
São imigrantes que chegam a Lisboa à procura de trabalho, da cura para uma doença ou para fugir da guerra. Acabam em casas e quartos sobrelotados, ou até em barracas, com as vidas em risco. Como aconteceu no dia 4 de fevereiro, na Mouraria. Num incêndio que deflagrou num apartamento partilhado por 22 imigrantes – morreram dois e 14 terão ficado feridos.
E não serão só as razões económicas a levar à sobrelotação, a única salvação para grande parte da comunidade imigrante e precária em Lisboa. Muitas vezes, o mercado da habitação discrimina-os. Que o diga Cesaltina, vinda da Guiné, a fazer maratonas entre três empregos e, ainda assim, com chamadas caídas sempre que diz de onde vem e quer alugar uma casa.
São muitos os guineenses na cidade, numa história que tem séculos. Mas hoje os imigrantes de Lisboa vêm sobretudo do Nepal, do Bangladesh, do Paquistão e e da Índia – têm uma rede social menos estabelecida do que os imigrantes dos PALOP, por exemplo. E são também as comunidades com as remunerações médias mais baixas em Portugal.
O jornalista bengali Farid Patwary, atualmente a viver em Lisboa, explica que a vinda destas pessoas do sul da Ásia foi muito motivada por artigos turísticos nos jornais, que começaram a vender Portugal e Lisboa como um destino de sonho. E isso tornou-os terreno fértil para as “máfias da imigração”: chegam a vender este sonho por dezenas de milhares de euros – segundo outra fonte da comunidade. Mas não é sonho nenhum.
Beliches, dormir no chão e cama quente – são várias as tipologias da falta de dignidade. E as estatísticas comprovam-nas:
Em 2021, 19,2% da população estrangeira vivia em alojamentos sobrelotados – um valor, ainda assim, inferior ao da média da União Europeia (29,6%), segundo dados do Eurostat.
Havia 9,3% de cidadãos estrangeiros de países da UE a viver em sobrelotação, e de fora da UE, 23,6%.
O número de alojamentos sobrelotados cresceu em Lisboa, entre 2011 e 2021: há 12 anos, eram 34 361, os últimos Censos de 2021 já registavam 35 826.
A ASAE registou aumento de incumprimentos no Alojamento Local no concelho de Lisboa, para 9% em 2022.

Perante a crise, impõe-se perguntas. E respostas:
- Há ou não meios para travar as condições indignas em que os imigrantes vivem?
- E qual é o papel das Juntas de Freguesia, da Câmara Municipal e do Governo?
- Os instrumentos legais não existem ou não estão a ser operacionalizados como deviam?
O VIZINHO DE CIMA e as ilhas de imigrantes
“Sharmin”, “Ayesha” e a filha de nove anos, “Sadia” (nomes fictícios), chegaram do Bangladesh há cinco meses. Foram acolhidos em casa de um primo, um segundo andar na rua do Terreirinho, na Mouraria.
Eram quatro ali a morar. Mas, debaixo deles, a realidade era bem diferente: entre colchões, roupas e pertences espalhados pelo chão, contavam-se vinte e duas pessoas num só teto. Só as chamas do incêndio da semana passada foram capazes de denunciar esta realidade que eles já conheciam. A eles e a toda a cidade, abrindo os olhos para o drama que tantos outros vivem: a escolha entre um andar sobrelotado ou a rua.
A família bengali também viu as paredes da casa onde moravam a serem engolidas pelas chamas.
“Eu e a minha mulher pensávamos que íamos morrer”, conta “Sharmin”, 39 anos, ainda abalado pelo choque. Ele e a família foram salvos e levados para o hospital, onde lhes deram oxigénio.
O futuro é agora uma incerteza. Para eles, como para todos os outros vizinhos desse prédio que cá ficaram para contar a tragédia, que é a de uma cidade inteira também.
Os imigrantes que viviam no prédio foram temporariamente alojados num hotel, mas muitos ainda procuram casa, como a família de “Sharmin”. Só “Ayesha” é que tem emprego, como empregada de limpeza.
“Viemos para Portugal porque o Bangladesh é um país do terceiro mundo. Não há lá oportunidades e é um país muito populoso.”
“Sharmim”
Já estava difícil, mas os sonhos deles agora esbarram ainda mais contra a especulação imobiliária e a falta de apoios habitacionais para a população imigrante.
“Ana” perdeu o trabalho para construir uma barraca
Essas dificuldades esbatem a esperança de um futuro em Portugal e transformam-se em desespero quando a procura por um lugar onde passar a noite acaba na rua. Foi na rua, que “Ana” passou muitos dos seus dias, alguns já a trabalhar na copa de um hospital.

Com pouco mais de 600 euros ao final do mês, não conseguia alugar uma casa, nem sequer um quarto para dormir. Ela, que aos 44 anos fez a mala e veio de São Tomé e Príncipe para resolver um problema de saúde (asma e a tensão alta), acabaria por munir-se de ferramentas e madeiras, ripas, escadas, portas, para montar uma barraca numa quinta abandonada na cidade. Aqui começam a aparecer outras barracas e outros imigrantes africanos.
“Um fogão e um colchão, uma porta e uma chave”, é assim que ela descreve a casa, que partilha com a filha, grávida, e um casal de irmãos que veio também de São Tomé. E é assim: quatro paredes improvisadas, dois colchões, um velho fogão. Não há luz, nem casa de banho.
É aqui que a filha de “Ana”, que dará à luz já no início de março, passa os dias. Recordações vêem-lhe no sabor do safú, um pequeno fruto arroxeado de São Tomé e Príncipe que os imigrantes trazem para Lisboa. Diz que à custa dos dois dias que passou a construir aquele teto, Ana perdeu o emprego.




A “casa” que Ana e a mãe construíram. Fotos: Inês Leote
Tudo isto depois da saga para conseguir o NIF, o NISS e, finalmente, a manifestação de interesse que lhe permitiu começar a trabalhar no hospital.
Sem documentos e sem apoio
Uma saga pela qual “Alice” também está a passar: há cinco meses, decidiu vir para Lisboa. Foi por causa de internamentos sucessivos, em Angola, por causa da hipertensão, diz. Mas é sempre múltipla de razões a busca por uma nova vida.
Falou com um velho amigo que vivia em Lisboa, que lhe disse que não seria difícil. Mas não foi isso que aconteceu: o processo para o NIF e o NISS foi demorado e burocrático. E ainda lhe falta a promessa de contrato para a manifestação de interesse – só assim conseguirá o título de residência.
Entretanto, já trabalhou como empregada de limpeza numa casa onde dormia na marquise. O patrão morreu e Alice foi acolhida pela sobrinha dele e pela sua família. Primeiro, dormia no sótão, agora na sala. “Mas se não fosse a sobrinha, eu estaria na rua!”, diz. E continua à procura de outro trabalho… e de uma casa.
“Não dá para viver em Portugal. Uma casa custa mais do que um salário”
“Ana”
Ainda sem títulos de residência – que só conseguirão passados dois ou três anos de terem trabalho – estas mulheres não se podem candidatar a nenhum apoio à habitação.
“Os pedidos de residência podem demorar anos”, acusa Ana Mansoa, diretora do CEPAC (Centro Padre Alves Correia), a associação que tem seguido o caso de “Ana” e de “Alice”. “E o SEF está morto”, denuncia.
Três empregos e nenhum lugar para morar
Mas nem sempre o problema são os rendimentos.
A mágoa sente-se em Cesaltina: no final deste mês, terá de entregar as chaves da casa onde vive com os quatro filhos (três menores, um com 19 anos). Voltar para a Guiné, de onde veio em 2018, não é opção. Entre outros motivos está o que a fez chegar, há cinco anos: “O meu filho tem um problema de coração. A médica disse-me que, com o coração dele assim, não podia voltar.”

A busca por uma outra casa em Lisboa tem-na levado ao desespero. Com esforço consegue rendimentos que lhe permitiriam alugar um apartamento. Por isso, apesar de já ter título de residência, também não cumpre os requisitos para habitação municipal. Afinal, desdobra-se em três trabalhos de limpeza: das 8:00 às 13:00, das 17:00 às 19:00 e, finalmente, das 1:30 às 4:30 da manhã no metro de Moscavide.
Mas os obstáculos que encontra são muitos, garante: queixa-se de exigências dos senhorios (alguns chegam a pedir três rendas e dois fiadores), e silêncios depois de responder às perguntas “de onde é que vem?”, “quantos filhos tem?”, “em que trabalha?”.
Tantas vezes a chamada cai do outro lado com a resposta.
“Há muitos senhorios que não aceitam imigrantes, refugiados…”, confirma Carla Mendonça, que faz acompanhamento social no CEPAC. “A Cesaltina é claramente uma vítima deste mercado habitacional: é o exemplo de uma pessoa que trabalha, tem a sua situação regular, e mesmo assim não consegue uma casa.”
A descoberta de Portugal e a “máfia” da imigração
“Quando aqui cheguei, em 2015, havia pouquíssimas famílias de Bangladesh. Umas cinco, talvez”, calcula Farid Ahmed Patwary. Exibe com orgulho a credencial com a fotografia e o nome do Dhaka Post estampados. O jornal é o último em que o jornalista de 40 anos trabalhou – desde os 15 anos de idade é jornalista, quando pisou pela primeira vez a redação do diário Kaler Chaka, em Daca, onde nasceu.
A atividade como correspondente em Lisboa, onde vive desde 2015, posiciona Farid Ahmed Patwary como observador atento das relações entre a cidade que elegeu para viver e o fluxo crescente de imigrantes do sul da Ásia, que ganhou o estatuto de “problema” após o incêndio de um prédio na Mouraria que vitimou duas pessoas e feriu outras 14.


A decisão de viver em Portugal foi tomada de forma não planeada, durante uma viagem em família pela Europa, em 2015. “Passei em Paris e, depois, Eindhoven, onde tenho um tio. Foi lá que a minha mulher começou a falar em mudar para a Europa”, recorda.
A especulação ganhou contornos de decisão após a passagem por Lisboa. “No segundo dia, já estava decidido. Pela proximidade do rio, do mar, pelo clima. Na semana seguinte, arranjei trabalho numa mercearia”, conta Farid que, desde então, nunca mais voltou ao Bangladesh.
O jornalista bengali acredita que Portugal passou a entrar no radar dos sul-asiáticos como consequência natural da exposição do país nos media internacionais, vendido como um destino de sonho.
Portugal era um destino seguro e bom de se viver, até para Madonna.
“Antes, praticamente ninguém no Bangladesh conhecia Portugal, pois não havia nada nos jornais em inglês sobre o país. A partir daí, a Ásia descobriu Portugal como a porta da Europa, bom para os negócios, palco de grandes eventos, como o Web Summit. Era natural que passasse a chamar mais a atenção no Bangladesh, no Nepal, na Índia e em tantos outros lugares”
Farid Patwary
Farid admite que esse interesse fez com que os imigrantes em potência recorressem ao mercado paralelo, uma espécie de “máfia” da imigração. Mas diz que isso acontece sempre.

“É claro que há redes de tráfico de pessoas do sul da Ásia, mas há também de outro lugares do mundo. Não é uma exclusividade de Bangladesh, do Nepal ou da Índia. Esse tipo de abordagem acaba por associar o imigrante a uma atividade ilegal, como se todos fossem mafiosos”
Farid Patwary
Para o jornalista, a questão da corrupção deve ser investigada, sim. Assim como as circunstâncias do fogo no prédio habitado de forma precária – duas dezenas de pessoas chegavam a dividir um rés-do-chão.
Tudo menos o tradicional jogo de empurra dos verdadeiros responsáveis, que acaba por cair no colo das vítimas.
A afirmação do presidente da Câmara de Lisboa, Carlos Moedas, que sugeriu que a “solução” da questão da habitação passava pela restrição da entrada de imigrantes na cidade, mediante a apresentação de um contrato de trabalho, para Farid não faz nenhum sentido: “Na questão da imigração, o imigrante tem culpa de quê? O imigrante não tem culpa de nada.”
Farid vive com a mulher e duas filhas – uma delas nascida em Portugal – num apartamento no Campo dos Mártires da Pátria, de onde viu à distância os sinais de fumo do incêndio e da polémica que surgiria com ele. Também para o jornalista, a questão da habitação precária passa pelo valor das rendas, claro, mas não só por isso. “Mesmo no meu caso, imigrante recém-chegado a Lisboa que até tem dinheiro para pagar uma renda, temos que encontrar um fiador português e, muitas vezes, apresentar o IRS dos últimos três anos e um contrato de trabalho ao futuro senhorio? Dificilmente vai conseguir arrendar, claro.”
São também os entraves burocráticos e a falta de disposição das autoridades em resolver o problema fazem com que todos os caminhos do imigrante levem à Mouraria.
“Mesmo que o imigrante tenha dinheiro para a renda dos primeiros meses, não tem os documentos, e precisa de um teto para dormir. E a solução qual é? Vai à Mouraria que ninguém pede nada e resolve os problemas.”
Farid Patwary

Para alguém sozinho, é mais difícil resolver as coisas. Ele encontrou dificuldades em conseguir levantar na Junta de Freguesia um comprovativo de residência para a mulher. “Foi exigido que outros dois fregueses portugueses comprovassem que ela realmente vivia na freguesia. O problema está também na estrutura burocática da cidade e do país. Precisa do imigrante para que a economia continue a funcionar, mas não se preparou para recebê-lo”.
No caso específico da comunidade asiática, chega sem dominar o português e não encontra informações claras e articuladas dos órgãos responsáveis por organizar a vida de um imigrante em Portugal.
“Um exemplo simples é a manifestação de interesse em ficar no país, necessária para se ter um contrato de trabalho, que deveria ser enviada através do SEF, mas cujo link nem sempre esteve disponível durante a pandemia. O problema é que os outros órgãos não sabiam disso e os processos acabaram por não andar”, argumenta.
A paralisação dos serviços burocráticos durante a pandemia gerou um gargalo na emissão de documentos que culminou no atraso da entrega de vistos. E a quebra na atividade económica impediu a contratação regular de mão de obra imigrante.
“Essa bola de neve surgiu daí”, resume o jornalista.
que PROBLEMAS E QUE soluções?
1- A responsabilidade do SEF
Não é só Farid. Muitos imigrantes que chegam com visto de turista, e entretanto encontram emprego, deparam-se com a ineficiente resposta do Serviço de Estrangeiros e Fronteiras (SEF), com demoras na avaliação e atribuição de autorizações de residência.
Em 2021, encontravam-se válidas cerca de 700 mil autorizações de residência. Mas muitos mais estarão à espera de resposta do Estado – não há números certos, mas em novembro de 2022, o SEF comunicava a existência de 200 mil imigrantes que esperavam pela sua autorização de residência.
Por se encontrarem numa situação irregular, estes imigrantes não cumprem os requisitos legais para entrar no mercado formal de habitação. Não podem, sequer, assinar um contrato de arrendamento.
Jorge Malheiros, geógrafo e investigador do Instituto de Geografia e Ordenamento do Território (IGOT) da Universidade de Lisboa, considera que tem de haver “uma eficácia maior dos nossos serviços. Sabe-se o tempo que têm levado a apreciar as solicitações de autorização de residência para fins de trabalho e para fins de estudo. É lenta a resposta que tem sido dada pelo SEF. É uma componente de natureza política”, sublinha.
2 – Os preços e a crise da Habitação
Ainda que pudessem arrendar, de pouco lhes serviria: quem chega a Lisboa, depara-se com a crise habitacional que toca a todos os lisboetas.

“Os valores de arrendamento praticados não estão adequados ao patamar da procura em que estes imigrantes se inserem. Para quem acaba de chegar, o rendimento é muito baixo e encontrar habitação digna na cidade de Lisboa e até na periferia a custos baixos é muitíssimo difícil”
Jorge Malheiros, geógrafo e investigador do Instituto de Geografia e Ordenamento do Território (IGOT) da Universidade de Lisboa
Quando a franja mais fragilizada da população migrante procura casa, pouco encontra e o que encontra não é, muitas vezes, digno. Para o investigador, há dois lados de uma possível resposta:
- “Pôr os serviços a dar uma resposta mais eficaz”: o SEF a dar resposta, em tempo útil, aos pedidos de autorização de residência
- Haver criação de um parque habitacional de renda acessível, “próximo do emprego, dos transportes”.
3 – As redes familiares e sociais
É o primeiro momento – o primeiro embate com a realidade dura de chegar a uma cidade estranha – aquele que mais custa. Antes de se estabelecerem e encontrarem alguma estabilidade financeira, a única opção pode ser o alojamento informal – sem contrato, sem garantias, sobrelotado e, sobretudo, sem proteção. “Como o rendimento é baixo, se calhar não há casa de familiares, o que se encontra é eventualmente com conterrâneos, um sítio onde eles já estão e pode ir-se para lá. Muitas vezes, um apartamento onde se juntam várias pessoas e temos uma situação de sobrelotação, ou um alojamento coletivo barato de menos qualidade. Vive-se nestes espaços porque são as alternativas existentes, sobretudo nestas fases iniciais do percurso migratório. Depois, há uma integração no mercado de trabalho…”
“Estes migrantes que têm menores rendimentos – mesmo que a sua qualificação seja média ou, porventura, superior – e que também têm redes sociais menos densas e menos estabelecidas do que os migrantes dos PALOP – porque as redes sociais podem ter um efeito de amortecimento [de alojamento, de procura de trabalho]”
Jorge Malheiros
Numa primeira fase, a migração da Ásia do sul é “sobretudo de homens”. Os dados ajudam a provar a afirmação – mesmo o recente estudo feito pela associação Renovar a Mouraria indicava isso mesmo. O relatório anual do Observatório das Migrações explica que “os homens quase dominam” em alguns dos vistos concedidos.
Exemplo disso é o visto de residência para quem trabalha para conta de outrem – 84,2% desses vistos foram atribuídos a homens em 2021.
A chegada das mulheres acontece depois, num momento que Jorge Malheiros descreve como de “estabilização”, com a vinda da família.
As mulheres destacam-se na emissão de vistos de residência por reagrupamento familiar, representando 61,5% desses vistos em 2021.
No caso dos cidadãos provenientes da Índia, uma das nacionalidades que mais tem aumentado na concessão de vistos, com uma subida de 58,2% em 2019, 79,9% são homens.
“Com a dificuldade que tem havido em renovar autorizações de residência, com a chegada a situações de irregularidade, com o desconhecimento em termos das redes, o acesso ao mercado de habitação formal é mais difícil. É difícil encontrar fiador, é difícil que as pessoas tenham condições formais para poder fazer um arrendamento logo no início [quando chegam], ou porque têm receio, têm desconhecimento, ou porque a regularização não está completa”
Jorge Malheiros
Jorge Malheiros afirma que, apesar de os documentos orientadores da política de habitação falarem em habitação para quem chega a Portugal, a realidade do mercado é bem diferente. “Como os instrumentos falam e não concretizam, se do ponto de vista formal não há acesso, tem de se optar por lógicas informais ou por soluções do contexto do grupo”.
O que acaba por acontecer, explica, é que, entre a população migrante, “alguém consegue arrendar e depois junta-se uma série de gente no mesmo sítio e lá temos a situação de sobrelotação”.
4 – E como fiscalizar?
Para o presidente da Junta de Freguesia de Santa Maria Maior, Miguel Coelho, a conversa começa por aqui: é necessário “não discriminar” a população migrante. Foi à sua porta que a mais recente tragédia na cidade aconteceu, na Mouraria.
“Mais do que alimentar posições populistas, de que temos imigrantes a mais, que temos de contingentar isto, o que é preciso é integrá-los mais rapidamente”, diz o autarca, aludindo ao imperativo de promover a celeridade nos processos de regularização da situação de residência da população migrante junto do SEF.

Miguel Coelho aponta o dedo a uma “rede de exploração intensiva destas pessoas, para tentar ganhar lucros à custa da fragilidade” e considera que é preciso “punir quem lhes paga ordenados de miséria”.
Simultaneamente, o autarca afirma que “é preciso verificar as condições de habitabilidade dos Alojamentos Locais (AL) que pululam por este território, sobretudo na zona da Mouraria, e que se dedicam a arrendar casa em regime de cama quente”.
O presidente de uma das freguesias com maior representação de população migrante vulnerável afirma que a câmara municipal e a ASAE não só têm a competência da fiscalização, como são detentoras dos meios necessários.
Sobre os casos de sobrelotação que diz verificarem-se em unidades de AL, diz que, “se calhar, não se pode fiscalizar tudo, mas se se começar a fiscalizar, certamente que a notícia espalha-se e quem se dedica a este iníquo negócio vai pensar duas vezes se o mantém ou não mantém ou se o corrige”.
A taxa de incumprimento em alojamentos locais aumentou de 2021 e 2022 no concelho de Lisboa, segundo a ASAE:
em 2021, dos 385 estabelecimentos fiscalizados em 2021, 4% encontravam-se em incumprimento, mas nenhum chegou a fechar atividade; em 2022, a taxa subiu para 9%, entre 201 AL fiscalizados – apenas dois encerraram.
A ASAE aponta como principais infrações os requisitos legais para o licenciamento, a “oferta, disponibilização, publicação e intermediação”, a “falta de afixação no exterior dos estabelecimentos de hospedagem da placa identificativa” e a “falta de cumprimento dos requisitos de segurança aplicáveis”.
Sobre a eficácia da fiscalização das condições de habitabilidade e sobrelotação, Jorge Malheiros tem uma opinião diferente.
O investigador considera que “a falta de fiscalização beneficia de uma atitude mais complacente por parte das autoridades públicas”.
A questão aqui é saber se podia ser de outra maneira: “Não tendo respostas habitacionais, mas estando as pessoas cá, sendo elas obviamente necessárias para o mercado de trabalho, a fiscalização poderia ter o efeito oposto do desejado. Sem ter uma resposta habitacional para as pessoas desalojadas, o que criava era um problema ainda maior.”
Os migrantes, “ficavam cá mas em situação de sem abrigo, o que ia criar era desalojamento, uma situação mais grave do que existe atualmente”, avisa.
Antes é necessário “encontrar uma alternativa, para que quando a fiscalização obrigar a uma intervenção que implique a saída das pessoas, estas possam encontrar alojamento, com as condições devidas, num outro local”.

É que o país alimenta-se do trabalho da população migrante. O Relatório Estatístico Anual do Observatório das Migrações de 2022 é claro nas palavras que inscreve no documento.
“Os estrangeiros assumem maior capacidade contributiva e são necessários para apoiar a sustentabilidade do sistema de Segurança Social”, lê-se. Dos cerca de 700 mil estrangeiros com autorização de residência no país, cerca de 476 mil são contribuintes e o seu saldo é claramente positivo na balança da Segurança Social.
Em 2021, contribuíram com mais de 1200 milhões de euros e, retiradas as prestações sociais de que usufruem, ficou um saldo positivo de 968 milhões de euros.
5 – O papel das Juntas de Freguesia e da Câmara
E a Junta de Freguesia pode ou não ter aqui algum papel?
Só de conselheiro, porque não tem competências de regulação do setor da habitação ou do alojamento local. “Para a semana farei isso, indicando um conjunto de sítios que devem ser verificados”, afirma Miguel Coelho.

A Câmara Municipal de Lisboa previa medidas específicas tendo em vista o apoio da população migrante e refugiada em situação de vulnerabilidade social nas suas necessidades imediatas de habitação. No Plano Municipal de Integração de Migrantes para o horizonte temporal, já passado, de 2018 a 2020, a autarquia previa a disponibilização de centros de acolhimento “e, ou, habitação autónoma temporária”. A meta apontada previa o apoio a 75 pessoas por ano.
Carlos Moedas, presidente da Câmara Municipal de Lisboa, já tornou clara a sua posição: o desafio está nas mãos do Governo, para recuperar contingentes de imigrantes – quer isto dizer, limitar a entrada apenas àqueles que já chegam com contrato de trabalho.
Atualmente, é cedido um visto com validade de seis meses para que os imigrantes possam procurar trabalho em Portugal neste período.
As declarações do autarca de Lisboa, no programa “Hora da Verdade”, do jornal Público e da Rádio Renascença, levantaram indignação por parte da oposição, que considera “inaceitáveis”.
6 – A “contradição” da sobrelotação e de 48 mil casas vazias
No primeiro episódio da série Mensagem sobre a crise da habitação em Lisboa, Cidades para Quem?, demos a conhecer o caso de Francisco, migrante brasileiro. Ao chegar a Lisboa, o melhor que conseguiu foi uma cama num beliche, num quarto sem janelas que partilhava com mais quatro pessoas. E quando descobrimos o quarteirão mais populoso de Lisboa (e do país), percebemos que esta é uma realidade conecta à imigração. Uma realidade que coexiste com casas vazias, denuncia Jorge Malheiros.
Em Lisboa, o número de alojamentos sobrelotados cresceu, entre 2011 (34 361) e 2021, altura em que a cidade registava 35 826 habitações em sobrelotação.
Ao mesmo tempo que se deu este crescimento, cresceram também as habitações sublotadas.
Se em 2011, estavam registadas 128 674 habitações sublotadas, em 2021 eram 139 286, segundo dados do último Censos.
Jorge Malheiros aponta para a “contradição” de um país com 700 mil habitações devolutas – em Lisboa são cerca de 48 mil – que coexiste com numerosas situações de sobrelotação habitacional e falta de condições de habitabilidade.
O investigador indica como soluções a criação de mais habitação coletiva, transitória, de qualidade, mas, sobretudo, para a criação de mecanismos de controlo de preços e para o reforço do parque habitacional público e de renda acessível.
“Em Lisboa, existindo devolutos e um tecido de proprietários que inclui a autarquia, que inclui a administração central e entidades públicas e do tecido social, a começar pela Santa Casa da Misericórdia, que tem um património imobiliário grande, talvez fosse possível juntar estas entidades e reabilitar alguns espaços com o apoio do PRR para alojamento coletivo. Não vai resolver o problema completamente, mas vai mitigá-lo”, afirma o investigador.
O Plano de Recuperação e Resiliência (PRR) prevê a criação da Bolsa Nacional de Alojamento Urgente e Temporário.
Com 176 milhões de euros de financiamento europeu, este investimento, a concretizar até 2026, pretende dar resposta às necessidades de acolhimento de emergência e transição. Está prevista a criação de dois mil alojamentos de emergência e de 473 fogos, repartidos por três blocos habitacionais e por cinco centros de instalação temporária.
De onde vêm e como vivem?
Os imigrantes são hoje 19,9% da população residente em Lisboa. De proveniências diversas e com diferentes capacidades de se instalarem na cidade com conforto e dignidade. São 108 894 pessoas estrangeiras a viver na cidade, segundo dados do INE referentes ao último recenseamento populacional.
Há tantos que nunca chegam a alcançar essa vida digna. De quem falamos quando falamos de situações de sobrelotação, como aquela que foi colocada a descoberto pelo incêndio ocorrido na Rua do Terreirinho, na Mouraria, a 4 de fevereiro?
Falamos, muitas vezes (embora não de forma exclusiva), de pessoas “daquele a que se convenciona chamar sul global”, explica Jorge Malheiros. Nem todos são imigrantes sem qualificações, mas quase todos estão inseridos “em segmentos do mercado de trabalho menos qualificados”.
É para Lisboa que grande parte destes migrantes converge, já que é nas grandes cidades, diz, que “as pessoas encontram-se mais, conversa-se mais sobre oportunidades de trabalho, há mais animação urbana para os tempos que as pessoas têm de não trabalho ou de algum lazer, as redes sociais estão mais presentes – há sempre a possibilidade de encontrar mais conterrâneos”.
Em Lisboa, “aparecem ligados a profissões na restauração, no comércio, na distribuição alimentar – nas plataformas uberizadas – e de transporte em veículos descaracterizados”. Já aqui contámos a história de Hossain, precário e sem fôlego.
As remunerações médias de migrantes provenientes do Bangladesh e do Nepal são das mais baixas em Portugal. Em 2020, um migrante bengali recebia, em média, 676,85 euros por mês, e um migrante nepalês auferia 667,66 euros.







“No caso concreto, são da Ásia do sul. Há imigração com origem na Índia e no Paquistão há bastante tempo, em números não muito grandes, e há imigração com origem no Bangladesh que tem também 20 anos. A imigração nepalesa é um pouco mais recente e tem crescido bastante”.
Jorge Malheiros
Têm chegado para dar “resposta a um conjunto de necessidades do mercado de trabalho que têm crescido nos últimos anos” – não apenas a restauração e hotelaria, mas também a economia dos serviços, ou a gig economy – relacionada muitas vezes com o trabalho em plataformas digitais de entrega de comida ou com a condução de veículos ligeiros de transporte de passageiros – os TVDE, ao serviço de plataformas como a Uber ou a Bolt.
São profissões desempenhadas “mais ou menos por conta própria”, desreguladas, muitas vezes sem vínculos laborais e com pouca – ou nenhuma – proteção laboral. E outros, os que trabalham no backoffice das cozinhas da cidade. São, sobretudo, seres humanos em busca de uma vida melhor. E que merecem uma Lisboa mais acolhedora.
E, no meio de tudo, como canta A garota não, “habitação é fratura exposta”.
“Na porta do lado há mais um despejo
cai um família, fica o azulejo.
Começam as obras, que casa bonita!
Começam os guests, fomo é infinita
Mais um AL, orgulho nacional.
Corrida sem lei, onde vais Portugal?”

Ana da Cunha
Nasceu no Porto, há 27 anos, mas desde 2019 que faz do Alfa Pendular a sua casa. Em Lisboa, descobriu o amor às histórias, ouvindo-as e contando-as na Avenida de Berna, na Universidade Nova de Lisboa.
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Frederico Raposo
Nasceu em Lisboa, há 30 anos, mas sempre fez a sua vida à porta da cidade. Raramente lá entrava. Foi quando iniciou a faculdade que começou a viver Lisboa. É uma cidade ainda por concretizar. Mais ou menos como as outras. Sustentável, progressista, com espaço e oportunidade para todas as pessoas – são ideias que moldam o seu passo pelas ruas. A forma como se desloca – quase sempre de bicicleta –, o uso que dá aos espaços, o jornalismo que produz.
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Álvaro Filho
Jornalista e escritor brasileiro, 50 anos, há sete em Lisboa. Foi repórter, colunista e editor no Jornal do Commercio, correspondente da Folha de S. Paulo, comentador desportivo no SporTV e na rádio CBN, além de escrever para O Corvo e o Diário de Notícias. Cobriu Mundiais, Olimpíadas, eleições, protestos – num projeto de “mobile journalism” chamado Repórtatil – e, agora, chegou a vez de cobrir e, principalmente, descobrir Lisboa.
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“SEF atrasa casas e nascem novas barracas na cidade”. Esta parte do título não tem adesão à realidade. Desde quando tem nas suas atribuições a fiscalização do parque imobiliário?
O problema não é de falta de casas ou do valor que os proprietários legitimamente pedem. O problema está exposto neste parágrafo que reproduzo: “ As remunerações médias de migrantes provenientes do Bangladesh e do Nepal são das mais baixas em Portugal. Em 2020, um migrante bengali recebia, em média, 676,85 euros por mês, e um migrante nepalês auferia 667,66 euros.”
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“Imigrantes: SEF atrasa casas e nascem novas barracas na cidade”
Depois de ter falecido um cidadão ucraniano numas instalações do SEF
2020 valeu de tudo na Comunicação Social para deitar o SEF abaixo levando à sua extinção. Serviu e serve de bode expiatório para muitos problemas do País, e o Governo
negligente aplaudia de contente. Um dia se o SEF acabar mesmo os problemas continuarão porque a reforma não veio das pessoas e profissionais e de quem sabe das questões, veio de um conjunto de interesses que posso nomear aqui ( indústria hoteleira e turística, GNR, PJ, PSP, IRN, ONG’s, e claro o interesse de Antônio Costa e ala mais à esquerda) a esquerda ainda não entendeu que as fronteiras não podem estar escancaradas para próprio bem das comunidades que nela habitam. Também não entende que a polícia tem sempre uma componente administrativa muito forte em democracia. Às vezes dá mesmo a sensação que o jornalismo ele próprio e supostamente o mais independente se socorre de manchetes contraditórias com a realidade social e a legislação existente no país. Ninguém quis salvar e reformular o SEF. Todos o quiserem abater. É um erro que se pagará caro.
Será que os nossos políticos demagógicos ainda não perceberem de onde surgiu o agravamento do problema de habitação em Portugal? Se sabem , por que não o dizem claramente? Passamos de 380 mil cidadãos estrangeiros com visto de residência em 2016 para 750 mil em 2022 e outros 200 mil à espera de regularização (E não incluem as centenas de milhar que saíram destes números porque receberam nacionalidade portuguesa nos últimos anos). Acham que um influxo de 600 mil pessoas não iam ter externalidades negativas? Nenhuma organização ou instituição que lida com diretamente imigrantes está preparada para um incremento de pessoas na ordem desta grandeza.
Por que acham que o SNS, a Educação, a Segurança, a Habitação, os Transportes/Mobilidade e o Custo de Vida estão no estado em que estão ou ainda como é que existiu esta Estagnação Salarial em tempos de “prosperidade” vividos a partir de 2015 não se refletiram na micro-economia? Basta irem às Urgências do SNS e contar com os dedos das mãos o número de portugueses que lá estão à espera porque a maioria destes já fugiram para o Privado. O SNS está a ficar cada vez mais um Serviço de Saúde dos pobres e dos imigrantes! Basta ver diariamente as noticias de criminalidade cometidas por quem vem de fora. Basta comparar os números Macro da criminalidade em certos pontos do país. A Educação cada vez mais facilitada e menos exigente para integrar os filhos dos imigrantes. Porque não podem ficar para trás. Ou será que não deveria ser mais exigente para vir deles a força de vontade para aprender e integrar-se?
Sempre me revi como moderado e eleitor do centro, mas neste momento não há nenhum partido do arco da governação com medidas de bom senso que aponte para estes problemas. Não é este o país que eu quero deixar aos meus filhos.. Não foi neste país que eu cresci… Onde não há respeito pela história e cultura nacionais. Queixo me eu e queixa-se disto boa parte do meu circulo que há um par de anos consideravam xenofobia apontar estas situações.