Na semana em que foi aprovado em reunião privada da Câmara de Lisboa um novo prolongamento por seis meses da suspensão aplicada à emissão de novas licenças de AL em 11 freguesias da cidade – um grupo de cidadãos lisboetas, achando que se deve ir mais longe, está a promover a realização de um “referendo pela habitação” com o com o objetivo de “mudar o regulamento municipal do alojamento local para impedir que esta atividade possa existir em prédios com licença para uso habitacional”.

Tendo em conta a crise da habitação, e considerando que “recuperar Lisboa” está “nas mãos” dos lisboetas e na sua intervenção na crise da habitação o Movimento Referendo pela Habitação apresenta-se como “movimento apartidário” e justifica a sua constituição como uma “obrigação da cidadania, dado que os poderes políticos têm promovido medidas que estimulam a especulação imobiliária em detrimento do direito à habitação”.

O movimento considera que a “expressão desmesurada” do Alojamento Local (AL) em Lisboa “contribui para a expulsão de população residente, para o desmantelamento de relações de vizinhança e para a desvitalização dos bairros”.

“Não é esta a cidade que queremos”, lê-se. Hoje, afirma o movimento, a população trava uma “batalha diária” para evitar a “expulsão” das casas onde vive ou para “encontrar uma casa digna”.

Referendo local, a ferramenta da democracia direta quase esquecida

Previsto pelo artigo 240º da Constituição, o referendo local é um instrumento de democracia direta quase esquecido e muito pouco utilizado em Portugal – foram realizados apenas oito.

Em Lisboa, nunca aconteceu, embora tenham existido tentativas. Em 2001, tentou referendar-se a proposta de instalação de um elevador para o Castelo de São Jorge e no ano seguinte houve nova tentativa, desta vez sobre a emissão de licenças de construção para os terrenos do Parque Mayer.

Agora, é um movimento cívico a tentar utilizar este instrumento de democracia direta pela primeira vez na cidade de Lisboa.

O processo para a realização de um referendo local requer alguns passos obrigatórios.

É necessário recolher cinco mil assinaturas válidas para que o pedido seja submetido a votação na Assembleia Municipal.

Se a proposta for aprovada, a questão a referendar segue para o Tribunal Constitucional, onde são validadas a constitucionalidade e a competência da autarquia na execução da medida proposta.

Recorde-se que só podem ser submetidas a referendo local questões cuja aplicação subsequente possa ser legalmente executada pela câmara municipal. A lei orgânica número 4 de 2000, que aprova o regime jurídico do referendo local, esclarece-o: “O referendo local só pode ter por objecto questões de relevante interesse local que devam ser decididas pelos órgãos autárquicos municipais ou de freguesia e que se integrem nas suas competências, quer exclusivas quer partilhadas com o Estado”.

Neste caso, a Câmara Municipal de Lisboa pode limitar o licenciamento de novas unidades de Alojamento Local e já o faz atualmente – como já se referiu, ainda esta semana.

O Regulamento Municipal de Alojamento Local (RMAL) aprovado em 2019 determina zonas de contenção e impede a criação de novas unidades de AL em zonas da cidade em que o número destas unidades seja superior, em 20%, ao número total de habitações permanentes.

Já este ano, foram aprovadas alterações às regras, suspendendo temporariamente novos registos de alojamento local em freguesias da cidade em que o número de AL superava os 2,5% do total de fogos existentes. No dia 14 foi aprovado em reunião de câmara novo prolongamento por seis meses da suspensão aplicada à emissão de novas licenças de AL em 11 freguesias da cidade.

Recorde-se que em abril de 2022, o Supremo Tribunal tomou uma decisão que colocaria nas mãos dos condomínios a existência de Alojmento Local nos prédios de habitação. “No regime da propriedade horizontal, a indicação no título constitutivo de que certa fração se destina a habitação deve ser interpretada no sentido de nela não ser permitida a realização de alojamento local”, lia-se no acórdão.

No entanto, além de não haver um regulamento nesse sentido, esta decisão ia contra o Regime Jurídico do Alojamento Local, e não teve efeitos práticos – terá eventualmente dado origem a maiores litigâncias no caso de condomínios onde a questão se colocou, com embróglios legais.

Alojamento local – o nó do problema?

Entre 2014 e 2018, o Alojamento Local (AL) cresceu 100% ao ano em Lisboa e a concentração deste tipo de alojamento, ligado à explosão do turismo na cidade, verifica-se nas freguesias do centro histórico.

Estão atualmente ativas mais de 20 mil licenças de AL dentro dos limites da cidade. 

No recenseamento de 2021, Lisboa voltou a perder população face a 2011, e nalgumas das suas freguesias a relação entre a perda de população e o licenciamento de novas unidades de AL é inegável.

Por exemplo, na última década, a freguesia da Misericórdia perdeu 26% da sua população residente e Santa Maria Maior perdeu 22% dos habitantes. Nestes dez anos, a atividade de AL em Santa Maria Maior alcançou um peso de 52% face ao alojamento habitacional clássico e o número de alojamentos familiares desceu 18%, tendo passado dos 10555, em 2011, para os 8660, em 2021.

Deverá o município impedir o registo de unidades de Alojamento Local em prédios com licença para uso habitacional? Embora ainda não tenha sido revelada a formulação final da questão a apresentar, esta é a pergunta que o movimento quer colocar a todos os lisboetas recenseados.

O movimento considera que “o alojamento local, neste nível de expressão”, não oferece a possibilidade de habitar a cidade, ação que pressupõe, para o movimento, “permanecer no espaço, imbuí-lo de vivências quotidianas, construir comunidade [e] decidir sobre a cidade”.

Para o Movimento Referendo pela Habitação, “os imóveis com autorização de utilização para habitação devem cumprir a sua função social: serem habitados”. Atualmente, o movimento é constituído por “um grupo de pessoas ativas em Lisboa – algumas residentes, outras não, [e] algumas já expulsas da cidade”.

A pergunta para o referendo, sabe a Mensagem, está neste momento na sua fase final de redação, pelo que são esperados novos desenvolvimentos para breve.

“Um movimento em construção” e Berlim como inspiração

O coletivo que que avançar com esta proposta “é um movimento em construção” e, nesse sentido, sublinha, como segundo objetivo, a criação “de reivindicações de mudança em Lisboa no que toca à habitação”. “Isto significa que queremos convidar toda a população da cidade, em geral, e todas as pessoas que se sentem ameaçadas pela especulação imobiliária em Lisboa, em particular, a juntarem-se a este movimento”.

Procurando a mobilização popular, o movimento convida todas as pessoas interessadas a juntarem-se através do endereço de email movimento@referendopelahabitacao.pt. No texto que assinam, as pessoas que integram o movimento assumem a vontade de ver a discussão alastrar-se pela cidade e de se tornarem “milhares” na luta pela concretização do referendo local.

A inspiração veio do referendo promovido em 2021 em Berlim, quando os munícipes da capital alemã foram convidados a pronunciar-se sobre a aprovação de uma medida que propunha a expropriação de propriedade privada, nos casos em que empresas ligadas ao imobiliário são proprietárias de três mil ou mais unidades habitacionais.

Esta expropriação concretizar-se-ia através da aquisição pública destas propriedades, para posterior colocação das mesmas no mercado público regulado de habitação. Em causa estão mais de 240 mil apartamentos da cidade alemã, mais de 15% do total.

Na votação, que decorreu a 26 de setembro de 2021, ganhou o Sim à aquisição, por parte do Estado de Berlim, dos mais de 240 mil apartamentos considerados, com mais de 56% do voto de cerca de 1,8 milhões de eleitores.

Apesar do resultado, o referendo alemão não é vinculativo.

Já no caso português, “os resultados do referendo vinculam os órgãos autárquicos”, lê-se no artigo 219º da lei que aprova o regime jurídico do referendo local, desde que o número de votantes exceda 50% do número de eleitores inscritos no recenseamento.

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Frederico Raposo

Nasceu em Lisboa, há 30 anos, mas sempre fez a sua vida à porta da cidade. Raramente lá entrava. Foi quando iniciou a faculdade que começou a viver Lisboa. É uma cidade ainda por concretizar. Mais ou menos como as outras. Sustentável, progressista, com espaço e oportunidade para todas as pessoas – são ideias que moldam o seu passo pelas ruas. A forma como se desloca – quase sempre de bicicleta –, o uso que dá aos espaços, o jornalismo que produz.

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