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São 6h20. Do topo do Parque Eduardo VII, vemos que o sol nasce tímido, ainda à procura dos calcanhares de bronze de Marquês de Pombal. Os nossos calcanhares calçam ténis de corrida. Neste dia, fui companheira de treino de Pedro Sobral, na medida que o fôlego permitisse. É na madrugada de todos os dias que encontramos o diretor da LEYA e presidente da Associação Portuguesa de Editores e Livreiros (APEL), a correr por esta Lisboa fora. Ele que não termina um sprint sem registar uma imagem da cidade dele.
Os dias que se hão de seguir são de outras corridas: estamos a pouco tempo do arranque da 93.ª Feira do Livro de Lisboa.

6h30: Pedro já traz nas pernas o ritmo de dois quilómetros cumpridos desde Campo de Ourique. Faltarão dez, diz. Descemos as ruas largas do Parque e notamos como estão ainda vazias. Ninguém diria que estão prestes a encher-se de estantes e de livros, de editores e escritores. Uma feira que reuniu mais de 750 mil visitantes na última edição, num encontro de leitores, curiosos e turistas ocasionais.
Arrancamos Lisboa fora, e, no meio da corrida, procuramos fôlego para falar da relação entre a literatura e os portugueses. E o que anda o TikTok a fazer por isso.
Uma fotografia por dia, na paisagem mais marcante da corrida. O que é que estas corridas matinais trouxeram de novo?
Costumo correr muito junto ao rio – passo pelo Cais do Sodré, Alcântara, Belém, e uma das coisas que mais observo é aquele limbo: entre a Lisboa que está a ir para a cama e a Lisboa que está a acordar – mães que saem de casa cedíssimo, com a criança às costas ainda de pijama. Muitos políticos deviam sentar-se a beber um café a essa hora e perceber o que é o país real. Vejo essa Lisboa e vejo as paisagens que tem – tenho apenas algumas horas para aproveitar até estar tudo cheio de autocarros, tuktuks, turistas.
Uma coisa que as corridas me trouxeram foi o áudio-livro. Já leio muito no digital, mas nas corridas e viagens prefiro ouvir os livros em áudio. O último que ouvi foi “A Gorda”, de Isabela Figueiredo, e demorei nove corridas a terminá-lo. Alguns livros podem chegar a 50, 60 horas e muitos são narrados pelo próprio escritor.
O livro digital ainda não tem muita adesão. O áudio pode vir a tornar-se tendência? O aumento de podcasts narrativos pode ajudar na transição…
Algumas pessoas começam pelos podcasts e depois vão migrando para os áudio-livros. Mas também vemos uma conversão significativa para o formato impresso: a LEYA tem súmulas de ensaios feitas por jornalistas, que também fazem uma recensão crítica, como antes se fazia a crítica literária nos jornais, e cerca de 90% das pessoas que ouvem as súmulas também compram o livro.
Permanece aí a valorização do livro como um objeto de grande importância, mais tradicional. Os editores em Portugal também têm um olhar tradicional?
As editoras vão evoluindo e a diversidade é uma luta minha e da APEL. Acho importante apostar em nichos, vários géneros literários, mesmo sabendo que há autores que chegam a cinco e outros que chegam a cinco milhões – é um ecossistema que tem de ser salvaguardado. Há editoras com um ADN muito vincado, como a Dom Quixote, que o tem desde a Snu Abecassis, mas que se foi adaptando. Também há editores mais académicos, há editores que seguem o cânone. Mas eu suspeito de cânones – mais cedo ou mais tarde, levam-nos a comportamentos totalitários. O valor último que a sociedade deve defender é a liberdade individual e para mim a Literatura não é o que foi definido, a Literatura é o livro que me inquieta, aquele que me leva a questionar.
É esse questionamento dos cânones que também se vê nos leitores agora?
Como existem editoras mais clássicas, existem outras que não o são: a Antígona, a Relógio d’Água, a própria CAMINHO. Como disse Francisco José Viegas sobre esta polémica da sensibilidade e concordo: “Cada editor terá a sua”. Já li muitos livros que me ofenderam, mas não me passa pela cabeça querer proibir essas leituras, nem pedir que sejam reescritos. Se a diversidade desaparece, a democracia estará em perigo. Não é por acaso que a primeira decisão dos regimes totalitários quando chegam ao poder é queimar livros e fechar bibliotecas, espaços de liberdade.

2022 foi o ano em que os portugueses gastaram mais dinheiro em livros, desde 2006. O crescimento do mercado e o fenómeno dos jovens no TikTok, com o nicho do #BookTok, sobem as expetativas para a edição da Feira deste ano?

A edição de 2022 já recebeu muito mais jovens. Foi uma geração que sentiu um excesso do digital durante o confinamento e agarrou-se aos livros quando saiu. Agora, vemos que o mercado está a crescer a dois dígitos e que o fenómeno do TikTok está a ganhar força. Parece haver uma tendência para a acumulação.
Vemos na Feira quantos fazem “Torres de Livros”. As trends, os best-sellers, existem em todas as gerações, mesmo que não voltem a ser lembrados mais tarde. Mas quero acreditar que na geração TikTok também há jovens que falam das suas leituras, dos seus autores preferidos, e que formam realmente uma comunidade à volta dos livros. Talvez sejam como os 20% que, na minha altura, liam a crítica do Expresso e do Público, ou o suplemento do DN. Formou-se aí uma geração de leitores. Na próxima geração, se não for o TikTok, é outra plataforma.
E podem eles estar a abrir caminho para a mudança? Um inquérito de 2022 dava conta que os jovens, que são quem mais lê para estudar, são quem menos retira prazer da leitura. A escola tem aqui uma oportunidade para se adaptar?
Embora haja sempre uma fase da adolescência em que o volume de livros é muito menor… O sistema educacional português perpetuou muito a ideia da leitura como um mal necessário. Os jovens podem até ter algum espírito de abertura e acaba ali, na escola. Acho que aprendi mais de História a uma certa altura nos livros do Astérix do que propriamente nas aulas. Os hábitos de leitura vão evoluindo e as estratégias também deviam evoluir. O governo norueguês, obviamente num contexto muito mais confortável economicamente, compra 1500 exemplares de cada livro infantil editado na Noruega e distribui por bibliotecas e escolas. Ora, isto ajuda muito a edição infanto-juvenil de qualidade.

E em Portugal não há esse nem outro tipo de investimento?
Cá, o discurso é quase sempre o mesmo: “Se as pessoas não têm o que comer, se vivem aflitas, não vão gastar dinheiro em livros”. O livro é visto como um artigo de luxo, algo elitista. A APEL tem insistido muito no refinanciamento das bibliotecas públicas, que têm neste momento estruturas físicas brutais, mas depois falta-lhes o essencial: os livros. Dizem que “precisamos de um Portugal mais desenvolvido, para que as pessoas tenham mais dinheiro para ler”, mas é este tipo de apoios que permite o acesso ao livro, independentemente da situação económica das famílias. É apostando na leitura que a sociedade ganha ferramentas para se desenvolver.
Nos últimos anos não se deu nenhum passo nesse sentido?
O investimento nas bibliotecas tem sido em cimento. Há uma tendência muito portuguesa de achar que o trabalho de um mandato só está feito se houver betão. A biblioteca Gulbenkian, que alfabetizou tanta gente, era uma carrinha, conduzida por bibliotecários com uma paixão pelo livro. Andavam pelas terriolas a formar gerações de leitores – alguns deles tornaram-se grandes escritores, como o Fernando Namora. Mas um político não deixa obra se comprar 30 mil livros. Onde é que vai meter a placa?

Estamos longe de dar esse salto, de ver o livro como um bem essencial e não de luxo?
Muito longe. Não vislumbro, nem vislumbrei no último Orçamento de Estado um reforço significativo para essas verbas. E se olharmos para os fundos do PRR para a Cultura, a esmagadora maioria é para aplicar em betão – para reabilitação de património. Não é que seja desnecessário, mas perdemos uma oportunidade de conseguir resolver isto.
A APEL apresentou a medida do cheque-livro (a ser negociada com o ministério da Cultura), para derrubar esta perceção de que o livro é caro – se o Estado puder oferecer um cheque de 100 euros a cada jovem que faça 18 anos, mitigamos algumas barreiras. Há exemplos em Espanha e em França. O apoio francês é de 300 euros e 67% é usado em livros.
O contacto com os livros, desde muito cedo, é fundamental para construir uma sociedade moderada, capaz e livre. A leitura, para mim, sempre foi uma ferramenta de crescimento, de conhecimento. Mas os livros também conseguem ser fortemente inspiradores. Muitos leitores, quando regressam à Feira do Livro na edição seguinte, querem contar como determinado livro lhes mudou a vida, como dada história lhes ajudou ou fez apaixonar pela leitura.
A Feira do Livro ajuda nessa aproximação à leitura por colocá-los frente a frente com os autores?
É o momento preferido para isso. Os lançamentos de livros ainda são muito cerimonialistas. Nesta edição da Feira, vamos reforçar a aposta nos escritores internacionais: vamos ter uma autora muito conhecida por quem cresceu com a saga Harry Potter. Uma das atrizes, Evanna Lynch, que publicou recentemente um livro de memórias.
Nem todos visitam a Feira com o propósito de comprar um livro, mas muitos acabam por tropeçar num título ou noutro. E não podemos esquecer-nos que a Feira, para além de ser ao ar livre, também é convidativa por se realizar num autêntico postal da cidade de Lisboa.
Um postal que a APEL coleciona todos os anos. E que Pedro Sobral junta aos postais que fotografa nas suas corridas matinais:









A Feira do Livro continua a abrir portas ao pensamento livre, à curiosidade e ao prazer da leitura e do conhecimento. No meio da massa crítica que vai crescendo, poderá estar a formar-se “uma faixa de leitores que pode levar isto para a frente”.
E para a APEL, e para o próprio Pedro Sobral, ainda há muito caminho por fazer. Mas, pelo menos por hoje, a corrida já está feita.

Inês Leote
Nasceu em Lisboa, mas regressou ao Algarve aos seis dias de idade e só se deu à cidade que a apaixona 18 anos depois para estudar. Agora tem 21, gosta de fotografar pessoas e emoções e as ruas são o seu conforto, principalmente as da Lisboa que sempre quis sua. Não vê a fotografia sem a palavra e não se vê sem as duas. Agora, está a fazer um estágio de fotografia na Mensagem de Lisboa.

O jornalismo que a Mensagem de Lisboa faz dantes pagava-se com anúncios e venda de jornais. Esses tempos acabaram – hoje são apenas o negócio das grandes plataformas. O jornalismo, hoje, é uma questão de serviço e de comunidade. Se gosta do que fazemos na Mensagem, se gosta de fazer parte desta comunidade, ajude-nos a crescer, ir para zonas que pouco se conhecem. Por isso, precisamos de si. Junte-se a nós e contribua:
Inês,
Os meus parabéns por esta história, tão agradável de ler. E tão bem escrita, o que somente aumenta o gosto pela leitura. E, como sublinhei num inquérito de opinião sobre a Mensagem, que preenchi esta tarde, o vosso trabalho é altamente enriquecedor!
Cumprimentos,
Alexandre Correia