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É no meio de prédios e carros que o francês Sylvain Papyon cultiva e conversa com quem passa e se debruça sobre o muro de vegetação para conversar. A sua maior ambição é tornar-se agricultor urbano a tempo inteiro e, pelo caminho, provar que a agricultura de pequena escala é viável. Para já, afirma, é um “agricultor sem terra”.

Lisboa foi a cidade onde Sylvain, 39 anos, decidiu fixar-se e é aqui que tem as suas três hortas (na Calçada do Monte, na Escola Josefa de Óbidos e na Ajuda), mas a sua ligação à agricultura e à jardinagem começou muito longe, num lugar onde havia uma produção agrícola abundante e muita agricultura especializada de alta qualidade: em França, mais especificamente no Vale do Loire. Foi lá que nasceu e viveu a sua infância e juventude.

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Tinha uma parte da família ligada ao campo e foi com ela que teve o primeiro contacto com o processo de cultivo, com os gestos de cuidado e paciência que fazem nascer frutos, vegetais, flores, ervas aromáticas. Lá podia colher e comer diretamente o que cultivava e via crescer dia após dia. “Eu conhecia o fascínio de ver as coisas a crescer, sempre achei muito gratificante”, conta. 

Entre o tempo de se apaixonar pelo trabalho na terra e o tempo de escolher a agricultura como profissão poder-se-ia dizer que viveu duas, três, até quatro vidas. De França partiu para Inglaterra para estudar Comunicação, em Lincoln e depois mudou novamente de país, para Espanha e, mais tarde, até de continente – foi trabalhar para a China, em 2006, ao serviço de uma marca de música da qual era produtor. A paixão pela música invadia-lhe as horas vagas e era também DJ.  

Sylvain Papyon andou pelo mundo até chegar a Lisboa, onde tem o sonho de criar “ilhas” de agricultura de pequena escala. Foto: Rita Ansone

Em 2012 uma viagem de trabalho trouxe-o a Lisboa e decidiu mudar novamente de vida para morar aqui. “A mudança não é algo de que tenha medo”, garante. Saiu do trabalho que o tinha trazido até Portugal, a marca estava a ter dificuldades em manter-se e sentiu que o caminho se tinha esgotado. Por outro lado, encontrou em Lisboa o amor por uma portuguesa, uma rede de novos amigos e conhecidos e o maravilhamento pela beleza de uma cidade de colinas.  “A cidade é bastante bonita, a topografia faz com que tenhas muitos pontos de vista, há sempre novas perspetivas. O que é bom porque eu sempre vivi em cidades planas. Há sempre muitas vistas abertas e muita luz”, diz. 

A terra a quem a trabalha

Sem saber que emprego encontrar em Lisboa, já que sentia ainda a língua diferente como uma barreira no mercado de trabalho, surgiu a oportunidade que o aproximaria de novo às memórias de infância. Em 2013, a Câmara Municipal de Lisboa cedia um terreno à Associação Cozinha Popular da Mouraria para produção de alimentos que abastecessem a cozinha. Sylvain conhecia a Associação, tinha gosto pelo projeto e tempo livre, e ainda o gosto latente pela agricultura, o que o levou a propor-se como responsável pelo terreno.

A experiência foi tão gratificante e entusiasmante que decidiu que o faria mais seriamente dali em diante. Por isso, foi para França durante quatro meses tirar um curso intensivo, especializado em agricultura de pequena escala, ou seja, agricultura feita em terrenos pequenos. 

Sobre as plantas da horta da Calçada do Monte, diz que as conhece ainda melhor de olhos fechados. É no sossego das noites de verão que melhor cuida delas. “Venho à noite e não vejo nada, mas ao tocar a planta, sinto se está forte, seca, murcha. É tudo sobre os sentidos, então é muito estimulante, cria habilidades para compreender as coisas”, conta.

É neste lugar onde se fundem os cheiros a jasmim, menta e erva cidreira que encontra o seu lugar de paz. Pode contemplar Lisboa inteira da sua solidão, enquanto escuta os pássaros e o zumbir das abelhas. “Quando estou aqui sozinho posso focar-me no que estou a fazer, nos gestos e escapar um pouco das preocupações”. 

As únicas afrontas a esta paz são as lesmas e as ervas daninhas, que diz serem os maiores inimigos de um agricultor. Além disso aponta a falta de espaço e os terrenos pequenos como a maior limitação para o seu trabalho. 

Pedagogia, sustentabilidade e comunidade

Atualmente encontra uma valorização dos seus produtos na Cooperativa Rizoma, para onde escoa parte da produção e faz consultoria para empresas na área da sustentabilidade. Mas não se fica por aí.

O trabalho com a comundade e com as escolas é para Sylvain um veículo fundamental de difusão do modelo de agricultura de pequena escala que defende. Foto: Rita Ansone

Encontra-se semanalmente com crianças numa horta pela qual é responsável na Escola Josefa de Óbidos, em Campo de Ourique, e no Parque Hortícola 2 de Maio, na Ajuda, onde desenvolve um projeto de agricultura familiar, todas as tardes de domingo. Não abdicaria desta dimensão pedagógica na sua atividade. “Se eu realmente quisesse só produzir hortaliças, podia alugar um terreno fora de Lisboa, barato e com boas condições, mas depois a parte educativa e social não ia acontecer”, conta. 

O contacto com a comunidade é também uma forma de difundir o modelo da agricultura em pequena escala. Leva a agricultura urbana a quem não consegue envolver-se diretamente e promove um estilo de vida mais sustentável.

 Aquilo que defende para Lisboa é o desenvolvimento da agricultura de pequena escala, através de uma rede articulada de hortas urbanas que empregaria novos agricultores urbanos por meio de centros de formação e escoaria os produtos para os mercados locais. “Mas também é possível ter uma plataforma digital para agregar a produção local da cidade e distribuir por restaurantes, mercados locais ou diretamente aos consumidores”, explica.

No processo, promover-se-ia a literacia alimentar e potenciar-se-ia a preservação da biodiversidade, a mitigação das ondas de calor que afetam principalmente os centros urbanos e o escoamento das águas pluviais. 

Ao criar circuitos que aproximem produtores e consumidores, é também possível reduzir a pegada ecológica associada ao consumo alimentar e tornar a cidade mais autossuficiente. Se este modelo não é viável só por si, devido à limitação de espaço na cidade e à densidade populacional, ele pode, segundo Sylvain, funcionar como um complemento à agricultura de grande escala, sendo a fonte de produtos frescos e vegetais da estação.

“Há um potencial para criar produções específicas para responder a específicos nichos no mercado. Isso permitiria a agricultura de pequena escala ser lucrativa e viável no ambiente da cidade”, defende. 

A população beneficiaria de produtos mais sustentáveis, saudáveis e de um ambiente com maior biodiversidade, que, explica Sylvain, é menor nos jardins clássicos que ocupam a cidade. Veemente e convicto, defende que é possível atualizar a cidade à luz do que já se fazia no século XIX, quando alguns dos produtos dos mercados ainda eram produzidos dentro da cidade ou nos arredores.

Um “sem terra” à conquista de Lisboa

Para já, afirma, é “um agricultor sem terra” e as suas hortas são mais reservas de biodiversidade do que locais de produção intensiva. Para mudar isso, seria necessário o aproveitamento dos terrenos baldios que abundam na cidade, em zonas como Olivais, Marvila, Ajuda, Benfica, Chelas ou Carnide e que têm sido progressivamente urbanizados. 

Sylvain Papyon à conversa com a nossa estagiária Rita Velez Madeira. Foto: Rita Ansone

Construiu a sua visão para Lisboa através da formação e da leitura académica, mas também se inspirou no que se está a fazer noutras cidades. Em Paris há já espaços próximos da cidade interditos à urbanização e hortas urbanas a surgirem em topos de edifícios, como é o caso da “Nature Urbaine”, um projeto realizado no Paris Expo Porte de Versailles, o maior parque de exposições da França. Ao todo, preveem a produção de mais de mil frutas e vegetais por dia, de cerca de 20 espécies diferentes. Do outro lado do Atlântico, em Detroit, surge o primeiro bairro urbano agrícola dos Estados Unidos em North End. Lá produzem 300 variedades de vegetais e alimentam gratuitamente cerca de duas mil famílias. 

Sylvain acredita que é possível fazer algo proporcionalmente semelhante em Lisboa. Conversa e promove diariamente o seu sonho coletivo com quem passa e se debruça sobre a janela de vegetação, curioso e encantado, com quem frequenta as suas formações e com qualquer entidade que tenha interesse no seu projeto. Com o avançar da primavera começou a plantar abóbora, tomate, curgetes, pimenta, sempre sem químicos, na horta da Calçada do Monte.

É de lá que sonha tornar-se agricultor urbano a tempo inteiro e ajudar a transformar a cidade num lugar de produção agrícola.


*Rita Velez Madeira está a estagiar na Mensagem ao abrigo do protocolo com a Universidade Nova de Lisboa, FCSH, Ciências da Comunicação, no projeto Correspondente de Bairro. Nasceu em Évora, aprendeu a fazer casa nas viagens de comboio entre as duas cidades, com vontade de escutar e contar histórias, de viver nesse lugar de fronteira que há entre nós e o Outro. Este texto foi editado por Catarina Pires.

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3 Comentários

  1. Adorei a matéria, também sonho em ser uma pequena agricultora na cidade. Tenho um terreno vazio atrás da Vila Lopes, onde vivo, quando posso pulo o muro e vou até lá plantar e limpar o mato. É um trabalho que a Câmara de Lisboa e a Junta de Freguesia da Penha de França deixa a desejar, tenho que insistir imenso para que venham cortar as canas e o mato.

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