Siné 25 de Abril

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O golpe de Estado militar, a reação espontânea nas ruas, os cravos, a libertação do presos políticos, a captura dos Pides sem episódios de linchamento, tudo isto foi idílico e apaixonante aos olhos de quem assistiu de fora ao 25 de Abril.

“Turistas revolucionários” chegaram aos magotes, a elite intelectual estrangeira procurava respostas, fez peritagem, antropologia sobre política contemporânea… Jean-Paul Sartre, Simone de Beauvoir e Gabriel García Marquez serão os visitantes mais ilustres.

Mas esta “invasão” aconteceu bastantes meses depois de abril de 74.

Poucos se arriscaram a aparecer aqui, no imediato e no pleno do acontecimento. Excepto Maurice Sinet, (Paris, 31.12. 1928 – 5.5.2016) cartunista político que assinava Siné e que já na época era considerado como um dos mais mordazes desenhadores satíricos franceses, com passagem atribulada nos jornais France Dimanche L’Éxpress, que já havia fundado L’Énragé (O Enfurecido) publicação assumidamente anarquista, plena de desenhadores e cuja equipa vai participar na fundação um dos projectos editoriais mais marcante da sua época: o jornal satírico Hara-Kiri, o embrião da Charlie Hebdo.

Uns anos antes, entre 62 e 63, Siné havia-se notabilizado com Siné Massacre um semanário praticamente escrito e desenhado a uma só mão, quase monofocal nos alvos a atingir: De Gaule, a Guerra na Argélia e o Colonialismo Francês.

Céptico, como todos os refractários, Siné quis ver com os próprios olhos a revolução em Portugal. Aos últimos dias de abril de 1974 decide fazer un tour au Portugal para, e segundo as suas próprias palavras, respirar um ar despoluído para recuperar o fôlego, engolir a plenos plumões o ar da Liberdade.

Assim que chega a Lisboa, começa, não a desenhar o que vê na rua, mas sim o que sente, nas entrelinhas das emoções ao rubro.  E anota impressões, como este texto ao estilo promessa de amor, cheiro de ébrias reticências (como podemos imaginar em todas as cartas de amor):

“Não imaginava, na semana passada, que fosse encontrar um Portugal livre… Não acredito, aliás, ainda nem acredito, no entanto… tocado pela estupefação, pela alegria, mas também pela incredulidade, vivo como num sonho… mas num sonho que é realidade! É preciso, absolutamente, que esta realidade se torne sonho, quero dizer… socialista! Mais do que qualquer outro país do mundo, vocês bem o merecem! Nesta luta, de agora em diante, podem contar comigo do vosso lado.

Fraternalmente,

Siné, 3 de maio de 1974” 

Este pensamento delirante, este fogo no olhar, próprio de quem se arrebata na fracção de segundo, acontece aos que são paralisados pelo instante do desejo e Siné estava caidinho pela revolução dos cravos.

Foi no arrebatamento que Siné nos era diferente. Os cartunistas portugueses, agora enfim livres para se poderem expressar e deitar tudo cá para fora, acusavam ainda entorpecimento, de tanto terem vivido na escuridão estava demorada ainda a habituação à luz.

A maior parte dos cartunistas nacionais estavam vinculados a velhas regras que custavam a descolar-se, como seria o caso de José de Lemos, do Diário Popular, que segundo o ensaísta e designer Jorge Silva, não se deixava “contagiar pelo entusiasmo do 25 de Abril (…) dedicando-se a explorar as inquietações do cidadão comum que tem agora o futuro nas mãos, mas gere a tarefa com a bonomia de sempre.” (josé de lemos- ilustração e cartoon, Arranha-céus, 2022).

As grandes excepções estavam a afinar o lápis e a pontaria, pouco faltava para se conhecer a produção frenética de cartazes revolucionários de um Sebastião Rodrigues, e todo um genial universo gráfico de um João Abel Manta.

É neste cenário e, julgo que a convite dos jornalista Fernando Assis Pacheco e Raul Rêgo, que o parisiense Siné encontra oportunidade para a publicação na República, com honras de 1ª página, e capa de suplemento, a 11 maio. 

As honras, eram mais que mimos. A República anunciava assim (o desenho apresentava-se escrito em francês):

“SINÉ COLABORA EM “REPÚBLICA”. Um dos mais famosos desenhadores humorísticos do mundo, o incomparável SINÉ, ofereceu ao nosso jornal alguns desenhos originais sobre o Movimento do 25 de Abril. Aqui se reproduz um desses desenhos. A versão portuguesa do texto é a seguinte: “COMUNICADO – O Dr. Pais da Silva, proprietário, informa que tinha a meias na Reboleiria, um apartamento com amigos da P.I.D.E, que ia com eles à pesca, ao futebol, que viam uns filmes pornográficos, mas que NUNCA fez oficialmente parte da P.I.D.E/D.G.S. Isto está provado mediante um documento emanado pela Junta de Salvação Nacional”.

Também na primeira página do nosso suplemento “Fim de Semana de hoje reproduzimos um outro desenho do nosso amigo SINÉ que não dispensou uma visita a Portugal para “ver a revolução”. 

E no suplemento, a cores, um dos seus desenhos mais emblemáticos: Um soldado sorridente, totalmente camuflado com cravos.

Paralelamente, no mesmo dia, são também publicados outros desenhos na primeira página e nas centrais do jornal satírico Sempre Fixe.

O da capa tornar-se-ia famoso, publicado vezes sem conta, chegando a ser a imagem de genérico do filme documentário “Cravos de Abril” (1976), de Ricardo Costa. Ilustra uma parada patriótica onde um jovem revolucionário rompe e leva com ele a parte vermelha da bandeira.

Nas centrais desse jornal é publicado um texto reproduzido na forma manuscrita, como se um desenho também se tratasse, uma carta escrita em francês e não traduzida.

Nessa carta intitulada “Lettre du Portugal”, um Siné em tom amargo escreve farpas dirigidas a António de Spinola, o nomeado Presidente da Junta de Salvação Nacional, palavras que todos pensavam mas que ninguém se atrevia a subescrever:

Mesmo nas minhas caricaturas mais ferozes, nunca consegui um tão perfeito degenerado sádico assassino! Com Franco na Guerra Civil de Espanha, com Hitler em Estalinegrado, apelidado de “carniceiro” em Angola, estão f****!”

E continuava: “Nas paredes encontro pintado Nem Spinola, Nem Caetano, o Poder ao povo! Vejamos, ninguém, aparte os franceses, ninguém se habitua ao fascismo. Os portugueses são ainda menos politizados  que nós, os sortudos!” E no mesmo tom jocoso terminava convidando os seus políticos, Giscard e Mitterrand a, aproveitando a ocasião, visitarem rapidamente Portugal para respirarem o ar da Liberdade.

Ainda assim, nos desenhos que acompanham esta Lettre du Portugal, Siné consegue ser ainda mais contorcido no significado e de difícil digestão para os estômagos ainda pouco habituados a misturas: a justaposição da ironia com a realidade era nouvelle cuisine para a maior parte dos portugueses…

3 cartunes, 3 murros nos estômagos mais sensíveis. No 1º, um africano chuta o militar (que lembra Spinola) e este chuta um Hitler. No 2º, um africano estropiado cortado pela metade afirma: “Tive a sorte de encontrar militares de esquerda!”.

E um 3º, intitulado “Avant/Après”: mesmo soldadinho que antes enforcava o africano, é o mesmo que depois iça, no mesma forca, a bandeira do comunismo.

Mas de que lado está o gajo? Terão pensado os nossos portugueses durante a embriaguês da revolução. De todos e de nenhuns, diria. Siné era o verdadeiro revolucionário. E assim foi até ao fim da vida.

Foi, passo a expressão infeliz, a primeira vítima da Charlie Hebdo, anos antes do atentado de 7 de janeiro de 2015. A liberdade de expressão da redação onde trabalhou desde o primeiro número não tolerou uma “brincadeira” de Siné, acusando-o de antisemita.

Na recusa em pedir desculpas a Jean Sarkozy – filho mais velho do presidente francês, por ter escrito uma crónica parodiando a possibilidade, afinal nunca concretizada, de o jovem se converter ao judaísmo por casamento e por sucesso social, é sumariamente demitido. Naquela altura nem todos eram CHARLIE e Siné foi parar ao desemprego.

Mas essa é outra história. Esta foi a de um fugaz mas singular revolucionário Grande Alfacinha.

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Nuno Saraiva

Lisboeta empedernido, colaborou praticamente em toda a imprensa nacional. Cartunista político, o seu traço é o traço de Lisboa, é o autor das imagens das Festas de Lisboa de 2014 a 2017, criador dos troféus das marchas, e há 10 dos seus murais nas paredes da cidade. O seu livro Tudo isto é Fado! ganhou o prémio do Festival internacional de BD Amadora. Dá aulas na Lisbon School of Design e na Ar.Co. São dele todos os desenhos na homepage da Mensagem.

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