Lisboa (e também Portugal) foi bastante glosada pela Nouvelle Vague francesa. Cineastas como François Truffaut, Claude Chabrol, Pierre Kast ou Jacques Doniol-Valcroze estiveram em Portugal (e sobretudo na região de Lisboa) para filmar sequências de filmes seus.

“Os Sorrisos do Destino” (Vacances portugaises, 1963), de Pierre Kast (1963), com Françoise Arnoul, Michel Auclair e Jean-Pierre Aumont, é uma boa referência, mas há muitas mais: o mesmo Pierre Kast nos deu “O Triângulo Circular” (Le grain de sable, 1964), com Lilli Palmer, Pierre Brasseur e Laurent Terzieff. Ainda de Pierre Kast, mas de colaboração com J. Daniel Valcroze, tivemos “PXD” (1962).

Também ligado à Nouvelle Vague, “Les Chemins du Soleil” do luso francês Carlos Villardebó, que filmaria igualmente com Amália Rodrigues “As Ilhas Encantadas”, adaptando romance de Herman Melville, em 1965. Carlos Villardebó chegou a ganhar a Palma de Ouro de Cannes para a sua curta-metragem “A Colher Egípcia” (1960).

Outros projectos se concretizaram vindos de França. Alguns: “Le Pas de Trois” de Alain Dornet (com filmagens na Boca do Inferno) e Clara D’Ovar na protagonista, ao lado de Annie Fratellini e Jean-Loup Reynold, “Rendez Vous A Lisbonne”, de Claude Boissol (1992), ou “La Valise en Carton”, série de TV, de Michel Wyn (1988), segundo a popular obra de Linda De Suza, com interpretação de Irene Papas. 

Mas dois dos projectos mais interessantes, ainda que relativamente “rápidos” na sua passagem por Lisboa, foram “Angústia”, de François Truffaut, e “A Rapariga Cortada em Dois”, de Claude Chabrol. Em ambos, Lisboa serve de cenário a casos idílicos de casais apaixonados.

“Angústia” (La peau douce), de 1964

Em “Angústia” (La peau douce), de 1964, segundo argumento original de François Truffaut e Jean-Louis Richard, e interpretações de Jean Desailly e Françoise Dorléac, temos a história de um bem-sucedido editor e ensaísta, Pierre Lachenay, casado com Franca, com quem tem uma filha, Sabine, de dez anos, que um dia descobre a paixão por uma hospedeira do ar, Nicole, com quem principia uma relação clandestina que o leva a visitar Lisboa, numa viagem de namorados, que tem também como fito uma conferência sobre Balzac. 

Amor, ciúme, crime, Lisboa parece propícia para fugas românticas que terminam em tragédia. A única grande cena que tem Lisboa como referência é filmada junto ao elevador da Glória, nos Restauradores. Curiosamente, um dia eu, ao passar por esses lados, dei com uma equipa de filmagem, e o Jean Desailly e a Françoise Dorléac a esperarem que os técnicos iluminassem o local e aprontassem o material técnico.

Curiosamente não vi François Truffaut então e guardei o encontro para anos mais tarde, quando em Paris, juntamente com o tenente-coronel Luís Silva, administrador da Lusomundo, me encaminhava para uma sala de projecção de uma produtora francesa, para ver um filme que me interessava para o Estúdio Apolo 70, cuja programação então dirigia, e me cruzei com Truffaut.

Ele vinha a sair da sala, nós a entrar, e foi efectivamente um “encontro de terceiro grau”, dado que Truffaut é um dos cineastas que muito admiro. Mas “Angústia”, apesar de ser muito interessante, e roçar o filme negro, não é do melhor Truffaut, ainda que este cineasta nunca seja de menosprezar. Um bom filme, com uma rápida incursão romântica pela capital portuguesa.

“A Rapariga Cortada em Dois” (La fille coupée en deux), 2007

Algo de muito semelhante se poderá dizer de “A Rapariga Cortada em Dois” (La fille coupée en deux), de Claude Chabrol (2007), com argumento de Cécile Maistre e Claude Chabrol, fotografia (muito boa) do português Eduardo Serra, e interpretação de Ludivine Sagnier, Benoît Magimel, François Berléand e Mathilda May. 

Mais uma vez um triângulo amoroso, mas desta feita ainda mais anguloso e de difícil digestão. Como sempre em Chabrol, Hitchcock passou por ali, nesta história complexa e intrincada de autodestruição e angústia, que reúne um escritor de certo reconhecimento, Charles Saint-Denis (Francois Berleand), que se apaixona por uma sedutora Gabrielle Deneige (Ludivine Sagnier), apresentadora de um boletim meteorológico num canal de televisão, que conhece numa sessão de autógrafos numa livraria que a mãe da jovem dirige.

Acontece que aparece também para traumatizar o ambiente um jovem tresloucado e multimilionário, Paul Gaudens (Benoit Magimel), que não aceita uma negativa na sua existência de menino mimado. O escritor é um depravado, o jovem um violento, a miúda uma inconstante, e Chabrol mistura os ingredientes com sabedoria e argúcia. Andamos outra vez no rasto do filme negro, com crime e punição (benevolente: o menino é multimilionário) e a desgraça a partir pelo lado mais fraco: a rapariga cortada em dois. 

Gosto muito dos filmes de Chabrol, universos perversos de pequenas comunidades, analisadas com bisturi. Chabrol era um bon vivant, que adorava mulheres bonitas e belas refeições, além de conflitos passionais bem aguerridos, e tudo isso surge nesta obra que passa por Lisboa. Paul Gaudens consegue convencer Gabrielle Deneige e passar uns dias num luxuoso hotel de Lisboa, com algumas escapadas turísticas interessantes. E incompreensão de parte a parte. Vale a pena ver, apesar de não ser uma das obras-primas do cineasta. 

Outra curiosidade pessoal. Não, nunca vi Chabrol, infelizmente. Mas vi a belíssima Mathilda May, então no seu esplendor de nova sex symbol do cinema francês, em plena década de 1980, quando eu e o Mário Damas Nunes, que foi um excelente assistente de realização meu em “Manhã Submersa”, decidimos estar algumas horas numa enorme fila para entrar numa exposição sobre cinema francês, em Paris.

A espera foi doce, pois mesmo atrás de nós tínhamos a magnífica Mathilda May. Muito simpática. Boa espera e fabulosa exposição.

É assim a vida: nem sempre o negativo é mau.


*Lauro António, realizador e crítico de cinema – lendário em Portugal. Lisboeta de gema, foi a cidade que também cunhou o seu gosto pelo cinema, e ele próprio mudou a história do seu cinema.

ANGÚSTIATítulo original: La peau douce

Realização: François Truffaut (França, 1964); Argumento: François Truffaut, Jean-Louis Richard; Produção: (em Portugal): António da Cunha Telles; Música: Georges Delerue; Fotografia (p/b): Raoul Coutard; Montagem: Claudine Bouché; Design de produção: Renée Rouzot; Maquilhagem: Nicole Félix; Direcção de Produção: Marcel Berbert, Gérard Poirot; Assistentes de realização: Jean-François Adam, Jean-Pierre Léaud, Claude Othnin-Girard; Departamento de arte: Jean-Claude Dolbert; Companhias de produção: Les Films du Carrosse, Societé d’Exploitation et de Distribution de Films,  Simar Films; Intérpretes: Jean Desailly (Pierre Lachenay), Françoise Dorléac (Nicole), Nelly Benedetti (Franca Lachenay), Daniel Ceccaldi (Clément), Laurence Badie (Ingrid), Philippe Dumat (Director do cinema em Reims), Paule Emanuele (Odile), Maurice Garrel (Bontemps), Sabine Haudepin (Sabine Lachenay), Dominique Lacarrière, Jean Lanier, Pierre Risch, Georges de Givray, Jean-Louis Richard, François Truffaut (voz), etc. Duração: 113 minutos; Distribuição em Portugal: Classificação etária: M/ 12 anos; Estreia em Portugal: 13 de Outubro de 1965. 


A RAPARIGA CORTADA EM DOISTítulo original: La fille coupée en deux

Realização: Claude Chabrol (França, 2007); Argumento: Cécile Maistre, Claude Chabrol; Produção: Patrick Godeau; Música: Matthieu Chabrol; Fotografia (cor): Eduardo Serra; Montagem: Monique Fardoulis; Design de produção: Françoise Benoît-Fresc; Guarda-roupa: Mic Cheminal; Maquilhagem: Maya Benamer, Alexandre Laforest, Aurélie Rameau; Direcção de Produção: Michel Jullien, Joana Synek; Assistentes de realização: Vincent Guillerminet, Isabel Lebre, Manuel Liminiana, Cécile Maistre, Gaultier Mermet, Mélanie Ravot; Departamento de arte: Catherine Pierrat, Miss Tic, Valérie Vernier Ricordeau, Audrey Vincent; Som: Valerio Brini, Sophie Chiabaut, Vincent Cosson, Eric Devulder, Seppe van Groeningen, Jean-Alexandre Villemer; Efeitos Visuais: Guillaume Bauer, Marc Bonneviot, Nicolas David, David Rodrigues; Companhias de produção: Alicéléo, Alicéléo Cinéma, France 2 Cinéma, Rhône-Alpes Cinéma, Integral Film, Région Rhône-Alpes, Centre national du cinéma et de l’image animée (CNC), Canal+, CinéCinéma; Intérpretes: Ludivine Sagnier (Gabrielle Aurore Deneige), Benoît Magimel (Paul André Claude Gaudens), François Berléand (Charles Saint-Denis), Mathilda May (Capucine Jamet), Caroline Silhol (Geneviève Gaudens), Marie Bunel (Marie Deneige), Valeria Cavalli (Dona Saint-Denis), Etienne Chicot (Denis Deneige), Edouard Baer, Jean-Marie Winling, Didier Bénureau, Thomas Chabrol, Charley Fouquet, Hubert Saint-Macary, Jérémie Chaplain, Clémence Bretécher, André Asséo, Béatrice Audry, Alain Bauguil, etc. Duração: 115 minutos; Distribuição em Portugal: Zon; Classificação etária: M/12 anos; Estreia em Portugal: 22 de Maio de 2008.

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3 Comentários

  1. Tive ocasião de contactar durante um tempo (já longínquo) com Lauro António, uma vez que um dos jornais em que ele publicou as suas críticas cinematográficas foi “A Capital”, onde trabalhei muitos anos. Depois, só tivémos encontros casuais e rápidos, pelo que me ficou sempre a pena de não ter aprendido muito mais sobre o cinema em geral e sobre as relações deste com Lisboa. Partiu inesperadamente. Que descanse em paz, conservando a gratidão dos leitores e espectadores.

  2. Sentido e Belíssimo texto do Lauro António …Mais uma vez os seus esclarecimentos levam-nos à procura dos filmes e das situações que evoca …Grande perda para os cinéfilos…

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