de rega, um a um, com a ajuda do dedo indicador, para lá plantar a planta pequenina.
“Fizemos uma limpeza gigante aos talhões e começamos a limpar o solo para que pudesse receber estas novas culturas todas. Acabavam por ser quatro talhões abandonados que ganharam uma nova vida”, lembra André.
Mas não chegaram aqui para ensinar apenas, sabiam que era preciso entender necessidades primeiro. “O primeiro ponto foi percebermos que havia já essa experiência aqui no bairro, apesar de as hortas não terem funcionado. Depois, foi reunir as crianças que estavam interessadas em participar e começar uma dinâmica com elas de aproximação à plantação”, diz Tiago.
O processo começou pelo reconhecimento do que já cá existia. Como as nespereiras, duas delas novamente plantadas, com o futuro ainda incerto. E as jades, suculentas – que só resistiram aqui ao longo dos anos, porque são de baixa manutenção, uma planta de pouca água e solos pobres.
Também durante a limpeza do solo, encontraram várias sementes perdidas, de feijão sobretudo. É como se a ideia do que lá existe hoje estivesse ali plantada pelos moradores, mas nunca concretizada, até Tiago e André trazerem a água e a terra para as fazer germinar.
Depois, foi acrescentar matéria orgânica, a cobertura do solo, plantar e cuidar. A rega já não deverá ser problema: ali, instalaram-se vasos altos e verdes que, quando não for a chuva a fazê-lo, poderão ser enchidos pelos moradores, que o resto o sistema trata de fazer. Gota a gota, os tubos a eles ligados farão chegar a água a todas as plantas que os mais pequenos plantaram com os próprios dedos, a partir destes vasos.
A agricultura une pessoas
“E esta? É uma alface?”, pergunta o pequeno Afonso. É sim. E vai dar uma refeição ao bairro.
André lembra como este foi um workshop “para juntar a comunidade toda”, mais do que ensinar a arte do cultivo. As alfaces que se plantaram aqui servirão, todos os meses, um almoço comunitário, entre vizinhos. Para que esta outra arte de juntar não acabe depois de plantada a semente.
“Uma horta, para além de nos trazer a alimentação, que é a base, traz depois esta união entre moradores e o facto de estarem todos unidos por uma causa, que é produzir alimento. Só isso transforma a comunidade.” E isso, diz André, já foi transformado, quando viu que, “de dia para dia, os moradores cada vez ficavam mais entusiasmados, mais unidos e todos os dias juntava-se uma pessoa nova aos que já cá estavam.”



Era para durar uma semana, mas passadas duas Tiago e André ainda lá estão. O que se explica com a afinidade que criaram com a comunidade – é como os amigos, os prováveis e improváveis: não se largam. Vão cá ficar mesmo: os dois prometem vir todos os meses dar apoio à manutenção da horta. E comparecer a estes almoços de vizinhos, como vizinhos que se tornaram também.
Tiago já olha para a parede atrás dele, de costas para um cemitério, como outro terreno onde podem nascer hortas. Aqui, verticalmente – como um regresso às raízes da Upfarming. É altura de raspar o tronco aqui também, medir a pulsação, ver se também ali poderá nascer outro pulmão de Lisboa.
O Iminente decorre entre os dias 22 e 25 de setembro, na Matinha, em Marvila. Veja aqui o programa dos quatro dias.

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Catarina Reis
Nascida no Porto, Valongo, em 1995, foi adotada por Lisboa para estagiar no jornal Público. Um ano depois, entrou na redação do Diário de Notícias, onde escreveu sobretudo na área da Educação, na qual encheu o papel e o site de notícias todos os dias. No DN, investigou sobre o antigo Casal Ventoso e valeu-lhe o Prémio Direitos Humanos & Integração da UNESCO, em 2020. Ajudou a fundar a Mensagem de Lisboa, onde é repórter e editora.
✉ catarina.reis@amensagem.pt

Inês Leote
Nasceu em Lisboa, mas regressou ao Algarve aos seis dias de idade e só se deu à cidade que a apaixona 18 anos depois para estudar. Agora tem 23, gosta de fotografar pessoas e emoções e as ruas são o seu conforto, principalmente as da Lisboa que sempre quis sua. Não vê a fotografia sem a palavra e não se vê sem as duas. É fotojornalista e responsável pelas redes sociais na Mensagem.
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