E se as regras do Alojamento Local (AL) fossem aplicadas ao nível do quarteirão? A provocação é levantada por Manuel Banza, lisboeta e cientista de dados, com um interesse particular pela questão da habitação.

No tempo que tem livre, gosta de pegar nos dados que a cidade lhe oferece e de criar mapas. Em 2021, testava o conceito da cidade dos 15 minutos dentro de várias freguesias de Lisboa. Agora, aborda a pressão turística causada pela concentração de unidades de AL e hotéis em determinadas zonas da cidade e sugere uma abordagem mais fina ao problema.

Sugere que talvez faça sentido impor restrições ao registo de novas unidades de AL em cada quarteirão, em vez de isso fazer-se apenas ao nível da freguesia. Recorde-se que, até ao próximo dia 27 de maio, encontra-se aberto o processo de participação pública para a alteração ao Regulamento Municipal de Alojamento Local.

Atualmente, o registo de unidades de AL é limitado ao nível da freguesia. As freguesias de Lisboa são, contudo, diversas e, para Manuel Banza, a realidade da pressão turística exige “uma análise a uma escala mais granular e que represente melhor as diferentes realidades”.

Umas freguesias são maiores do que outras, umas têm maior densidade populacional do que outras e raramente a pressão do setor do turismo apresenta homogeneidade na sua implantação pelo território – há zonas, avenidas e bairros com mais pressão do que outros, tudo dentro de uma mesma freguesia.

Mapa gerado por Manuel Banza, identificando os quarteirões com mais pressão turística em Lisboa. A verde, a localização de unidades de AL e a azul as unidades hoteleiras da cidade.

Interessado pelo tema do direito à habitação e perante novos dados disponibilizados pelo INE, Manuel deu início à sua análise. Com a ideia de analisar a pressão turística a um nível mais fino do que o possibilitado pelos números que dizem respeito a cada freguesia, pegou nos dados com a referência geográfica de cada unidade de AL, disponibilizados pelo Turismo de Portugal, e em dados provisórios recém publicados, do CENSOS 2021, com o número de fogos habitacionais existentes.

Estes dados são disponibilizados ao nível de uma unidade de medida territorial que, em Lisboa, se assemelha aos quarteirões da cidade. É a Base Geográfica de Referenciação de Informação (BGRI), criada pelo INE em articulação com os municípios do país e existe desde o recenseamento populacional de 2001. A BGRI permite uma maior desagregação geográfica dos territórios e, numa cidade como Lisboa, possibilita uma análise ao nível do quarteirão.

Manuel publicou os seus mapas e a sua mais recente análise poucos dias após a entrada em vigor da suspensão de novos registos de AL por seis meses nas freguesias da cidade em que o número destas unidades turísticas exceda os 2,5% do total de fogos. Entre as 24 freguesias da cidade, 14 excedem os limites estabelecidos. Esta suspensão poderá ainda ser renovada por igual período, até que entrem em vigor as alterações, que agora se debatem, ao Regulamento Municipal do Alojamento Local.

Mapa com pontos de AL (a verde) e peso do setor em cada BGRI face ao número de alojamentos habitacionais clássicos. VER EM ECRÃ INTEIRO

O cientista de dados faz a sua análise enquanto lisboeta interessado e considera que “limitar uma freguesia por inteiro poderá limitar zonas em que não existe pressão [turística] ou procura de alojamento local, bem como o seu contrário”. É por existirem freguesias que não atingem os 2,5% de AL, mas têm, no seu território, determinadas zonas com “uma pressão turística elevada e superior a 2,5%” que considera ser “necessário criar uma ferramenta com mais detalhe e que ajude na tomada de decisões”.

20 187 (licenças de Alojamento Local ativas no concelho)
22 808 (número de quartos em hotéis)

*Dados de abril de 2022

Na sua análise, Manuel dá o exemplo de freguesias como Campolide e Beato. Não foram abrangidas pela suspensão da emissão de licenças, mas têm zonas, dentro dos respetivos territórios, em que o peso do AL, face aos fogos destinados a habitação permanente, é superior a 2,5%.

Por outro lado, freguesias como a Penha de França e Areeiro constam da lista de freguesias que viram ser suspenso o registo de novas unidades de AL, embora apresentem “várias zonas em que não há pressão turística, pois esta está concentrada em zonas específicas da freguesia”, aponta.

Entre 2011 e 2021, a freguesia da Misericórdia perdeu 26% da sua população residente e Santa Maria Maior perdeu 22% dos habitantes. Nesta década, em Santa Maria Maior, freguesia em que a atividade de AL alcançou um peso de 52% face ao alojamento habitacional clássico, o número de alojamentos familiares desceu 18%, tendo passado dos 10555, em 2011, para os 8660, em 2021.

“Continuamos a ter um número elevadíssimo de AL na cidade”

Para se compreender a “apropriação” do setor turístico nos territórios da cidade, Luís Mendes, especialista em estudos urbanos, investigador do Centro de Estudos Geográficos (CEG) da Universidade de Lisboa e membro da Rede (H)abitação, considera necessário olhar para “uma cartografia mais fina do fenómeno”. O geógrafo considerou o trabalho de dados realizado por Manuel Banza “serviço público”, sublinhando que “faz bem pensar em várias escalas”.

Apesar de acreditar na“escala das freguesias para regular as quotas”, Luís considera que, “do ponto de vista da avaliação e da dinâmica mais fina [e] do impacto mais concreto e localizado que o AL tem nos bairros, faz muito sentido ter esta visão de quarteirão”.

Em pleno período de participação pública para a alteração ao regulamento municipal que regula a emissão de licenças de AL no concelho de Lisboa, o investigador na área da habitação e dos fenómenos ligados à pressão do turismo, considera que a análise de Manuel Banza pode “alavancar” uma plataforma, em articulação com o Registo Nacional do Alojamento Local (RNAL), “no sentido de fazer uma cartografia deste género com maior frequência”.

O especialista acredita que uma plataforma capaz de monitorizar a pressão turística ao nível dos quarteirões da cidade (neste caso, ao nível da BGRI) “faz todo o sentido” em Lisboa, afirmando ainda ser “super pertinente” colocar-se a questão no atual momento de alteração do regulamento municipal.

Um mapeamento gráfico como o criado por Manuel Banza é, para Luís Mendes, “uma valência fundamental para se perceber quais são as áreas e os bairros, dentro das freguesias, que são mais afetados” pela pressão turística. “Continuamos a ter um número elevadíssimo de AL na cidade”, diz.

Quarteirão da Avenida Almirante Reis. Foto: Rita Ansone

Apesar de tudo, impor restrições ao Alojamento Local ao nível do quarteirão pode apresentar “várias desvantagens”. É a visão de Gonçalo Antunes, investigador integrado no Centro Interdisciplinar de Ciências Sociais da Universidade Nova de Lisboa (CICS.NOVA – NOVA FCSH) e professor na Faculdade de Ciências Sociais e Humanas da Universidade Nova de Lisboa (FCSH-UNL). Para o especialista, os utentes de espaços de Alojamento Local existentes num determinado quarteirão, “não estão apenas naquele local e acabam por pressionar todo aquele território. Mesmo aquela subsecção que ainda tem valores baixos é, ela própria, pressionada”, diz.

Gonçalo considera que a atual fórmula de condicionar a pressão turística que resulta da concentração de unidades de AL na cidade – imposta ao nível da freguesia – “é relativamente correta” e classifica como “positiva” a impossibilidade de licenciar novos AL em zonas de freguesias pouco pressionadas pela atividade turística, mas que, por terem várias unidades AL em zonas específicas, já tenham ultrapassado o limite de 2,5%, “porque permite que esses locais continuem a não estar pressionados e a estar longe” de uma situação de pressão.

“Se tivéssemos uma análise à subsecção, o que podia acabar por acontecer, no extremo, era todas as subsecções chegarem ao ponto de ficarem saturadas. E não é isso que queremos. Queremos continuar a ter territórios na cidade que sejam multifacetados e onde o Alojamento Local não seja a atividade dominante”, afirma.

Afinar a análise

Na sua análise, e para possibilitar uma “outra forma de analisar os resultados”, Manuel Banza também utilizou uma média ponderada, usada em Ciência de Dados Geoespaciais: a Média Móvel Espacial, uma medida que considera “o impacto que as zonas vizinhas têm numa determinada zona”.

Mesmo quarteirões “que não tenham rácios acima de 2,5% ou mesmo qualquer tipo de licença de AL, Hotel ou unidade de alojamento” podem passar a refletir valores elevados de pressão turística, por se encontrarem na proximidade de zonas com várias unidades AL e hotéis, explica.

Gonçalo Antunes considera que a adoção desta média na análise “poderia contribuir para, eventualmente, ser uma medida mais correta”.

Mapa com localização de licenças AL (a verde) e empreendimentos turísticos (a azul) sobre o nº de alojamentos habitacionais clássicos, já com a média móvel espacial aplicada e as BGRI com rácios superiores ou iguais a 2.5%. VER EM ECRÃ INTEIRO

Limitar o licenciamento de hotéis?

Para além de utilizar nos mapas que gerou a localização das unidades de AL, Manuel Banza também incluiu os hotéis da cidade nas contas e constatou que a pressão turística, expectavelmente, aumentou, com zonas das freguesias das Avenidas Novas e Estrela a passarem a apresentar valores “mais expressivos”.

Ao contrário daquilo que advoga para o licenciamento de unidades de AL, Gonçalo Antunes não concorda com a imposição de limites ao surgimento de novos hotéis em Lisboa. “São os interessados em abrir as unidades hoteleiras que devem perceber se existe procura suficiente para a oferta que eles querem criar e a Administração Pública deve intervir o mínimo dos mínimos nesse aspeto, porque é pura e simplesmente o mercado a funcionar”, diz. A sua posição, contudo, não é consensual.

Hotel na Praça da Figueira. Foto: Taton Moise/Unsplash

O investigador Luís Mendes concorda com a possibilidade de impor quotas ao licenciamento de novas unidades hoteleiras. Considera que, tanto a atividade de AL como a hoteleira são atividades de natureza turística e com “impacto no território”. “Temos de pensar os limites da hotelaria no sentido de prever e evitar uma sobrespecialização e a tal estrutura monofuncional do turismo. São números de camas e de turistas que vão estar a disputar espaço com habitantes”, sublinha.

Mapa com localização de AL e empreendimentos turísticos sobre o nº de alojamentos habitacionais clássicos, as BGRI com rácios superiores ou iguais a 2.5%. VER EM ECRÃ INTEIRO

Das 24 freguesias da cidade, 14 têm atualmente suspensos novos registos de Alojamento Local:
Santa Maria Maior (52%)
Misericórdia (39%)
Santo António (26%)
São Vicente (16%)
Arroios (14%)
Estrela (11%)
Avenidas Novas (7%)
Alcântara (5%)
Belém (4%)
Campo de Ourique (4%)
Parque das Nações (4%)
Penha de França (4%)
Ajuda (3%)
Areeiro (3%)

Apesar de concordar com limites, afirma que “não têm de ser tão severos para a hotelaria”, já que esta tem a sua atividade “regulada”. “Há algum controlo. O grande problema, a meu ver, em termos mais finos do AL, para além deste impacto da estrutura monofuncional do turismo, é o facto de não ter uma atividade regulada. Quando tens um morador na propriedade, há algum controlo social. Quando não tens, o que acontece é que não há controlo social, do dono da propriedade sobre os seus utentes”.


Frederico Raposo

Nasceu em Lisboa, há 30 anos, mas sempre fez a sua vida à porta da cidade. Raramente lá entrava. Foi quando iniciou a faculdade que começou a viver Lisboa. É uma cidade ainda por concretizar. Mais ou menos como as outras. Sustentável, progressista, com espaço e oportunidade para todas as pessoas – são ideias que moldam o seu passo pelas ruas. A forma como se desloca – quase sempre de bicicleta –, o uso que dá aos espaços, o jornalismo que produz.

frederico.raposo@amensagem.pt

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