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O tecido comercial não é mapa estanque na cidade. Há lojas que abrem, outras que fecham e há algumas que ficam desocupadas à espera de melhores tempos. Nas ruas da Prata e do Ouro, bem no coração da Baixa lisboeta, ainda se ouve o som de uma cidade que vive, respira e transpira, puxado e empurrado por este comércio. Mas é um comércio que está a mudar de forma e a desaparecer.
Apesar do movimento, predominantemente vindo do turismo, a vida nestas ruas parece não ser suficiente para assegurar a manutenção do comércio da Baixa tal como o conhecíamos: há dezenas de lojas fechadas, muitas em consequência de rendas especulativas. Mas a instalação de cada vez mais hotéis na zona poderá ser uma das principais razões para este fenómeno.
São vários os casos de hotéis que se instalam na Baixa e que resultam na eliminação de lojas. Consultando imagens das ruas da Prata e do Ouro, duas das principais artérias da Baixa, é possível traduzir o fenómeno em números: entre 2009 (data dos mais antigos registos do Google Maps) e 2022 perderam-se 20 lojas. No lugar destas, nasceram cinco novos hotéis. Tudo isto em pouco mais de uma década.
Vejamos alguns exemplos:
Na Rua da Prata, o recém inaugurado hotel da cadeia Eurostars (a ocupar metade de um quarteirão) eliminou, por si só, cinco lojas que ali se encontravam:
A cutelaria Polycarpo (1), loja histórica da cidade, fundada em 1822, a Casa das Malas (2), uma loja de venda de malas fundada em 1887, a João Cândido da Silva (3) – loja de venda de jornais e lotarias -, uma loja de roupa (4) e uma loja de tatuagens (5).
A cutelaria teve de sair do edifício agora ocupado pelo hotel, de quatro estrelas e 60 quartos, e ficou apenas com uma pequena loja, ao lado.
Sem sair desta rua, por onde passam os carris de elétrico, a caminho da Praça da Figueira, o Hotel da Baixa, inaugurado em 2018 e com 66 quartos, eliminou seis lojas.
Entre estas, em 2009, estava a drogaria S. Pereira Leão (1), a histórica Discoteca Festival (2), que encerrara uns anos antes de surgir o hotel, uma loja de vestuário (3), uma pastelaria (4), e uma das últimas lojas de venda de prata da rua – a Dragão de Prata (5), também encerrada alguns anos antes da chegada do hotel, e uma segunda loja de vestuário (6). No lugar das seis lojas, encontra-se ali apenas uma esplanada do espaço de restauração.
‘Mais hotéis, menos lojas’ é uma ciência exata?
Parte da história resume-se assim: na Rua do Ouro, a abertura do The 7 Hotel significou o desaparecimento de cinco lojas, entre elas a loja de chaves e medalhas Montenegro Chaves e Cª Lda. e uma ourivesaria; também nesta rua, o My Story Hotel Ouro encerrou quatro lojas, entre as quais estavam uma farmácia, uma ourivesaria e uma pastelaria; neste espaço encontra-se, hoje, apenas uma pastelaria e o restaurante do hotel.
A instalação de vários hotéis, que aqui nos últimos anos surgem como cogumelos, tem resultado na eliminação de parte do comércio de rua. Uma situação que tem vindo a ser denunciada pela União de Associações do Comércio e Serviços (UACS): Carla Salsinha, presidente da direção desta união, há muito que encara o desaparecimento de lojas em consequência da abertura de novos hotéis como problemática.
“Ainda no executivo anterior, a União foi severamente crítica em relação a isso. Cada unidade hoteleira pode levar ao fecho de seis ou sete lojas, e não há substituição”.
CARLA SALSINHA, UACS
Na altura, diz a presidente da direção da UACS, foi dado o alerta ao município de que “correríamos o risco, daqui a uns anos, se não houvesse um critério, uma seleção e um cuidado na avaliação dos projetos e na autorização, de termos uma Baixa só com autocarros para entrarem os turistas, porque tudo o resto iria desaparecer”. Foi isso que foi acontecendo, afirma.
“Muito do comércio desapareceu. Não por falta de sustentabilidade, nem teve nada a ver com a pandemia. Foi uma opção que se tomou nas unidades hoteleiras.”
CARLA SALSINHA, UACS
A Baixa conta, atualmente, com 31 hotéis, 1411 quartos e mais unidades de Alojamento Local (AL) do que residentes. São 977 unidades de AL para 969 residentes no perímetro da Baixa Pombalina. Os dados são do Turismo de Portugal e do Censos 2021, filtrados para um perímetro que considera a planta ortogonal da Baixa Pombalina.
Em breve, a Baixa vai albergar mais hotéis ainda. Um dos maiores atualmente em construção é o Hotel Hyatt Andaz Lisboa. Esta unidade ocupa um quarteirão inteiro da Rua do Ouro e vai contar com 169 quartos. Anteriormente, o edifício pertencia ao Millennium BCP. Em breve, abrirá também um hotel do grupo Pestana na Rua Augusta, junto à Praça do Comércio, e que contará com 89 quartos.
Sobre a importância do turismo para a cidade, Carla Salsinha afirma que a união a que preside tem “plena consciência de que Portugal e particularmente Lisboa só beneficiam com o turismo. Mas tem de haver um contrapeso e equilíbrio e perceber que as nossas cidades só são interessantes para o turismo se tiverem vida”.
Quem decidiu a perda de lojas, pessoas e História?
O edificado da Baixa Pombalina, agora candidata a Património Mundial, tem vindo a sofrer uma reabilitação ao longo dos últimos anos. Esse processo, embora necessário, tem trazido consigo alguns dissabores. O aumento da atividade turística tem afastado dali população residente e tem-se manifestado, também, numa profunda mudança do tecido comercial.
Ao longo da última década, a freguesia de Santa Maria Maior, território que integra o perímetro da Baixa Pombalina, perdeu 22% dos seus habitantes, revelam dados do último recenseamento da população, em 2021, conduzido pelo Instituto Nacional de Estatística (INE). Foi a segunda freguesia da cidade que mais perdeu habitantes, logo a seguir à Misericórdia, que perdeu 26% da sua população residente, também em consequência da intensificação da atividade turística.
A perda de população não é a única conta de subtrair que é preciso fazer nestes últimos anos. A Baixa está também a perder comércio, apesar de ter as ruas cheias dia após dia, já longe dos silenciosos dias da pandemia, que tiveram o dom de colocar a nu a crescente orientação monofuncional daquele território, cada vez mais virado para o turismo, enquanto noutros bairros da cidade, o movimento prosseguia e o comércio local prosperava.
Depois das zonas do Bairro Alto, na freguesia da Misericórdia, e de Alfama, em Santa Maria Maior, é na Baixa Pombalina que é visível uma das maiores manchas de Alojamento Local da cidade. Mas também de hotéis. Quando olhamos para o mapa, vemos que é aqui que está a maior concentração de hotéis na cidade.
Se antes sabíamos onde estaria uma determinada loja seguindo a orientação dada pelos nomes das ruas – as ourivesarias na Rua do Ouro, os tecidos na Rua dos Fanqueiros ou os sapateiros na Rua dos Sapateiros – hoje já não é assim. O tecido comercial mudou, o nome das ruas deixou de ajudar na tarefa de encontrar determinado ofício, mas as lojas, cada vez mais dedicadas ao público turista, continuam a fazer da Baixa lisboeta um local de comércio e de consumo.
O tecido comercial muda inevitavelmente, diz-nos Pedro Guimarães. É investigador do Centro de Estudos Geográficos (CEG) da Universidade de Lisboa, especialista em gentrificação comercial e políticas de planeamento comercial, e entende que há comerciantes a ser “empurrados para sair”, sobretudo pelas mudanças populacionais e pela subida das rendas.
Descreve a situação atual: “Mesmo que as lojas se mantenham, mudam o produto e acabam por excluir a população local. É nesta confluência de vários aspetos que se enquadra a gentrificação comercial, naturalmente associada a uma mudança geral do comércio, do comércio tradicional ou local por um comércio mais fino e orientado para um novo público, mais caro”.
“Um processo de gentrificação habitacional e comercial implica, no caso comercial, a substituição de determinado tipo de comércio por outro. No caso da Baixa, as atividades associadas ao comércio de bens e serviços destinados a servir determinados objetivos têm vindo a ser substituídas por lojas que servem um público turista e por grandes cadeias e marcas com poder económico.”
PEDRO GUIMARÃES, investigador
No que respeita ao papel da hotelaria na eliminação do comércio de rua da Baixa, Carla Salsinha aponta para a responsabilidade da autarquia, no momento do licenciamento. “Cabe à câmara dizer que temos de ter aqui um equilíbrio, de forma a poder ter a hotelaria com essa ocupação das lojas no piso térreo, mas ter também, em simultâneo, as lojas”, diz.
“É a câmara quem licencia, a câmara é que pode, em cada apresentação de projeto dizer que [determinado uso] tem de ficar, ter essa sensibilidade de, em cada projeto de hotelaria, dizer que se há um edifício com seis lojas, pelo menos duas ou três têm de ficar”, diz.
Como se resolve o comércio da Baixa?
Numa reportagem publicada no final de 2021, demos conta da realidade do comércio nas ruas da Prata e do Ouro. Naquela altura, contavam-se 60 lojas fechadas nestas duas ruas. Na totalidade da Baixa, a Associação de Dinamização da Baixa Pombalina contava mais de 110 lojas fechadas. Hoje, a realidade não será muito diferente.
Enquanto mais unidades hoteleiras preparam a sua abertura na Baixa, a questão que se coloca é se a sua abertura significará, uma vez mais, o encerramento de mais lojas. Tem mesmo de ser assim?
Se a instalação de hotéis representa hoje uma ameaça para o comércio de rua na Baixa, os valores das rendas não garantem a muitos negócios a necessária viabilidade económica. “Estamos a falar de valores, hoje, na Baixa de Lisboa, de sete, oito ou dez mil euros por mês”, afirma Carla Salsinha.
“Se fizermos a conta a 12 meses por ano, só com o que tem de pagar-se de renda, se não forem grandes grupos ou grandes cadeias, não é fácil para um comércio de rua, de passagem”
CARLA SALSINHA
Pedro Guimarães considera que a Baixa lisboeta se tornou hoje num território “totalmente monofuncional”, na sua orientação turística. “É um espaço de consumo”, diz, denunciando que hoje é difícil até encontrar lugares para sentar. Os que se lembra de encontrar, nas ruas perpendiculares à Rua Augusta, artéria pedonal e centro da vida turística da cidade, “hoje em dia são esplanadas”.
O investigador não considera a eliminação de lojas dos pisos térreos de edifícios ocupados por unidades hoteleiras como o mais problemático para o comércio da Baixa, que hoje raramente visita. Diz ser “normal que o comércio mude. O comércio vai sempre mudar. Vai sempre encerrar, abrir”. Lembra que há duas décadas “esta área estava em declínio profundo, por via das transformações comerciais dos anos 1990, do aparecimento dos centros comerciais, dos hipermercados. Tudo isso levou ao declínio do comércio da Baixa”.
Critica a “desregulação” do comércio e defende que seja realizado um novo recenseamento comercial da cidade, para que o resultado da informação recolhida possa informar novos instrumentos de ação no território.
Uma carta de ordenamento comercial?
Pedro Guimarães sugere a instituição de uma carta de ordenamento comercial, um documento em que é definida a natureza do comércio a abrir em cada edifício, como se faz já em Cardiff, capital do País de Gales, diz. Por cá, é algo de que se fala já “há décadas”, diz. Mas nada se fez.
O papel do PDM
Pode mesmo ser através dos documentos que orientam o urbanismo da cidade que se pode começar a fazer alguma coisa. É o próprio coordenador da última revisão do Plano Diretor Municipal de Lisboa, datada de 2012, a dizê-lo.
Paulo Pais é arquiteto e chefiou o departamento de planeamento urbano da Câmara Municipal de Lisboa até junho de 2022. Em entrevista, explica como documentos orientadores do urbanismo da cidade, como o Plano Diretor Municipal (PDM) ou o Plano de Pormenor, podem ajudam a definir os usos a que se destinam as ruas e os vários pisos dos edifícios e podem ajudar a impedir que o comércio existente seja eliminado quando surgem novas unidades hoteleiras.
“O PDM pode definir que em determinadas ruas ou em determinados eixos o rés do chão só pode ser destinado a um determinado uso, ou pode, de uma forma geral, dizer que por uma questão de proteção de determinado uso, não são permitidas mudanças de uso”, diz Paulo Pais. No caso de Lisboa, isso não acontece.
E o Plano de Pormenor?
Entre as ferramentas ao dispor dos municípios para ordenar a cidade e os seus territórios encontramos também o Plano de Pormenor. Através de um plano destes, “é mais simples detalhar essas regras” e o perímetro da Baixa Pombalina é mesmo gerido de acordo com um plano destes, desde 2011. É o Plano de Pormenor de Salvaguarda da Baixa Pombalina.
Embora pudesse assegurar a manutenção do carácter comercial de frações nos pisos térreos, este plano permite “a total afetação dos edifícios existentes a um único uso, nomeadamente habitação, serviços, comércio ou equipamentos”, lê-se no artigo 17º do documento.
Segundo Paulo Pais, este documento poderia “criar regras de salvaguarda relativamente às áreas comerciais existentes, não permitindo mudanças de uso”.
Na opinião do arquiteto, o atual Plano de Pormenor de Salvaguarda da Baixa Pombalina “já tem bastantes anos, necessitava de ser revisto”. Para evitar a eliminação de lojas em consequência da instalação de mais unidades hoteleiras, defende “um ponderamento dessas situações, para ser salvaguardado o comércio”, afirma.
“É evidente que não é indiferente que, numa rua com caráter comercial, de repente o comércio seja todo suprimido numa parte da mesma. Isso altera substancialmente o caráter e a vivência da rua“
PAULO PAIS
O caso de Florença
No caso concreto dos hotéis, Paulo Pais aponta para o exemplo da cidade italiana de Florença.
Na zona central e mais turística, explica, “o lobby do hotel não é no rés do chão, é no primeiro andar, precisamente porque há uma lógica de salvaguarda do comércio local”. No caso de Florença, “todo o rés do chão comercial está intacto, para manter o caráter da rua. Pode ser um bom princípio para ser ponderado numa futura alteração ao plano da Baixa”, diz.
Por lei, a cada dez anos “deve haver uma revisão do PDM”, recorda o arquiteto. Apesar de se tratar de um prazo meramente indicativo, “terá, pelo menos, de haver uma avaliação daquilo que foi o resultado da evolução da cidade”. Na revisão do PDM de Lisboa, que tem sido pedida por forças políticas com representação na Câmara Municipal de Lisboa e poderá realizar-se em breve, deverão ser tidas em conta as novas dinâmicas de transformação da cidade, que não estiveram na base de elaboração deste PDM”, diz Paulo Pais.
É precisamente isto que Carla Salsinha reivindica. No momento em que o PDM da cidade, ou o Plano de Pormenor de Salvaguarda da Baixa Pombalina, vier a discussão, diz, o impacto da hotelaria no comércio da Baixa “é uma das coisas que a União vai levar a debate”.
“Na nova revisão, terá de haver essa salvaguarda por uma questão de equilíbrio. Podem até ser as próprias unidades hoteleiras a arrendar as lojas ao preço que entendem. Agora, têm é que manter-se [as lojas]”, diz a dirigente da UACS.
Por enquanto, com os valores das rendas em alta e com novos hotéis em construção – e outros já aprovados – o futuro do comércio da Baixa permanece em risco.
Frederico Raposo
Nasceu em Lisboa, há 30 anos, mas sempre fez a sua vida à porta da cidade. Raramente lá entrava. Foi quando iniciou a faculdade que começou a viver Lisboa. É uma cidade ainda por concretizar. Mais ou menos como as outras. Sustentável, progressista, com espaço e oportunidade para todas as pessoas – são ideias que moldam o seu passo pelas ruas. A forma como se desloca – quase sempre de bicicleta –, o uso que dá aos espaços, o jornalismo que produz.
O jornalismo que a Mensagem de Lisboa faz dantes pagava-se com anúncios e venda de jornais. Esses tempos acabaram – hoje são apenas o negócio das grandes plataformas. O jornalismo, hoje, é uma questão de serviço e de comunidade. Se gosta do que fazemos na Mensagem, se gosta de fazer parte desta comunidade, ajude-nos a crescer, ir para zonas que pouco se conhecem. Por isso, precisamos de si. Junte-se a nós e contribua:
Para além todas razões apontadas , não esquecer abertura em excesso de centros comerciais, e lojas chinesas , o que matou todo o pequeno comércio,baixa e restantes sítios …
A ideia claramente errónea de que aquilo que não é PLANEADO não merecerá ser GERIDO, resumirá a situação do atual “(Des)Comércio” do centro da Cidade.
Nasci em Lisboa há 7 décadas. O meu primeiro emprego foi na Rua do Ouro. O segundo foi no Chiado. Passei anos sem ir à Baixa. Ultimamente voltei a ir à Baixa. Completamente diferente. Só se vêem turistas. Não me desagrada. Penso que é óptimo para o PIB. No eixo Alvalade/Colombo temos tudo o que precisamos. Compras na Baixa/Chiado? Nem pensar. Só para visitar museus ou igrejas. E bares.
Que saudade descer a rua Garret ou Carmo nos idos70´- 80´s e ver as lojas com as suas montras, no crepùsculo de outono / inverno o vendedor de castanhas no passeio… essa imagem baixa da minha juventude,irá comigo quando eu for! Fiquem com os hóteis e os turistas, porque qualquer dia nem vista para o Tejo tÊm….
Tristíssimo, e para quem aqui vive restam as compras em enfadonhos e superlotados centro comerciais, na maioria desenhados, como todo o resto da cidade, para quem conduz o automóvel particular, e evidentemente não vai no seu caminho a observar e participar de toda essa sociabilidade do cotidiano que bem descreveu o leitor António Jorge…