De vez em quando a Mouraria entra nas notícias e nem sempre pelas melhores razões, como aconteceu recentemente com o incêndio que vitimou duas pessoas.

Mas este território de muitas cores, sabores e línguas, onde o Bangladesh, o Nepal, o Paquistão e a Índia se encontram nos cheiros do Martim Moniz e do Intendente tem muitas históras para contar. Quem são estas pessoas? Que histórias são estas que chegam a Lisboa? De onde vieram, para onde pensam ir? E que desafios encontram nesta nova terra a que agora chamam casa?

Faltavam dados para contar as histórias da Mouraria. Foi por isso que o Centro Nacional de Apoio à Integração de Migrantes (CNAIM) propôs à associação Renovar a Mouraria um estudo no âmbito do projeto ALI – Atendimento Local para a Inclusão.

Liderado pelo técnico Ivan Bustillo, o estudo passou pelas mãos de duas estagiárias da associação, Maria Mascarenhas e Astrid Hardeel, e de um grupo de mediadoras culturais que levaram o inquérito para o terreno (Larib Mujahid, Farhana Akter, Sabee Shrestha, Shari). O estudo foi apresentado num workshop participativo no Centro de Inovação da Mouraria.

Quem faz parte desta comunidade migrante?

A amostra deste estudo foi de 302 pessoas, o que corresponde a cerca de 10% da população da Mouraria. Aqui, abordaram-se quatro tópicos principais: as nacionalidades do bairro, a composição dos agregados familiares, as profissões e os tipos de habitação.

A maioria destes migrantes chega à Mouraria vinda do estrangeiro ou de outra zona do país (89% são imigrantes, 11% são migrantes internos).

Nepal, Bangladesh e Paquistão são os países de origem mais comuns e as principais línguas maternas o português, o bengalês e o nepalês. Entre os migrantes inquiridos, falam-se 40 línguas maternas

Fonte: Análise Situacional da Comunidade Migrante da Mouraria

Estes migrantes estão na sua maioria entre os 18 e os 35 anos (53%), são mais homens do que mulheres (54% versus 45%), são casados (48%), cuidadores ou encarregados de educação (78%) e vivem maioritariamente em apartamentos ou moradias alugadas (apenas 17% tem casa própria). Uma grande parte (51%) vive com familiares diretos.

De uma amostra de 173, uma grande percentagem (92%) tem ainda dependentes económicos a viver fora de Portugal ou do país de origem.

Fonte: Análise Situacional da Comunidade Migrante da Mouraria

A sua ligação com a Mouraria divide-se sobretudo entre morada e trabalho (32% estão desempregados, 24% trabalham por conta de outrem e 22% são trabalhadores independentes) e a maioria tem o secundário completo, licenciatura ou mestrado.

Alguns têm filhos inscritos em instituições educativas (22%), sobretudo no ensino primário (47%) ou secundário (33%).

Para além de tudo isto, 14% afirmam identificar-se com uma etnia (hindu, caucasiano, mandinga…) e 68% afirma ter uma afiliação religiosa (51% islamismo, 19% hinduísmo, 12% catolicismo).

O que os trouxe a Lisboa?

Facilidade em conseguir-se documentos, procura de melhor qualidade de vida e reagrupamento familiar oficial foram os principais motivos que trouxeram estes migrantes a Lisboa. E Lisboa foi a primeira escolha para a maioria (70% para os imigrantes, 74% para os migrantes internos).

Chegaram a Lisboa em períodos variados: gráficos do estudo permitem ver que há um grande crescimento na imigração a partir de 2015, que cresce ainda mais em 2020, caindo nos últimos tempos.

Quanto aos migrantes internos, o pico dá-se entre 1965 e 1970, diminuindo drasticamente até crescer de novo entre 2010 e 2015. A partir de 2020, volta a subir, mas não com a mesma força do período anterior.

Fonte: Análise Situacional da Comunidade Migrante da Mouraria

Para quem ponderou outros países (35%), França, Inglaterra e Alemanha foram opções postas na mesa. Para os migrantes internos, aqueles que consideraram outras cidades levantaram a possibilidade do Porto, Almada, Paris, São Paulo…

A maioria quer ficar em Lisboa (84% dos imigrantes, 94% dos migrantes internos). E muitos têm projetos para o futuro, como abrir um negócio ou trabalhar no seu desenvolvimento profissional.

Fonte: Análise Situacional da Comunidade Migrante da Mouraria

Que desafios em Lisboa?

Apenas 49% dos imigrantes consideraram o processo de integração fácil. O número aumenta quando se fala de migrantes internos (70%). Mas que desafios são então aqueles que encontram na capital?

Um deles prende-se com a habitação: 36% dos migrantes inquiridos revelam partilhar residência com outros migrantes que não sejam seus familiares diretos (2% chega mesmo a viver com 25 migrantes).

Fonte: Análise Situacional da Comunidade Migrante da Mouraria

Na sua maioria, usam o sistema de saúde público (80%), os serviços do SEF (77%) mas não tanto os do CNAIM (apenas 43%).

A questão da inclusão parece ainda ser um problema a resolver: apenas 10% afirmam pertencer a uma comunidade de migrantes (entre elas, a Non Resident Nepalese Association ou a Comunidade Hindu), embora 48% considerem que pertencer a uma comunidade seria “algo importante”.

Uma minoria diz fazer parte de algum grupo ou organização de acolhimento (aquelas com mais migrantes serão a Renovar a Mouraria e a Rizoma), mas 51% vê a pertença a estas organizações também como “algo importante”.

Se a maioria destes migrantes recorre à ajuda de um membro da família ou de um amigo perante dificuldades da vida quotidiana, a verdade é que também considera que seria importante contar com alguém da comunidade nessas situações, bem como em dificuldades relacionadas com instituições públicas ou entidades laborais.

Apesar de tudo isto, a maioria sente que faz parte da sua comunidade de migrantes e que está integrada na comunidade de acolhimento.

No que toca a problemas relacionados com a discriminação, uma grande parte revela não se sentir discriminado pela cor de pele, religião, género, nacionalidade, etnia, orientação sexual ou identidade de género, mas a percentagem já sobe quando se fala em discriminação face ao desconhecimento da língua portuguesa (48%) ou por ter sotaque (34%).

A discriminação é sobretudo sentida em espaço público.

Fonte: Análise Situacional da Comunidade Migrante da Mouraria

Como se olha para os resultados?

Perante estes resultados, de que forma podem atuar as associações como a Renovar a Mouraria? Rita Velez Madeira refere-se a projetos futuros que querem alcançar mais pessoas. “Em breve abriremos um novo espaço na Renovar a Mouraria, onde qualquer pessoa pode estar”, diz. “Quando isso acontecer, haverá toda uma campanha de comunicação, divulgando projetos que nos aproximam mais do território”.

A técnica de comunicação da associação diz que iniciativas como os encontros de vizinhos (o próximo realizar-se-á este sábado) já têm proporcionado uma maior ligação entre aqueles que vivem na Mouraria. “Nestes encontros tínhamos pessoas do Bangladesh, do Nepal e de Portugal, todas juntas a discutir problemas do bairro”.

*Texto alterado depois do incêndio do fim de semana de 4/2/2023

Ana da Cunha

Nasceu no Porto, há 27 anos, mas desde 2019 que faz do Alfa Pendular a sua casa. Em Lisboa, descobriu o amor às histórias, ouvindo-as e contando-as na Avenida de Berna, na Universidade Nova de Lisboa.

ana.cunha@amensagem.pt

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2 Comentários

  1. É importantíssima essa integração. Claro que apenas acontecerá com mais facilidade numa 2a geração, que já fale português e que esteja já mais familiarizado com os hábitos culturais portugueses (higiene, comida, trabalho, etc), sendo deveras importante para que situações de xenofobia não aconteçam e que haja, de parte a parte, um sentimento de comunidade. Obrigado Renovar a Mouraria!

  2. É um pouco surreal que este artigo não fale do desiquilibrio de género que se sente na Mouraria. Ou o estudo não é representativo ou as mulheres imigrantes estão confinadas em casa e isso não incomoda ninguém. Hoje em dia passar pela rua do Benformoso pelas 19h para uma mulher é no mínimo uma experiência assustadora. Eu considero-me de esquerda e acho uma vergonha que só a extrema direita fale destes temas. As associações fazem muito pouco pelas mulheres e meninas imigrantes e locais.

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