Decerto não correria grandes riscos se optasse por iniciar a narrativa desta breve reflexão, sobre a situação dos comércios locais, atribuindo uma boa quota-parte da razão do seu declínio ao surgimento das denominadas… “catedrais” de consumo.
Seria quase consensual e a tese que explanaria de seguida seria, tão só, reveladora da lamúria habitual, das lamentações de sempre e do crónico “baixar de braços” de que tantos, erroneamente, acusam os nossos comércios, antes chamados de… tradicionais.
Mas não!
Ao contrário do que se possa julgar, os comércios (leia-se, as lojas) ditos locais e tradicionais estarão assim em acentuado declínio – diria mesmo, apenas em modo de quase provocação, em vias de extinção, porque boa parte deles não souberam, não quiseram ou não conseguiram acompanhar as mudanças do… comércio.
Indo até às suas raízes, o comércio sempre resultou do cruzamento entre a oferta e a procura e só a sua coincidência “faz-acontecer o comércio”.
Tal “filosofia” nada terá de transcendental – a procura tem e sente uma necessidade que pretende ver e sentir satisfeita; e a oferta disponibiliza, mediante pagamento, produto, bem ou serviço capaz de satisfazer essa necessidade. Aquele que compra cumpre o seu desejo e aquele que vende consegue-o também, ou não fosse o principal propósito da sua atividade a venda.
Aqui chegados, poder-se-á perguntar – mas, a ser assim tão simples, como explicar a crise (mais uma, se é que não é sempre a mesma!) do comércio dito tradicional?
À luz do atrás exposto, afigura-se pacífico afirmar que os tempos trouxeram novas vontades, novas necessidades, novos desejos, podendo, então, surgir a constatação de que os comércios, alguns, seguramente demasiados, não acompanharam essas mudanças ou, no mínimo, não souberam interpretá-las.
Mas não!
O comércio não só acompanhou, como, por assim dizer, autorregenerou-se, e através de novos conceitos, novos formatos, novas formas, novos canais, acabou até por “criar novas necessidades” no seio da própria procura.
Foram os comércios, os que já existiam, de menor dimensão, de menor capacidade, com menos argumentos, que não resistiram às novas vontades, muitas delas quase que criadas pelos tais novos “conceitos”.
Julgo que o ponto de viragem ocorre quando começa a surgir um comércio que aposta na criação da sua própria procura, ao invés do comércio que existia para uma procura já existente. Claro que, depois, muitos foram os que se apressaram a chamar-lhe criatividade, inovação, empreendedorismo, fruto daquela necessidade que sempre temos de justificar o desenvolvimento, quando este surge em detrimento do mero crescimento.
Óbvio que, em quase tudo aquilo que é sobre comércio, todos podem e devem opinar, todos terão opinião, quanto mais não seja porque todos, sem exceção, estarão pelo menos de um dos lados da equação.
Todos “somos comércio“, no sentido em que todos somos, pelo menos, compradores e/ou consumidores. Sendo que largos milhares “acumulam os papéis”, pois compram e vendem.
Parece estranho?
Mas não!
De há muito conhecido como ofício, de arte ou ciência, o comércio, terá bem mais do que aquilo que lhe vem sendo reconhecido, não sendo raras as vezes em que todos parecem querer, mesmo sem crer, decidir sobre o mesmo.
A pandemia, tão recentemente, vivenciada por todos, parecia ter sido um dos últimos motes para ter surgido tão grande quantidade de supostos especialistas (ainda que, de qualidade duvidosa) em matérias de comércio, mas o recente fenómeno inflacionista depressa veio desvanecer tal ilusão. Dos horários ideais para se “fazer o comércio” em períodos de confinamento ou de outras restrições impostas, às (re)pensadas e permitidas “vendas ao postigo”, até à, bem mais recente, definição de um cabaz de produtos essenciais não merecedores de ser “brindado” com o tal imposto, que em tempos já foi apelidado de “cego”, tudo tem espoletado um ávido interesse por um maior (não, necessariamente, melhor) conhecimento da atividade do comércio e tudo o que esta envolve e mobiliza.
Os comércios da cidade viram-se, portanto, condicionados pelos efeitos da pandemia, como já se tinham visto limitados pelos impactos da instalação das tais catedrais, dos centros comerciais, das grandes superfícies, como também não tinham ficado alheados aquando do surgimento de dezenas de super e hipermercados um pouco por todo o lado. Em distintos patamares, é certo, cada qual à sua maneira, terá induzido, sempre, algum tipo de… “descomércio”!
Em suma, fosse em tempos idos ou mais recentes, oferta e procura viram-se confrontados com uma realidade desconhecida, experiências novas, que poderíamos identificar pelos “3 C‘s do fazer não-acontecer comércio“, ou seja, condicionalismos, condicionantes e constrangimentos, aos quais acrescentaria um quarto, isto é, a circunstância.
O comércio dito tradicional, local ou de rua, merecerá sempre mais e melhor, também, por parte de quem planeia, organiza e gere a alma das cidades, podendo, para tal, contar sempre com a alma da proximidade dos comércios, circunstância essa tão única e diferenciadora.
Será essa “alma da proximidade” que uma qualquer “catedral” do comércio, alguns hipermercados, vários supermercados, uma pandemia ou várias crises, inclusive, inflacionistas, jamais destronarão.
Certo é que, apesar de pouco ou nada se fazer para deslindar os comércios do futuro, decerto o futuro terá comércio.
* João Barreta é especialista em gestão do território e especialista em Urbanismo Comercial, ex-Diretor Municipal das Atividades Económicas da Câmara Municipal de Lisboa, membro da Direção da extinta-Agência para a promoção da Baixa-Chiado. Foi galardoado com o Prémio Mercúrio 2022 – “O Melhor do Comércio e Serviços”.

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