As avenidas de Roma e da Igreja não só cortam as latitudes e longitudes de Alvalade, mas também têm atravessado a história de vida de muitos dos moradores e frequentadores do bairro. Memórias que agora são reveladas na exposição fotográfica Avenidas da Memória, sob a tutela do Movimento de Expressão Fotográfica (MEF).

Estiveram sob a mira das lentes fotográficas sítios históricos das duas avenidas, como o café Vá-Vá, as pastelarias Dâmaso e Jacaré Paguá e o restaurante Tatu, além de outros estabelecimentos, lojas de roupa, papelarias e tabacarias, num roteiro escolhido pelos próprios moradores.

A incursão pela memória do bairro resultou em 161 imagens.

Esses interessantes e originais registos, realizados por oito vizinhos de Alvalade e cinco fotógrafos profissionais do MEF, podem ser contemplados até ao dia 24 de fevereiro em dois espaços, cada um deles também vizinho das avenidas fotografadas, a Livraria Barata e a Biblioteca dos Coruchéus.

A curadora Elisabete Santa-Bárbara rodeada de parte da equipa de vizinhos-fotógrafos de Alvalade. Foto: Rita Ansone.

Em busca das memórias de Lisboa

A exposição Avenidas da Memória é um desdobramento do projeto Memórias do Bairro de Alvalade, conduzido pela Biblioteca dos Coruchéus e que já rendeu diversos projetos interessantes sobre a vida do bairro, entre eles o que cobriu a biografia dos escritores, escritoras e poetas que dão nome às várias ruas de Alvalade.

Coordenadora das atividades de resgate da memória dos moradores nos Coruchéus e co-curadora da exposição, Elisabete Santa-Bárbara conta que o caminho até ao produto final consumiu nove meses de trabalho, entre abril e dezembro do ano passado, e percorreu atividades como oficinas de fotografias, trabalho de campo e a seleção das imagens.

A fotógrafa Tania Araújo, responsável pelas oficinas e orientações aos vizinhos: experiência enriquecedora. Foto: Rita Ansone.

“Os moradores envolveram-se em todo o processo, como a escolha do território a ser abordado, no caso as avenidas de Roma e da Igreja. Também obviamente participaram nas oficinas de fotografia conduzidas pelo MEF e ainda orientaram os fotógrafos profissionais que participaram na exposição sobre o que deveria ser registado nos sítios escolhidos”, diz.

Ator crucial na realização da exposição, foi do Movimento de Expressão Fotográfica que partiu o convite à biblioteca dos Coruchéus para fazer parte do projeto, financiado pela Divisão de Ação Cultural da Câmara de Lisboa, através da iniciativa Lugar de Cultura. 

Biblioteca dos Coruchéus tem realizado atividades constantes. Foto: Rita Ansone.

Fotógrafa do MEF e também co-curadora do projeto, Tânia Araújo explica que iniciativas semelhantes, de resgate da identidade e da memória dos bairros através da experiência dos seus moradores, haviam sido realizadas anteriormente em Marvila e Carnide.

“Cada bairro e cada grupo de moradores é uma experiência diferente, que nos exige adaptações no processo. Em Alvalade, encontramos um grupo muito mais maduro, muitos dispostos a usarem o telemóvel, o que acabou por ser uma experiência enriquecedora”, diz Tânia.

Ao todo, entre os participantes do projeto na biblioteca e fotógrafos do MEF, 13 pessoas assinam as fotografias da exposição: Ana Santos, Augusto Silva, Eduarda Colares, Florence Weyne Robert, Fernanda Santos, Maria da Luz Farinha Lopes, Sílvia Neves e José Paulo são os moradores de Alvalade, e Maria Alice, Sílvia Pessoa, Rogério Silva, Tânia Araújo e Luís Rocha contribuíram pelo MEF.

A Mensagem conversou com alguns dos moradores que aceitaram o desafio de, mesmo sem serem fotógrafos profissionais, registarem as memórias que guardam de uma vida vivida entre as duas mais importantes avenidas de Alvalade.

Maria Eduarda e a sua “segunda casa”: o Vá-Vá

Maria Eduarda Colares ergue-se com dificuldade, mas caminha com passos firmes para posar ao lado das fotografias do Café Vá-Vá, expostas na Livraria Barata.

“Durante muito tempo, foi a minha segunda casa”, conta Maria Eduarda, sobre os “tantos” dos seus 79 anos que viveu por entre as mesas do mítico café, na esquina das avenidas de Roma e dos Estados Unidos da América.

Maria Eduarda Colares e os registos de um lugar que frequentou diariamente durante anos, o Vá-Vá. Foto: Rita Ansone.

Memórias em grande parte divididas com o marido, o cineasta Lauro António (colaborador da Mensagem), habitués das telúricas noites no Vá-Vá que reuniam artistas, intelectuais e conspiradores, na era de ouro da avenida de Roma, nos anos 1960 e 70.

“Almoçava e jantava lá todos os dias. Quando o meu filho nasceu, praticamente veio da maternidade direto para a mesa do Vá-Vá”, recorda-se.

Foi o fervilhante Vá-Vá dos anos 1960 e 70 das suas memórias que a antiga publicitária quis registar. “Não tive a intenção de fotografar o Vá-Vá de hoje, que nada, mas nada mesmo, tem a ver com o Vá-Vá daquela época e talvez os atuais clientes não o reconheçam nas fotografias. Quis captar uma espécie de atmosfera perdida do café daqueles anos, do meu Vá-Vá”, conta. 

Maria Eduarda foi uma das participantes que elegeram o telemóvel como equipamento para as fotografias da exposição, uma oportunidade de revisitar um interesse antigo. “O trabalho com a publicidade ensinou-me a observar as imagens com um outro olhar. Gostei imenso de voltar a visitar e repensar esse olhar de novo”, diz.

Luz e o Frutalmeidas, da inauguração até hoje

O Vá-Vá havia sido o sítio de eleição de Maria Luz Farinha Lopes, ou Luz, como prefere ser chamada. “O mais natural e justo era que a Maria Eduarda fizesse o Vá-Vá”, concorda a professora reformada de inglês da Escola Padre António Vieira, que para a exposição decidiu trocar o calor monocromático do café pelo colorido refrescante dos sumos de um outro resistente da avenida de Roma, o Frutalmeidas.

Luz Farinha Lopes e a sua câmara Leica registaram uma “relação” que já vai na terceira geração. Foto: Rita Ansone.

“Costumava passear com as minhas amigas pela avenida de Roma, do Vá-Vá até a Praça de Londres, e um dia percebemos a movimentação na esquina com a rua Conde de Sabugosa. Ficámos paradas à frente da montra até que um senhor gentilmente nos convidou a entrar e, sem querer, acabei por participar na inauguração do Frutalmeidas”, recorda.

Daquela tarde de janeiro dos anos 1970 até hoje, uma das primeiras clientes do Frutalmeidas continua a frequentá-lo. Apresentou aos amigos o sabor dos sumos de frutas da época e do afamado pastel de massa tenra, que se desmancha na boca. “Agora, é a vez dos netos”, conta, apontando para as imagens que ilustram a presença da terceira geração de clientes na família. 

Nas fotografias expostas na Barata pela professora de 70 anos surge ainda um dos antigos alunos, apanhado no dia do aniversário. A objectiva da câmara Leica que Luz carrega sempre consigo também captaram o letreiro luminoso, numa vista noturna do Frutalmeidas. “Acho a avenida de Roma linda à noite, iluminada”, atesta a fotógrafa, que tem Luz até no nome.

Ana e o Tatu, lembranças do restaurante e do pai

Nas memórias de Ana Santos ainda está fresca a lembrança de ir ao Tatu em criança, a segurar a mão do pai. Eram finais da década de 1950 e o restaurante no limite da avenida da Igreja com o Jardim Mário Soares era um concorrido ponto de encontro dos lisboetas em busca de uma novidade da época: a feijoada brasileira.

Ana Santos realizou um verdadeiro trabalho de arqueologia no seu projeto fotográfico. Foto: Rita Ansone.

“Naquele tempo, quem quisesse comer uma feijoada brasileira em Lisboa obrigatoriamente teria de ir ao Tatu”, recorda Ana Santos, dona de uma privilegiada memória, literalmente fotográfica. “Muito mudou no local, mas ainda há bastante do Tatu original, como a escadaria revestida em madeira que leva ao salão do primeiro andar, esse praticamente o mesmo do início”, atesta. 

Num trabalho arqueológico, Ana encontrou no depósito do restaurante o antigo mural de azulejos que adornava a escadaria, protagonizado por um vistoso tatu, substituído por outro. “Esse anterior é bem mais bonito do que o lá está agora”, opina.

Ao contrário da vizinha Luz Farinha com o Frutalmeidas, Ana Santos já não frequenta o objeto fotográfico. Prefere guardar, como Eduarda Colares, as imagens de um Tatu que já não existe, frequentado pelo pai.

Desse passado, Ana Santos contribuiu para a memorabilia da exposição na biblioteca dos Coruchéus com uma coleção de copos ilustrando um tatu estampado, objetos que pertenceram ao pai, uma relíquia até para os frequentadores mais frequentes. “Nem a atual proprietária sabia que o Tatu chegou a ter uma coleção de copos”, diverte-se.

As várias memórias de Fernanda

Ao contrário de algumas das colegas de exposição, que pelo menos alguma vez na vida tiveram contacto com a fotografia, Fernanda Santos praticamente estreou-se aos 75 anos com uma câmara em punho. “Só tirava aquelas fotos bem simples dos netos no telemóvel”, confessa a participante com o maior número de memórias expostas.

Fernanda Santos, embora só agora se tenha estreado como fotógrafa, é quem mais registos tem na exposição. Foto: Rita Ansone.

A fotógrafa debutante teve fôlego para cobrir as duas avenidas contempladas na exposição e as suas fotografias podem ser vistas tanto na Barata como nos Coruchéus. 

Na avenida de Roma, Fernanda fotografou a pastelaria Jacaré Paguá e a loja de roupas Casa Plácido. “A pastelaria Jacaré Paguá para mim tem o espírito de Alvalade, ainda bem típica, frequentada pela manhã por estudantes e professores, à tarde pelas mulheres com seus cãezinhos e à noite pelas avós que vão comprar sopa para os netos. Uma delas, sou eu”, diz.

Já na avenida da Igreja, estiveram na mira da objetiva de Fernanda a pastelaria Pomodoro, onde antes funcionava o atelier da estilista Ana Salazar, além do único engraxador de rua ainda em atividade em Alvalade, cujo ponto se situa esquina com a rua Marquesa de Alorna. Esquina que Fernanda ainda dobrou para fotografar a Papelaria Santo António.

“Sempre gostei muito de fotografia, mas via isso com o olhar de  uma perfeita leiga no assunto. Tanto que temi não cumprir o objetivo da exposição”, diz Fernanda.

Sílvia e as memórias de quem nasceu no bairro

Sílvia Neves não teve tempo de frequentar as oficinas ministradas pelo Movimento de Expressão Fotográfica, mas isso não a impediu de eternizar as suas memórias em imagens. Com a ajuda dos profissionais do MEF e de uma amiga, registou dois históricos da avenida de Roma, a pastelaria Dâmaso e, a poucos metros de distância, a Tabacaria e Papelaria Aquário.

Sílvia Neves nasceu em Alvalade e contou com a ajuda de uma amiga e de fotógrafos para registar as suas memórias. Foto: Rita Ansone.

Aos 69 anos, nascida em Alvalade, Sílvia lembra-se quando a pastelaria Dâmaso ainda era uma leitaria. “Antes das grandes superfícies, quem supria os moradores dos bairros eram as leitarias, a venderem obviamente leite, mas também pães, queijos e outros frios”, explica, a respeito do estabelecimento, na esquina com a avenida Estados Unidos da América.

Para fotografar a papelaria, Sílvia recorreu à amiga Fernanda Santos, aquela que nunca havia fotografado antes, mas que acabou por sem quem mais fotografias tirou para a exposição. Mais um na conta dela, portanto. “Sempre achei interessante a Aquário, comercializando tabaco, jornais e revistas, mas também têxteis orientais, objetos de culto e outros artigos curiosos”, explica Sílvia.


Álvaro Filho

Jornalista e escritor brasileiro, 50 anos, há sete em Lisboa. Foi repórter, colunista e editor no Jornal do Commercio, correspondente da Folha de S. Paulo, comentador desportivo no SporTV e na rádio CBN, além de escrever para O Corvo e o Diário de Notícias. Cobriu Mundiais, Olimpíadas, eleições, protestos – num projeto de “mobile journalism” chamado Repórtatil – e, agora, chegou a vez de cobrir e, principalmente, descobrir Lisboa.

alvaro@amensagem.pt

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4 Comentários

  1. Fui trabalhar para o Lab.Ulyssea Filme,em Alvalade em 1960,lab.onde nasceu o chamado”Cinema Novo Português”e fui morar para a Av.de Roma em 1963,dai a minha grande ligação ao Va Vá e aos cinéastas com quem trabalhei.fui á inauguração dos Cinemas Alvalade e Roma, participei em 1958 numa peça de teatro encenada por Couto Viana na Escola Eugénio dos Santos e mais todos os locais mencionados aqui por outros, o meu filho nasceu em Alvalade e foi aqui que estudou atê ao 12°etc etc.
    A Silvia tinha me falado nas entrevistas mas vim a saber que houve”uma força negativa” que empediu que se realizasse,não faz mal eu sempre no cinema trabalhei atrás das câmaras e não necessito de holofotes.

  2. Saudades do “Vavadiando” do Lauro e da Eduarda! Um abraço a todos quantos por lá passaram comigo e com o meu querido Eurico! Dalila d’ Alte Rodrigues

  3. Olá Teresa!
    O projecto Vidas e Memórias de Bairro de Alvalade é um projeto de continuidade e aberto à participação de todos os interessados nas memórias de Alvalade.
    Ainda não tivemos oportunidade de realizar todas as entrevistas. Prevemos o seu recomeço no próximo mês de Abril e contamos com o teu contributo nos moldes a combinar.
    Até breve,
    Sílvia Neves

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