O Punk-nic de Alvalade. Foto: Rita Ansone.

No Jardim dos Coruchéus, coração de Alvalade, duas crianças brincam no baloiço, acompanhadas à distância pelos pais sentados à mesa do quiosque. O silêncio domina o pequeno jardim à volta do antigo palacete, quebrado apenas pelo canto discreto dos pássaros.

Mas nem sempre foi assim. 

Nos anos 1980, 90 e início dos anos 2000, o Jardim dos Coruchéus era o habitat de um outro ecossistema, sem crianças, pais, mães, mas frequentado por jovens rebeldes de cabelos coloridos e roupas extravagantes, os vibrantes solos das guitarras dos Ramones, Sex Pistols e The Clash a abafar o canto dos pássaros. 

Todos no bairro o conheciam, todos em Lisboa já tinham ouvido falar neles. Aos mais velhos, era impossível ignorá-los, aos mais jovens, não os idolatrar. 

Eram os Punks de Alvalade. 

O mural que ilustra o Jardim João Ribas, o antigo quartel-geneeral do movimento punk em Alvalade. Foto: Líbia Florentino.

Mais do que uma tribo, um movimento vibrante, consistente e fértil, ironicamente nascido no mais improvavelmente punk dos bairros lisboetas, na tradicional e conservadora Alvalade, e no seus liceus, Padre António Vieira e Rainha Dona Leonor, limitada geograficamente pelas avenidas da Igreja e de Roma, das Forças Armadas e da República, referências religiosas e institucionais que nada diziam aos jovens rebeldes. 

Um movimento iconoclasta por princípio, que não reconhecia nas leis vigentes a sua lei, nem nos líderes uma liderança, mas que de uma forma peculiarmente punk soube eleger um dos seus como uma referência: João Ribas, era, e até hoje é, 10 anos após o seu desaparecimento, celebrado nas conversas entre copos, celebrado no palco.

João Ribas, o principal nome de proa do movimento punk que nasceu em Alvalade para ganhar Lisboa. Foto: Arquivo Tara Perdida.

Nos dez anos sem o seu maior vizinho punk, Alvalade despe-se do seu discreto charme burguês para lembrar os anos de rebeldia. Um picnic, ou melhor, um punk-nic movimentou o agora Jardim João Ribas, ao pé da Biblioteca dos Coruchéus, abrindo as celebrações, que seguem com a inauguração de uma rua no bairro com o nome do artista

O bairro onde João Ribas viveu, compôs e tocou, onde foi feliz e sofreu, pois ser punk é ser tudo ao mesmo tempo. Um punk que partiu cedo demais, em 23 de março de 2014, ainda antes dos cinquenta anos, mais do que nunca fiel ao espírito de que melhor uma vida vivida cinquenta anos a mil do que mil anos a cinquenta.

Contra o sistema, a Coca-Cola e o Big Mac

Em dezembro passado, no punk-nic em memória do movimento que nasceu em Alvalade e do músico que desde 2014 o batiza, antigos frequentadores tiraram os casacos de cabedal do armário, vestiram as botas e colocaram as cristas em riste para relembrar quando o território a eles pertencia.

Billy tem mantido o espírito punk nas sessões no comando da pick up, abrindo os concertos das bandas da cena. Foto: Rita Ansone.

Entre os presentes, Billy, um lisboeta que mantém o espírito punk não só no penteado, mas também através do mais antigo blog ainda em atividade sobre a comunidade punk, o Billy News, onde é possível não só acompanhar as noticiário punk mas também as agendas de concerto das bandas portuguesas e das apresentações do próprio Billy, em sua versão DJ.

Nascido em Benfica em 1969, Billy acabou no bairro por causa deste movimento. “Apesar de parecer estranho, faz todo o sentido que o movimento tenha surgido em Alvalade”, acredita o blogger e DJ, que por um princípio punk não revela o nome de baptismo. “É apenas Billy. Nem o Ribas sabia o verdadeiro.”

Billy lembra que os punks de Alvalade fazem parte da segunda vaga do movimento, surgido em meados dos anos 1970 em Inglaterra com os Ramones e companhia, mas que apenas ecoou em Portugal com força no início dos anos 80, patrocinado por uma pequena burguesia que, ironicamente, seria um dos principais alvos do movimento. 

“Naquela época, praticamente nada chegava a Portugal. Os primeiros punks foram então os filhos de uma classe média e alta com possibilidade de viajar, de entrar em contato com o movimento no estrangeiro, que trazia os discos, as cassetes e as roupas de Inglaterra. E essa classe vivia em Alvalade”, explica Billy. 

Na Lisboa do início dos anos 80, até para garantir um penteado punk era necessário criatividade. “Não havia tintas para tingir os cabelos nem gel. A alternativa era usar cola e guache, mesmo”, lembra Billy.

Um dos punks de que se tornou amigo era justamente João Ribas, nascido e criado na avenida de Roma e que na infância chegou a ter aulas de equitação, mas que ao entrar na adolescência encontrou no movimento punk um meio para extravasar através da música o misto de descontentamento e revolta contra o sistema vigente.

João Ribas, ainda na época em que frequentava aulas de equitação, antes dos anos de rebeldia e arte no punk. Foto: Reprodução de Um punk chamado Ribas.

“O Ribas lançou-se de cabeça e entregou-se de corpo e alma ao movimento. Foi um dos poucos, senão o único dentre nós a não ter um trabalho formal, de fazer parte do sistema, mas viver só de música. Pelo que sei, trabalhou apenas um turno no escritório da família, foi almoçar e não voltou”, conta Billy.

Essa vontade em não ceder ao “sistema vigente” seria responsável por João Ribas se ter especializado em formar bandas em série, os Ku de Judas, os Censurados e os Tara Perdida, todas imediatamente com o estatuto de icónicas. “O Ribas não podia parar de tocar e nós de ir ter com a música dele nos concertos, curiosos em saber o que o Ribas estava a fazer.”

Ao contrário do amigo, Billy não conseguiu manter-se afastado do sistema. Viveu de alguns biscates até encontrar um “trabalho formal” online. Pelo menos, diz, “não precisa de vender e participar do capitalismo.” O mesmo capitalismo a que resiste em aderir até nos hábitos mais triviais, como em nunca ter dado um único golo numa Coca Cola ou uma trinca num Big Mac

É na pick up, porém, que Billy se sente realizado, a abrir os concertos de bandas históricas e ainda na estrada, como os Peste & Sida, Dalai Lume e os já citados Censurados e Tara Perdida. Num circuito que continua ativo, mesmo que ainda maioritariamente pautado pelos históricos nomes que circulavam pelos áureos anos da Alvalade punk.

Foi na pick up que Billy participou do punk-nik organizado pelo projeto Vidas e Memórias de Bairro, da Câmara de Lisboa, que ainda colheu o depoimento dos integrantes do movimento punk, no registo desse importante capítulo da história lisboeta – como o fez com Leonoreta, a Mulher da Boina, e as lojas históricas das avenidas de Roma e da Igreja

O jardim que era o quartel-general do punk

Cristina Carrilho e André Cruz são um casal que o punk uniu. Ela, uma antiga fã e atual produtora do festival punk Vai D’Embute e ele, roadie de bandas históricas. Pelo que viram e viveram, são privilegiadas testemunhas de uma época.

“Isso aqui em nada lembra o jardim dos tempos dos punks”, constata André, mini na mão, o olhar a vaguear pelo relvado onde crianças correm atrás de cães.

Cristina e André, uma história unida pelo punk: testemunhas de uma cena que marcou a cultura pop em Lisboa. Foto: Rita Ansone.

Segundo André, nos anos 80 e 90 o jardim era uma espécie de quartel-general, cercado por um grande arbusto, um café e o próprio palacete, onde os punks poderiam encontrar-se longe dos olhos dos moradores e da polícia, atenta aos conhecidos hábitos de consumo dos jovens de cabelos estranhos, que passava não só por muito álcool, mas também por outras substâncias.

“Certo dia, um polícia que nos observava caiu daquela árvore”, diverte-se André ao lembrar da cena. “O jardim era um lugar mágico, onde a malta jovem vinha para ouvir música, e também para consumir álcool e droga, o que não é novidade para ninguém. Uma malta pacifista e com vontade de ser livre, seguir as próprias ideias”.

Às vezes, porém, as ideias próprias dos punks levavam a atitudes não tão pacifistas. André recorda-se da inauguração do McDonald’s na rotunda entre a Av. da Igreja e a Av. de Roma que acarretou numa série de protestos dos Punks de Alvalade.

“Ficamos furiosos. Aquilo era uma ameaça ao comércio local e resistimos com pequenos protestos, mas que às vezes subiam o tom. Havia rápidas incursões para sabotar a limpeza da casa de banho ou para atirar à distância algo dentro da máquina de preparo das batatas fritas”, lembra-se André.

Em 2018, o antigo jardim sofreu uma intervenção e foi abaixo o restaurante onde os punks compravam bebidas e recebiam atenção especial dos proprietários. Surgiram um quiosque e brinquedos infantis, num espaço agora open space e pet friendly

A única menção aos Punks de Alvalade é o mural em homenagem a João Ribas, que desde 2014 batiza o jardim. 

“O Ribas mais do que merece. Era mesmo punk. Foi punk na juventude e, adulto, continuou ainda pior. Vivia da música, mas quando a coisa apertava, desenrascava-se conseguindo alguma coisa para vender na Feira da Ladra. Vendia de tudo, menos a avó”, recorda-se André.

André lembra-se ainda das tardes na Triunfante de Alvalade, um pequeno snack bar na rua Marquesa de Alorna ainda em atividade, onde o proprietário, o senhor Antunes, apesar da conhecida sisudez, dava abrigo aos jovens rebeldes do bairro, servindo bifanas por conta e fechando os olhos aos eventuais furtos de garrafas de rum expostas nas prateleiras.

A Triunfante de Alvalade, um dos poucos points do movimento punk ainda em atividade em Alvalade. Foto: Rita Carmo.

Em 2019, na partida do velho companheiro, os punks voltaram à Triunfante para uma despedida.

“Nesta altura houve um jantar na Triunfante de Alvalade, antes de seguirmos para um concerto no Popular de Alvalade, com um pequeno grupo, onde a música dedicada ao senhor Antunes foi tocada pelo autor e escritor da mesma, Covas Frazão, para os presentes mas em especial para a sua filha e genro”, lembra Cristina Carrilho.

Uma música composta especialmente em memória do antigo proprietário e cujo refrão advertia: Com o senhor Antunes, tu não abuses!”.

Ao contrário da Triunfante, outros tradicionais pontos de encontro dos punks já não existem, como a cervejaria Nova América, em Entrecampos e, um pouco mais acima, no bairro do Rego e já fora dos limites de Alvalade, o Rock Rendez-Vous, o palco favorito dos concertos das bandas que surgiam, onde era possível dar de cara com os punks, entre eles o João Ribas.

João Ribas que fez do próprio quarto, no rés-do-chão do número 96 da avenida de Roma, o maior ponto de encontro de todos. Os poucos metros-quadrados foram convertidos não só um espaço de convivência mas num verdadeiro estúdio, onde as bandas ensaiavam, com a bênção da mãe do músico, dona Constança, considerada também a “mãe” dos Punks de Alvalade.

O famoso “Quarto do Ribas”, ponto de encontro de várias gerações do movimento punk de Lisboa. Foto: Reprodução de Um punk chamado Ribas.

O “Quarto do Ribas” e a mãe dele, dona Constança, ocupam um lugar de destaque no documentário Um punk chamado Ribas (2020), do realizador Paulo Antunes, talvez o maior registo da história do músico e do cenário punk em Alvalade, construído através do testemunho de parentes, amigos e especialistas que acompanharam a história sob diferentes perspectivas.

No documentário, há testemunhos hilariantes, como dos vizinhos que todos os fins de tarde, quando João e companhia costumavam ensaiar, voluntariamente deixavam o prédio para dar uma volta ou tomar um café, à espera do fim do ensaio. Ou ainda de um grupo de vizinhos que até tentou queixar-se à dona Constança, mas foram dissuadidos pelos próprios filhos, fãs da banda.

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Trailler do documentário Um punk chamado João Ribas.

O documentário é um registo importante também por trazer imagens do mítico Quarto do Ribas, algumas delas nos tempos em que o inquilino ainda o habitava, outras recentes. Parte das entrevistas foi ali, no quarto que permaneceu intocado, como sempre foi, até há pouquíssimo tempo, quando a casa deixou de estar nas mãos da família. 

Ferida aberta curada nos palcos

Um das várias vozes no documentário é a do guitarrista Rui Costa, o Ruka, fundador e atual voz também ouvida nos concertos dos Tara Perdida, a última banda de João Ribas, que apesar do vendaval da perda do seu frontman, sobreviveu às tormentas e conseguiu reinventar-se, seguindo como um dos nomes incontornáveis na história do punk em Portugal.

“Não fosse a dona Constança, a história do punk em Alvalade seria diferente. Ela dava todo apoio ao Ribas e também acolhia os amigos deles. O próprio Ribas dizia que nós podíamos ir lá tocar, mesmo quando ele não estivesse em casa”, conta Ruka. 

Rukka à frente dos Tara Perdida, no ensaio realizado nas ruas de Alvalade, “casa e mãe” do movimento punk em Lisboa. Foto: Rita Carmo.

O novo vocalista dos Tara Perdida assumiu o posto em 2023, após uma breve passagem de outro músico, Tiago Afonso, que sofreu alguma resistência dos fãs. “O Tiago foi um guerreiro, deu os peitos às balas num momento difícil, com a perda do Ribas ainda muito recente, o que acabou por pesar na situação.”

Ainda com o Tiago Afonso à frente, os Tara Perdida gravaram Luto (2015), o primeiro álbum sem João Ribas, seguido de Metamorfose (2016) e Reza (2019).

“O desaparecimento do Ribas ainda é e sempre será uma ferida aberta para o resto de nossas vidas. Mas é preciso seguir em diante, pelos nossos fãs e também por ele”, diz Ruka.

João Ribas nos primeiros anos dos Tara Perdida: desaparecimento é uma ferida que continua aberta. Foto: Arquivo Tara Perdida.

Os fãs podem curtir a nova digressão dos Tara Perdida, com direito um concerto-tributo no Stereogun, em Leiria, no dia 23, um quando se assinala os dez anos de morte de João Ribas.

Alvalade, personagem punk

Quem também tem sido homenageado pela banda é o bairro de Alvalade, o título da única canção inédita do novo trabalho, Vida Punk, lançado em março, o décimo álbum já com Ruka também agora na pele da nova cara – e voz – da formação. 

“Fizemos uma sessão de fotos em Alvalade para lançar essa nova fase e quando vi o resultado, com o bairro como cenário, só me vinha à cabeça as palavras casa e mãe. Veio daí a ideia de homenagear a nossa casa que é também a nossa mãe”, diz Ruka.

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O novo trabalho dos Tara Perdida, Bairro de Alvalade, homenageia o lar do movimento punk.

Uma casa e uma mãe que em breve vai homenagear o mais punk dos seus filhos com uma rua. Em dezembro do ano passado, a Comissão Municipal de Toponímia da Câmara de Lisboa atribuiu o nome de João Ribas à antiga Rua C, no Bairro de São João de Brito, no norte do bairro.

“A vida e a carreira de João Ribas estiveram profundamente ligadas a Alvalade, onde afirmou o punk em Portugal nos anos 1980 e 90, contribuindo para dar ao bairro a alcunha de a capital da capital. A decisão permite a gerações futuras de conhecer e valorizar o nosso património cultural e preservar a sua herança”, justifica a decisão pela alteração do nome, o vereador Diogo Moura.

A alteração ainda não tem data para ocorrer, mas em breve será possível voltar a encontrar João Ribas pelo bairro onde viveu e cantou.

Até lá, um pouco da Alvalade punk segue presente em alguns dos seus cenários e nas lembranças de quem fez da rebeldia história.


Álvaro Filho

Jornalista e escritor brasileiro, 50 anos, há sete em Lisboa. Foi repórter, colunista e editor no Jornal do Commercio, correspondente da Folha de S. Paulo, comentador desportivo no SporTV e na rádio CBN, além de escrever para O Corvo e o Diário de Notícias. Cobriu Mundiais, Olimpíadas, eleições, protestos – num projeto de “mobile journalism” chamado Repórtatil – e, agora, chegou a vez de cobrir e, principalmente, descobrir Lisboa.

alvaro@amensagem.pt


Álvaro Filho

Jornalista e escritor brasileiro, 50 anos, há sete em Lisboa. Foi repórter, colunista e editor no Jornal do Commercio, correspondente da Folha de S. Paulo, comentador desportivo no SporTV e na rádio CBN, além de escrever para O Corvo e o Diário de Notícias. Cobriu Mundiais, Olimpíadas, eleições, protestos – num projeto de “mobile journalism” chamado Repórtatil – e, agora, chegou a vez de cobrir e, principalmente, descobrir Lisboa.

alvaro@amensagem.pt

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3 Comentários

  1. Bravo! Excelente iniciativa! Se precisarem de ajuda, pf, contactem-me. Estarei à vossa disposição.

  2. Espectacular o comentário sobre o punk e João Ribas.Conheci o João no gingao, muito boas noites a beber pontapé na cona,desviamos ao caos do Sodré. Sou da margem sul não só fâ de censurados e ku de judas mas de metal industrial,folk metal.Os sábados a famosa feira da ladra e a compra dos CD.tempos muito bons

  3. Obrigado Mensagem. Excelente artigo, excelente conteúdo. O Ribas é eterno e toda a gente em Alvalade gostava (gosta!) dele. O seu legado é muito maior do que a maioria das pessoas pensam. Punk que nasce torto nunca se endireita…. Alvalade até morrer.

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