Neste artigo:

1 - Quantas lojas de proximidade inauguraram nos últimos anos?
2 - Das pequenas mercearias aos hipermercados e shoppings: o que fez a cidade mudar?
3 - “Novas ofertas ao encontro de novas procuras”: o renascer do comércio local?
4 - O impacto das cadeias no comércio local – e o papel social das mercearias?
5 - As cadeias, as franquias e as mercearias que resistem
6 - Vida simplificada para o consumidor, mas não sem riscos
7 - Rizoma: a mercearia que nasceu para o consumo ético e o preço justo

Durante décadas, o negócio das pequenas mercearias de bairro foi dando lugar às compras feitas de carro, nos centros comerciais e grandes supermercados inaugurados na periferia da cidade (estrategicamente localizados ao longo dos grandes eixos rodoviários). A vida de bairro, do comércio de proximidade, como o conhecemos durante anos, desapareceu, esvaziando Lisboa dessa tradição. E esta nova vida parecia ter vindo mesmo para ficar.

Mas, agora, o cenário está novamente a alterar-se.

Uma nova tendência de valorização do comércio de rua está a fazer aparecer pequenos negócios de comércio alimentar, muitas vezes iniciativa da crescente população migrante da cidade, mas sobretudo a levar à alteração da estratégia comercial dos grandes retalhistas, que hoje apostam em lojas de proximidade.

O que significa isto para a dinâmica nas cidades? E para as velhas mercearias de bairro?

Quantas lojas de proximidade inauguraram nos últimos anos?

Façamos as contas: são dezenas de supermercados de rua e mercearias inauguradas na última década em Lisboa, ligadas aos grandes grupos a operar em Portugal.

Mas, nos últimos cinco anos, o fenómeno intensificou-se particularmente: os grupos Sonae e Auchan, donos de duas das cadeias de retalho alimentar em maior crescimento, inauguraram 38 supermercados de rua, 75% do total da presença dos dois grupos em Lisboa – só neste período, o grupo Auchan inaugurou em Lisboa 22 das suas 25 lojas.

E, em alguns eixos da cidade, a proliferação de supermercados das grandes cadeias começa a dominar a paisagem do comércio alimentar. Vejamos o caso dos três quilómetros do eixo da Avenida Almirante Reis, onde há hoje 21 supermercados dos grandes grupos do retalho alimentar:

Dentro dos limites da cidade, há hoje 26 lojas Continente Bom Dia, 25 lojas My Auchan, 56 lojas Minipreço, 16 lojas Meu Super, 18 lojas Amanhecer. Isto, enquanto as antigas mercearias de bairro iam desaparecendo.

Das pequenas mercearias aos hipermercados e shoppings: o que fez a cidade mudar?

Uma das certezas na vida da cidade é a constante mudança do comércio. E o que acontece especificamente às lojas de produtos alimentares e mercearias de Lisboa marca muito toda a paisagem urbana – dizem em uníssono Teresa Barata Salgueiro, Herculano Cachinho e Pedro Guimarães, três especialistas em comércio urbano.

Se até aos anos 70 grande parte do comércio alimentar da cidade estava distribuída “por pequenos estabelecimentos independentes”, nos anos 80 e 90 começaram a aparecer “em força” as grandes cadeias de retalho alimentar, diz Pedro Guimarães.

Investigador do Centro de Estudos Geográficos (CEG) da Universidade de Lisboa

O investigador do Centro de Estudos Geográficos (CEG) da Universidade de Lisboa, especialista em gentrificação comercial e políticas de planeamento comercial ressalva que, apesar de seguirem estratégias “ligeiramente diferentes”, os grandes grupos, como a Sonae e a Jerónimo Martins, inicialmente centraram a sua aposta nos hipermercados e supermercados de maior dimensão. E concentrados nas cidades.

Foi depois, durante a expansão urbana da cidade, nos anos 80/90, com a saída de centenas de milhares de pessoas de Lisboa em direção aos novos subúrbios, que o comércio alimentar da cidade começou a alterar-se radicalmente: a maioria das novas grandes superfícies comerciais foi nascendo numa área regional “relativamente fora do município de Lisboa” e junto às grandes vias rápidas e autoestradas que conduzem aos subúrbios residenciais dos concelhos à volta da cidade.

E os centros comerciais começaram a surgir, tendo como loja “âncora” uma grande superfície de comércio alimentar, um super ou um hipermercado, explica Herculano Cachinho, geógrafo e professor associado no Instituto de Geografia e Ordenamento do Território (IGOT) da Universidade de Lisboa e especialista em comércio e consumo em contexto urbano.

“Não há um centro comercial que não tenha como âncora um hipermercado.”

Herculano Cachinho, geógrafo e professor associado no Instituto de Geografia e Ordenamento do Território (IGOT) da Universidade de Lisboa

Já em 1991, este era o panorama da distribuição das grandes superfícies nas cidades de Lisboa (em baixo) e Porto – tendo o Porto maior predominância de hipermercados e Lisboa de centros comerciais. No mapa em baixo, percebemos como a distribuição da força comercial se começava a espalhar do centro para a periferia, à mesma velocidade com que abriam shoppings na capital.

Retirado do estudo “Baixa de Lisboa: Reconstruída para os portugueses – Reconstruída para os turistas” / Autor:   Nobre, Tânia Isabel – Faculdade de Letras da Universidade de Coimbra – 2015
Retirado do estudo “Baixa de Lisboa: Reconstruída para os portugueses – Reconstruída para os turistas” / Autor:   Nobre, Tânia Isabel – Faculdade de Letras da Universidade de Coimbra – 2015

Há quem acuse os centros comerciais de aplicar uma cultura “completamente antagónica num país como Portugal”, como dizia Tiago Quaresma, gestor da Valor do Tempo (fundadora da Mensagem de Lisboa) e proprietário de várias marcas na Baixa, numa reportagem sobre o desaparecimento do comércio nesta zona. “Com a qualidade que temos, com o sol que temos, com a história que temos nos centros históricos, é insano que de repente tivéssemos achado todos, durante tanto tempo, que era muito razoável enfiarmo-nos uma tarde inteira num centro comercial. Mas todos, de alguma maneira, comprámos este sonho, durante décadas. Pelo menos durante 25 anos, este foi o hábito vigente.”

E, do ponto de vista da economia, diz, os centros comerciais “são perigosíssimos”, na medida em que isolam nas mãos “de nem sequer meia dúzia” todo o poder de evolução económica do país.

António Moura, empresário da Baixa desde há muito e estudioso do seu desenvolvimento, concordava e acrescentava que os shoppings constituíram e constituem um entrave ao progresso de marcas nacionais. “Os lojistas novos olhavam para as ruas e viam-nas envelhecidas e sem tráfego, então iam bater à porta dos shoppings, mas estes não queriam marcas ainda não conhecidas ou consolidadas.”

Numa analogia simples, “é como se tivéssemos aberto grandes torneiras para Portugal, mas com água internacional, ao passo que essa torneira se fechou às marcas nacionais”, explica António.

“Novas ofertas ao encontro de novas procuras”: o renascer do comércio local?

Com o tempo, a estratégia de abertura de grandes lojas na periferia da cidade chegou a um ponto de “saturação de mercado”, explica Pedro Guimarães.

O especialista lembra que as grandes cadeias do retalho alimentar “são empresas, grupos económicos, que obviamente procuram rentabilizar o seu negócio”. Nesta lógica, a procura pela inovação e a fuga à dita “saturação do mercado” ditaram uma nova estratégia: procurar os “espaços e territórios de onde mais conseguiriam retirar benefícios e o capital espacial que conseguiriam rentabilizar em cada local”. Foi assim, conta, que “surgiu o investimento nas pequenas mercearias e pequenos supermercados” de proximidade, marcando a entrada das grandes cadeias no centro da cidade.

E, à conta disto, na última década, tudo se alterou na paisagem comercial alimentar de Lisboa.

A anterior perda de peso do comércio de proximidade na capital está hoje a reverter: as compras feitas no bairro, a pé, estão agora a conquistar terreno às deslocações automóveis para as grandes superfícies e as grandes compras do mês aparentam estar a dar lugar às compras do dia ou da semana, feitas localmente.

E a pandemia pode ter tido um papel nisto, obrigando ao confinamento das pessoas nos seus bairros, mas também preocupações “com o ambiente, a ecologia, com o andar mais a pé e eventualmente com [o conceito] da cidade dos 15 minutos”. Quem o diz é Teresa Barata Salgueiro, geógrafa, especialista em comércio urbano e professora catedrática emérita no IGOT.

Hoje, a aposta nas grandes superfícies de retalho alimentar está a ser “substituída por novas lógicas e novas ofertas que vão ao encontro de novas procuras”, explica.

Teresa Barata Salgueiro, especialista em comércio urbano. Foto: Frederico Raposo

Por um lado, há novos pequenos comércios alimentares a surgir, novas mercearias, entre as “gourmet” (com um “ambiente muito diferente da tradicional loja apertada”) e as promovidas por uma faixa da crescente população migrante que respondem às necessidades de uma população urbana e trabalhadora que requer horários alargados.

Por outro, surgem agora em força dezenas de pequenas lojas e mercearias das grandes cadeias que estão a alterar a paisagem comercial da cidade – como são exemplo os My Auchan, Amanhecer, Continente Bom Dia, Mini Preço Express, etc.

Depois da aposta “saturada” nas grandes superfícies, estes grupos tiveram de “reinventar-se” e alinharem-se com as novas formas de vida (muitas trazidas com os hábitos da pandemia), explica o especialista Herculano Cachinho. Apostam agora na “loja de proximidade, que é precisamente para aquele quarteirão [da cidade]”, diz, referindo-se ao raio de de ação mais limitado destes estabelecimentos pequenos, que acabam por servir sobretudo quem vive e trabalha junto aos mesmos.

Hoje, presenciamos um “retorno à proximidade” e, para isto, podem estar a contribuir vários fatores. Se antes a estratégia das grandes cadeias “jogava com a acessibilidade e a facilidade de aceder a estacionamento – e tudo o que era vias rápidas elas estavam lá”, agora “quem ganha é o que está próximo”. “Acho que o comércio de rua está a renascer novamente”.

Supermercado da cadeia My Auchan na Avenida Almirante Reis. Foto: Líbia Florentino

“É uma coisa que acontece nas sociedades e que as grandes superfícies percebem e antecipam. Querem vender e vender mais e, portanto, é óbvio que vão ao encontro destas destes vagas de fundo que se detectam na sociedade”, acrescenta Teresa Salgueiro.

O impacto das cadeias no comércio local – e o papel social das mercearias?

Antes de tudo, importa esclarecer: se é certo que as mercearias da cidade estão a desaparecer há anos, também o é que este vazio criado na cidade não tem necessariamente como causa a recente aposta na proximidade por parte das cadeias de retalho alimentar.

“Nunca há uma causa” para o desaparecimento, ao longo das últimas décadas, das mercearias de bairro como as conhecíamos, sublinha Teresa Barata Salgueiro. “Temos a mania de simplificar – tudo preto, tudo branco, mas os problemas são complexos.”

Hoje, as lojas de rua das cadeias de retalho alimentar – como as lojas My Auchan, Continente Bom Dia, Pingo Doce, Minipreço ou Aldi – não são negócios familiares, passados de pai e mãe para os filhos, mas o papel social destes estabelecimentos comerciais de proximidade vai encontrando forma de persistir.

A relação entre cliente e trabalhador da mercearia acaba hoje por também ser reproduzida nas lojas de proximidade das cadeias, afirma Herculano Cachinho, e até mesmo em hipermercados. Acontece entre clientes habituais e os trabalhadores da peixaria ou da padaria, diz. Assim, este é um lado que pode não ter sido perdido com o encerramento de muitas das antigas mercearias.

Em fevereiro do ano passado, contámos a história do supermercado Anjani, no Areeiro, que aposta na seleção e variedade de produtos e que faz da relação com os clientes a estratégia para o sucesso da loja – independente de cadeias e aberta há dez anos.

As cadeias, essas, vão replicando as estratégias das mercearias antigas para se integrarem nos bairros da cidade.

O diretor de Novos Conceitos da Auchan Retail Portugal, dona das lojas My Auchan, Pierre-Olivier Delpierre, explica que em cada nova localização da cadeia de supermercados há uma procura pela integração no tecido social e comercial local. O responsável exemplifica com o empréstimo de tróleis para as compras, “a pensar na população mais envelhecida” e com a contratação preferencial de trabalhadores que “vivam o mais perto possível da loja, contribuindo para uma melhor conciliação da vida pessoal e profissional”.

No caso das mercearias das marcas Meu Super ou Amanhecer – cuja expansão se baseia no modelo da franquia (ou franchising) – a familiaridade e a integração no tecido social dos bairros são, por definição, mais facilmente garantidas. Neste modelo, as grandes cadeias de retalho alimentar “partilham o risco” com pequenos empresários, que passam a , explica Pedro Guimarães: adotam a imagem da rede de lojas a que aderem e, para uma parte significativa do abastecimento, estão contratualmente obrigados a utilizar os canais logísticos da cadeia em questão. Muitas vezes, encontramos o mesmo vendedor da antiga mercearia ao balcão, mas não os mesmo produtos – o nome daquele lugar também mudou.

É o caso da Casa do Café do Pote d’Água, em Alcântara, aqui desde 1937. Arlindo Fernandes trabalha nesta loja há 44 anos e tornou-se sócio há duas décadas. O trato com os clientes que entram e saem evidencia a familiaridade do negócio.

Arlindo Fernandes é hoje sócio da mercearia de Alcântara em que trabalha há mais de 40 anos. Foto: Frederico Raposo

As cadeias, as franquias e as mercearias que resistem

Arlindo decidiu, há dois anos, assinar contrato com a Jerónimo Martins e a mercearia tornou-se em mais uma franquia da marca Amanhecer. A mudança fez-se, em parte, com a vontade de renovação da imagem, tirando partido da alteração estética que a mudança dá – o toldo vermelho, novo -, mas também com a possibilidade de melhorar a alguns preços e fazer algumas promoções.

Já viu fechar muitas mercearias no bairro, algumas depois da chegada ao bairro de grandes superfícies de cadeias, como a loja Pingo Doce, a escassas centenas de metros. Mas, aqui, para além do toldo e de alguma seleção de produtos, pouco mudou. E isso é bom, garante. A clientela, a mesma de sempre, do bairro, mantém-se fiel.

Aqui, os corredores apertados são os mesmos e mesmo do lado da oferta nem tudo está diferente. Apesar de ser obrigado a seguir os canais de distribuição da cadeia de mercearias Amanhecer, o contrato que assinou permite que 40% dos produtos sejam adquiridos fora, a outros produtores e distribuidores. Esta é a submarca de retalho alimentar que se expande com recurso à franquia, da Jerónimo Martins, a dona da cadeia Pingo Doce.

“Com muito trabalho, 18 horas por dia”, o negócio continua de pé. E assim vai continuar, garante.

A expansão das cadeias de retalho alimentar a partir do franchise é hoje uma evidência em Lisboa.

Muitas das novas adições às redes de mercearias, como as lojas Meu Super ou as lojas Amanhecer, não resultam de novos negócios. São dos “antigos comerciantes que já lá estavam”, explica Herculano Cachinho. Vários acabam por associar-se às cadeias porque encontram vantagens no modelo da franquia: “a imagem, o facto de eu poder ter a central de compras onde não tenho que ir ao MARL para abastecer, etc. Tudo isso já compensa”.

Das 47 lojas Meu Super no distrito de Lisboa, mais de metade – 25 – surgiram a partir de mercearias já existentes, explica João Melo, diretor geral da cadeia da Sonae, presente no mercado há 13 anos.

Nas respostas que a Auchan enviou à Mensagem, a marca anuncia que, à semelhança da estratégia de proximidade seguida pela Sonae e Jerónimo Martins, também a multinacional francesa planeia abrir, no primeiro semestre deste ano, a primeira loja My Auchan franchisada em Lisboa.

Vida simplificada para o consumidor? Mas não sem riscos para a cidade

Se é verdade que não está hoje provada uma ligação direta entre a recente proliferação de superfícies de retalho alimentar das grandes cadeias e o encerramento das mercearias tradicionais da cidade – um processo que já leva décadas -, Herculano Cachinho não esconde que, em alguns casos, pode haver uma relação.

“As cadeias não querem saber se existem, ou não, estabelecimentos em determinado local”. Sempre que abre uma nova loja, pode acontecer que alguns estabelecimentos vão à falência e, aí, diz, pode dar-se “um empobrecimento” ao nível da oferta e do tecido comercial local, já que muitas vezes “o comércio de proximidade independente tem outros fornecedores que estas cadeias não têm”.

Pedro Guimarães não tem dúvidas de que quem ganha com a recente “disseminação” de supermercados e mercearias das grandes cadeias por Lisboa é o cliente. “Para o consumidor, é ótimo”, já que “conseguimos encontrar pequenos supermercados e mercearias por quase toda a cidade”.

Mas nem tudo é bom, considera.

“Cada vez mais o mercado está controlado por grandes cadeias de grandes grupos.” E a concentração “não deixa de ser um problema”, já que “estamos a deixar que alguns operadores controlem os circuitos de distribuição alimentar”.

Em agosto do ano passado, o grupo Auchan anunciou a compra da cadeia de supermercados de proximidade Minipreço, o que faz crescer substancialmente o peso do grupo nas ruas de Lisboa – de 25 lojas para 81.

As grandes cadeias de retalho alimentar têm vindo a reforçar a sua aposta no comércio de proximidade, com a abertura de dezenas de lojas de rua nos últimos anos. Foto: Líbia Florentino

Ao longo dos últimos anos, a Autoridade da Concorrência decretou, por várias ocasiões, a aplicação de coimas no valor de centenas de milhões de euros às grandes cadeias de retalho alimentar por concertação de preços. No espaço de menos de dois anos, entre 2016 e 2017, foram aplicadas coimas num valor que ultrapassou os 675 milhões de euros a seis cadeias de retalho e nove fornecedores.

O alerta é também deixado por Arlindo Fernandes e Herculano Cachinho confirma: os preços mais baixos não estão necessariamente nas grandes superfícies e nos supermercados dos grandes grupos. Em alguns produtos, como acontece com alguns frescos, podem encontrar-se preços mais baixos nas pequenas mercearias, como a de Arlindo, e em lojas independentes.

Cunhado pelo urbanista Carlos Moreno, o conceito de cidade dos 15 minutos tem vindo a ser apontado como modelo para a qualidade de vida nos centros urbanos, preconizando um modelo de urbanismo em que as necessidades de quem habita na cidade podem ser satisfeitas num raio de 15 minutos, a pé ou de bicicleta. Foto: Rita Ansone

Para além da oferta e dos preços, os canais de distribuição das grandes cadeias podem não responder à crescente preocupação com a sustentabilidade ambiental, com o preço justo ao produtor ou com a priorização da venda de produtos locais e biológicos.

Em resposta, começam timidamente a surgir alternativas no mercado à iniciativa capitalista no retalho alimentar e que, por vezes, surpreendem no preço ao consumidor.

Rizoma: a mercearia que nasceu para o consumo ético e o preço justo

A cooperativa integral Rizoma, que visitámos em 2022, continua a crescer. De 30 cooperantes em 2020, para 300 em 2022 e mais de 600 em janeiro deste ano. Destes, 380 fazem compras na mercearia da cooperativa.

Nesta mercearia comunitária, em Arroios, os produtos são escolhidos a dedo. Mariana Reboleira, uma das primeiras a juntar-se à Rizoma, em 2020, integra o grupo de trabalho de produtos da cooperativa e é uma das responsáveis por fazer prospeção de produtos e encomendas para a mercearia.

A sazonalidade, a produção biológica, a proximidade dos produtores à cidade, a forma como os produtos são transportados e, claro, o preço são critérios base para a escolha e integram o guia de princípios de produtos, um dos primeiros documentos aprovados na cooperativa, “quando ainda éramos 20 ou 30”, conta Mariana. “No fundo, descreve uma utopia do tipo de produto que gostávamos de ter, com critérios sociais e ambientais”.

Rapidamente, perceberam que, como em qualquer utopia, tinham que fazer cedências, mas o caminho que seguem está bem delineado e os produtos que hoje a mercearia vende refletem isso mesmo – a sazonalidade, a sustentabilidade, a proveniência, a justiça do preço.

Desde a sua fundação, há quatro anos, que a mercearia comunitária ocupa um lugar central na vida da cooperativa. Na sua organização horizontal, os cooperantes contribuem com um turno de três horas a cada quatro semanas, assegurando o funcionamento da loja e reduzindo os custos com recursos humanos, ao mesmo tempo que é fomentada a responsabilidade coletiva para com a manutenção da mercearia.

Na mercearia da Rizoma, o desafio é ainda o de aumentar o número de cooperantes que aqui faz uma parte substancial das suas compras. Não é tarefa fácil, explica Mariana, já que, na hora de encher o carrinho de compras, a questão da conveniência da localização “é incontornável”.

Mariana Reboleira, umas das primeiras pessoas a integrar a Rizoma, em 2020. Foto: Líbia Florentino

Atualmente, “15% dos membros asseguram 50% da faturação” – algo que tentam, pouco a pouco, equilibrar. No ano passado, promoveram entre os membros da cooperativa a campanha Viver Sem Supermercados, convidando as pessoas da cooperativa a experimentar passar um mês sem ir a um estabelecimento das grandes cadeias de retalho e apoiando os pequenos negócios e produtores, procurando fazer da mercearia da Rizoma a escolha principal para as compras domésticas.

O preço não é esquecido na hora de escolher os produtos da mercearia e, garante Mariana, conseguem nalguns casos praticar preços inferiores aos das grandes superfícies.

“Somos os mais baratos de Lisboa no tofu e no seitan”, diz com orgulho, sublinhando que por princípio nunca negoceiam o preço que lhes é proposto pelos produtores e distribuidores. “Pagar menos por determinado produto é a desvalorização do trabalho do produtor. Mas depois todos nós temos que viver com os nossos salários. Acho que [esta] é uma das nossas grandes tensões.”

Hans Eickhoff integra o mesmo grupo de trabalho de Mariana e explica que antes de irem parar às prateleiras da mercearia, os produtos são escolhidos com base em critérios que privilegiam, entre outros, “a proximidade aos produtores” ou os produtos biológicos – tudo para que aqui se saiba que o que se está a comprar tem o menor impacto ambiental possível, reflete de forma justa os custos de produção e respeita os trabalhadores.

“Apesar de não ser fácil para uma loja tão pequena concorrer com as outras superfícies, conseguimos ter valores baixos”.

Foto: Líbia Florentino

Hoje, tentam posicionar-se entre os supermercados e as cadeias de produtos biológicos, que Mariana classifica de “meio elitistas dos produtos biológicos”.

Mas, conta, os melhores morangos que comeu na vida vieram das prateleiras da Rizoma, provenientes de um produtor do Montijo e “mais baratos do que no supermercado tradicional”.

Na mercearia da Rizoma, os objetivos para este ano estão bem definidos e as pessoas que constituem a cooperativa acreditam no seu cumprimento: querem chegar ao break even – isto é, que as receitas da mercearia cubram os custos. “Vai ter de acontecer”, diz Mariana. E, para assim ser, a aposta é no aumento do valor médio de consumo por pessoa.


*Nota de edição 17h02
Acrescentada recém chegada informação sobre a presença da rede de mercearias Meu Super no distrito de Lisboa.


Frederico Raposo

Nasceu em Lisboa, há 30 anos, mas sempre fez a sua vida à porta da cidade. Raramente lá entrava. Foi quando iniciou a faculdade que começou a viver Lisboa. É uma cidade ainda por concretizar. Mais ou menos como as outras. Sustentável, progressista, com espaço e oportunidade para todas as pessoas – são ideias que moldam o seu passo pelas ruas. A forma como se desloca – quase sempre de bicicleta –, o uso que dá aos espaços, o jornalismo que produz.

frederico.raposo@amensagem.pt


O jornalismo que a Mensagem de Lisboa faz une comunidades,
conta histórias que ninguém conta e muda vidas.
Dantes pagava-se com publicidade,
mas isso agora é terreno das grandes plataformas.
Se gosta do que fazemos e acha que é importante,
se quer fazer parte desta comunidade cada vez maior,
apoie-nos com a sua contribuição:

Entre na conversa

9 Comentários

  1. Olá Frederico,
    Mais uma vez, muito bom artigo!
    Um pequeno alerta para o seguinte parágrafo que parece estar truncado:
    “Aqui, os corredores apertados são os mesmos e mesmo do lado da oferta nem tudo está diferente. Apesar de ser obrigado a seguir os canais de distribuição da cadeia de mercearias Amanhecer, o contrato que assinou permite que 40% dos produtos adquiridos Esta é a submarca de retalho alimentar, que se expande com recurso à franquia, da Sonae, a dona da cadeia Continente.”

  2. Nunca as novas lojas de proximidade irão substituir as mercearias antigas. Pelo papel social que desempenhavam. Comecei a trabalhar numa aos ,12 anos. E éramos 14 ou 15 miúdos. Éramos tratados como filhos. Comiamos dormíamos e trabalhava mós. E não esquecer que todas as mercearias tinham um livro de fiados. Onde muitas vezes se desenrascava . As pessoas. Até ao final do mês. Isso é que era proximidade.

  3. Porque motivo não incluiram a cadeia de supermercados Pingo Doce no mapa da Avenida Almirante Reis e proximidades?

  4. Olá, Vasco. Obrigado pelo reparo, por lapso não foi incluída. Estamos a corrigir. Obrigado!

  5. Olá, Ricardo. Obrigado pelo reparo! Está corrigido.

  6. Caro Frederico Raposo, muitos parabéns por mais um excelente contributo para dar a conhecer o Comércio DA nossa Cidade (ou será, antes, o Comércio NA nossa Cidade)? Fica a dúvida!

  7. “Arlindo decidiu, há dois anos, assinar contrato com a Sonae e a mercearia tornou-se em mais uma franquia da marca Amanhecer.”

    Não queria dizer Jerônimo Martins?

    Meu super = Sonae
    Amanhecer = Jerónimo Martins

  8. Ainda bem, meus senhores, ainda bem. Depois do consumidor generalista ter delapidado o comércio de mercearias locais em prol das lojinhas de “conveniência ” geridas por emigrantes asiáticos (sem traços de quer parecer racista, claro.) , preferindo sempre estas, por “serem mais baratas ” as quais cresceram para dominar bairros inteiros, com lojas atrás de lojas atrás de lojas, sempre com a mesma repetida oferta, e com os tais preços sempre iguais a afinal em relação à qualidade “não tão baratos “, preferindo sempre estas em prol de lojas com qualidade higiene e apresentação , sim porque estas lojas de conveniência, não sem se quem lá vai tem olhos na cara, mas de certo iriam reclamar, sem sombra de dúvida se entrassem numa mercearia tradicional e encontrasse tinta a cair das paredes, ou falta de asseio geral, mas destas nada dizem, por “serem baratas” ????. Portanto depois de terem acabado com o tradicional comércio local, é muito bom que as cadeias de supermercados estejam a apostar nestas boas modernas e higiénicas lojas de proximidade. Venham elas…venham mais…

  9. “Mas todos, de alguma maneira, comprámos este sonho(é insano que de repente tivéssemos achado todos, durante tanto tempo, que era muito razoável enfiarmo-nos uma tarde inteira num centro comercia), durante décadas. Pelo menos durante 25 anos, este foi o hábito vigente.”

    Pelos vistos, este senhor não é muito frequentador de centros comerciais aos fins de semana, para se dar com um comentário destes…qualquer português com dois palmos de testa, e que entre num Vasco da Gama ou Colombo, ou Oeiras Parque, vê que isto é bem mentira, ora senão as grandes superfícies já tinham decerto fechado…
    Outra obvia explicação para a ausência de grandes enchentes em muitos centros comerciais e grande superfícies, pede-se com o facto de, há 20 ou mais anos a opção para quem vivia fora de lisboa era extremamente limitada…que queria tinha de se deslocar a Lisboas e curtos arredores para fazer compras.
    Agora, já não existe essa necessidade, as e grande superfícies e supermercados estão espalhados porto todo o distrito de lisboa,, eu se quiser ir à Mango ou à Fnac, já não tenho que ir a lisboa coma à 20 anos, tenho em qualquer zona do distrito.

    “muitas trazidas com os hábitos da pandemia”

    Continuamos a debater e bater no ceguinho com esta já gasta e esfarrapada desculpa para o comportamento humano…é de ser cansativo, até admira que não digam que as coisas estão como estão por causa da II Guerra, ou da crise dos misseis de Cuba, ou da Guerra do Vietname…
    As lojas de proximidade apresentam um nicho, uma oportunidade de as marcas preencherem um vazio existente nos bairros, tal como as óticas, as seguradoras, as casas de aparelhos auditivos, etc…

    “A concentração de mercado pode estar a ter como resultado uma diminuição da diversidade de produtos nas prateleiras, mas também tem vindo a manifestar-se ao nível da concertação de preços.”

    Muito esta gente fala da concertação de preços das cadeias de supermercados, deve ser fetiche de certeza…estão sempre a protestar e reclamar que os preços são iguais no Super A,B ou C,
    Mas olhem não ouço ninguém se queixar da concentração de preços nas gasolineiras…,na eletricidade…, nas operadoras NOS, MEO e demais, que ano após ano apresentam preços iguais para os mesmos produtos, os quais nós somos enganados a aderir com promoções, mas que mais tarde se veem a revelar iguais a todos os outros…

    “Rizoma: a mercearia que nasceu para o consumo ético e o preço justo”

    Mais uma calinada, do editor desta reportagem…senhor não muito conhecedor da realidade em que vivemos, ou da realidade à sua volta…
    Já tive a oportunidade de ir a essa tal loja Rizoma, tenho de ser sócio é logo a primeira, de uma “cooperativa comunitária”, preços!!?, bem se for sócio, cá fora encontro miai barato (€2,89 por 1 Kg maçãs) se não for sócio encontro ainda mais barato cá fora.
    Enfim o que dizer de uma mercearia em que a página Web e logo de início apresentada em inglês???
    Para portugueses????
    Tudo ou paticamente tudo que eles vendem, existe com preços mais em conta e mais baratos em qualquer loja de indianos, Pingos Doces, Lidl’s, Minipreços, e acima de tudo esta gente tem de entender uma coisa…o português comum (principalmente na zona onde a loja está inserida)
    não tem dinheiro, tem os tostões contados até maio do mês, com sorte, se apresentarem uma mercearia comunitária com produtos de qualidade, mas com preços insuportáveis, e um Minipreço com preços que possam pagar…essas pessoas vão escolher qual???

    Portanto não, ainda não é desta que vencem os Supermercados e grandes superfícies

    Enquanto o povo comum não tiver dinheiro, vai sempre preferir as excursões à grandes superfícies, e supermercados, ´´e inevitável, só se forem loucos é que vão fazer compras ao comércio tradicional onde se paga neste momento 3 vezes mais pou um cabaz para uma família de 4 pessoas
    Do que se esse cabaz for comprado nessas mesmas grandes superfícies…

    Mercearias de “toldo preto” não, não…

    Supers…Sim Sim

Deixe um comentário

O seu endereço de email não será publicado. Campos obrigatórios marcados com *