É tranquilo como o bairro onde cresceu e para onde veio viver aos cinco anos. Nasceu perto, há 58 anos, na Clínica de São Miguel, em Alvalade, e antes de vir para o Bairro das Estacas, o músico e compositor Rodrigo Leão viveu no 4.º esquerdo de um prédio da vizinhança, na Rua General Pimenta de Castro, na altura Rua José Malhoa, onde voltaria a morar muitos anos depois, já adulto e reconhecido pelo grande público – o da cidade e o do país.

Antes de se mudar para a Bica, do outro lado de Lisboa, partilhou casa em Benfica, na rua da Venezuela, e viveu num duplex – “um luxo” –, numa zona bonita da Amadora. Hoje, divide-se entre a Bica e Aviz, no Alentejo, mas é aqui, ao Bairro das Estacas, que volta sempre.

Afinal, foi aqui que forjou amizades para a vida – durante a conversa, um casal amigo com a filha, ao saírem de um prédio e sem perceberem que estava a dar uma entrevista, alegraram-se: “Rodrigo, Rodrigo”. Mas também aqui se fez músico, aqui criou a Sétima Legião e a banda Madredeus. Com a liberdade e o horizonte que, na altura e sem ele saber, a rua arquitetada por Gonçalo Ribeiro Telles lhe deu.

É este arquiteto, o homem que desenhou os espaços verdes do bairro que diz ser o seu, que Rodrigo Leão vai agora homenagear em palco. O Tivoli receberá o concerto gratuito com que culminam as comemorações dos 100 anos que tiveram como mote “Olhar o Futuro com Ribeiro Telles”, no domingo, dia 18 de junho, pelas 21h00. À música que lhe dedica intitulou-a de “Bairro das Estacas”.

Antes, convidámo-lo para uma conversa:

Vieste viver para o Bairro das Estacas com cinco anos. Como foi crescer aqui, nesta tranquilidade?

Acho que tive a sorte de ter uma infância e uma adolescência felizes. Fiz aqui grandes amigos que ainda hoje são os meus melhores amigos. Talvez existisse mais liberdade para uma criança brincar na rua.

Eu sou o mais velho de quatro rapazes e a minha mãe sempre nos deu uma liberdade muito grande de andarmos na rua o dia todo. De vez em quando ia à varanda espreitar e nós estávamos aqui a jogar futebol, a falar, inventávamos o hóquei em patins aqui debaixo do alpendre, junto à entrada dos prédios.

Tínhamos os patins e jogávamos, mas íamos muito também para aquele lado do Bairro das Estacas, para aqueles jardins que são os mesmos de há 50 e tal anos. Brincávamos muito por aí, andávamos de bicicleta.

Cresceste aqui e agora vives na Bica, que é outra Lisboa.

Vivo na Bica, que, aliás está de parabéns. Estou lá há 22 anos e a Bica nunca tinha ganhado uma marcha. Eu que não sou grande apreciador destas festas – confesso que é muito barulho para mim – fiquei contente. Sim, foi uma grande mudança, fui parar a uma zona onde há muita gente nas ruas, mais estrangeiros do que portugueses, infelizmente, mas é uma zona fantástica, vamos a pé para o Cais Sodré, para o Bairro Alto, para o Chiado.

Claro que gosto muito de ter o rio Tejo à frente, temos essa sorte, de ter uma varanda com vista, mas continuo a ter uma grande paixão por este bairro onde cresci. Venho cá muitas vezes jantar com os meus irmãos a casa do meu pai. Também continuo a ir muito ao bairro de Alvalade porque temos um estúdio ao pé da RTP e jantamos muitas vezes em Alvalade. Gosto de passear na Avenida de Roma, conheço a luz de manhã e da tarde, sei sempre onde está o sol, é um sítio muito tranquilo.

Que diferenças sentes no bairro, dos anos 1970 até agora?

A verdade é que não noto assim muitas diferenças, continua tudo quase na mesma. Com pessoas novas a morarem aqui, claro, mas continua a existir o mercado, continua a existir o café onde parávamos muito e a que na altura chamávamos o Senhor Ivo.

Passávamos lá muito tempo, não só a falar das músicas que queríamos fazer, estou a lembrar-me de ter uma oral de Direito Constitucional – estava no curso de Direito, de que desisti no 2º ano – e de o Francisco Menezes, que também faz as letras da Sétima Legião e neste momento é embaixador em Berlim, estar a ajudar-me a estudar e em meia hora explicar-me meia dúzia de coisas. Tenho muito boas recordações deste bairro.

E do cinema King também, imagino. É uma tristeza ver isto assim, fechado. Ter um cinema mesmo ao lado de casa fez de ti um cinéfilo?

Também, quando eu era miúdo o King chamava-se Voz e era uma maravilha para as crianças, com matinés aos sábados. Depois, na minha adolescência foi o paraíso, porque passava filmes muito bons e houve uma altura, a melhor para mim, em que tinha uma livraria lá dentro, julgo que da Assírio & Alvim.

Sei que quando ias sair à noite ao Bairro Alto, ao Frágil, o regresso a casa era feito a pé. Um esticão…

Com 16, 17 anos, começámos a ir uma vez por semana, aos fins de semana, ao Bairro Alto e estávamos absolutamente fascinados com aquelas tascas todas, onde podíamos estar meia hora num sítio e depois meia hora noutro.

O último autocarro do Martim Moniz era à uma e meia da manhã ou coisa assim e, quando o perdíamos e provavelmente já não tínhamos dinheiro para o táxi porque já tínhamos gastado o dinheiro todo em cervejas, começávamos a subir a Almirante Reis até à Praça do Chile. Essa paragem era obrigatória, os bolos quentes.

Lembro-me de duas ou três vezes em que subi a avenida cheio de cólicas, por causa dos bolos quentes. Mas fazia-se bem, da Praça do Chile rapidamente chegávamos aqui.

A geração de 1980 não esquece, depois das saídas à noite, os bolos quentes de madrugada, na Praça do Chile. Foto: Inês Leote

O Bairro Alto dos anos 1980 marcou a tua geração, não foi?

O Bairro Alto foi muito importante para mim durante muito tempo, até porque foi lá que conheci a minha mulher, há 24 anos, a Ana Carolina.

A minha mulher e alguns amigos viriam a ficar com o Frágil. O Manuel Reis passou o Frágil para esse grupo de amigos e foi lá que conheci a Ana Carolina e depois acabei por entrar também como sócio. Passámos ali muito bons momentos, durante anos.

E já mesmo com um Bairro Alto muito diferente, uma vez por semana, podíamos estar no Frágil com os nossos amigos, organizávamos exposições de pintura, concertos e uma série de coisas. Dava-nos muito gozo.

Mas foi aqui no Bairro das Estacas que nasceram a Sétima Legião e a Madredeus.

A Sétima Legião sim, a Madredeus aqui perto. O Pedro Ayres Magalhães morava na Avenida Estados Unidos da América, onde ainda hoje vive a mãe, creio eu, e encontrávamo-nos muito em casa de uns e de outros e nos cafés da Avenida de Roma, porque havia uma altura em que frequentávamos muito cafés como o Luanda ou o Vava e muitas vezes antes de irmos para o Bairro Alto encontrávamo-nos precisamente lá, a seguir ao jantar, para apanharmos o metro e depois o Elevador da Glória, nos Restauradores. Quando chegávamos ao Bairro Alto parávamos logo à primeira tasca, que era o Estádio, penso eu.

Rodrigo Leão no bairro das estacas.
Rodrigo Leão subirá, no domingo, 18 de junho, ao palco do Tivoli para o concerto de encerramento do centenário do nascimento de Gonçalo Ribeiro Telles. Foto : Carlos Menezes.

Como é que estes lugares de Lisboa influenciaram a tua música?

A minha música é muito abstrata, muito intuitiva, raramente penso num tema, mas estou a lembrar-me da Rua da Atalaia: tenho uma música que se chama “Rua da Atalaia”, que era a rua do Frágil. Tendo Lisboa uma grande influência na música que faço, é de uma maneira que não consigo explicar concretamente. A luz, as pessoas que vejo no dia a dia, tudo isso acaba por marcar.

O arquiteto Gonçalo Ribeiro Telles e a forma como ele transformou a paisagem de Lisboa também marcaram?

Devemos muito ao arquiteto Gonçalo Ribeiro Telles por termos estes espaços verdes extraordinários em Lisboa e eu de há uns dias para cá fui à procura e encontrei as intervenções que ele fez, algumas que desconhecia, e é verdade que Lisboa inteira deve-lhe muito.

Além destas, no Bairro das Estacas, com as quais cresceu e onde brincaste em miúdo, que outras te marcaram?

Os Jardins da Gulbenkian, claro. Lembro-me de adolescente ir com a minha mãe ver concertos na Gulbenkian e chegarmos meia hora antes e andarmos ali naqueles jardins. Há uns oito anos, gravei um disco com a orquestra da Gulbenkian e vivi ali dez dias, sempre naqueles jardins, e era uma inspiração.

Neste concerto de encerramento do centenário do arquiteto Gonçalo Ribeiro Telles, há uma música dedicada particularmente a ele.

Isto surge de um convite, já há dois anos, do meu amigo Paulo Trancoso, que preside à comissão de comemoração do centenário do nascimento de Gonçalo Ribeiro Telles, que aceitei com enorme gosto.

Vou ensaiar agora e já estava a trabalhar no tema, que se chama “Bairro das Estacas” e é uma música que tem um lado alegre, porque faz-me lembrar a infância e adolescência que passámos aqui, obviamente sempre com esta paisagem desenhada pelo Gonçalo Ribeiro Telles.

Vamos ver como é que sai, mas estou muito contente por poder participar nesta homenagem ao arquiteto com quem me cruzei penso que uma vez há 35 anos, talvez, quando a Madredeus tocou, na sede penso que do PPM, para o tempo de antena do partido dele, ao qual o Miguel Esteves Cardoso e o Pedro Ayres Magalhães estavam ligados de alguma forma.

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Catarina Pires

É jornalista e mãe do João e da Rita. Nasceu há 49 anos, no Chiado, no Hospital Ordem Terceira, e considera uma injustiça que os pais a tenham arrancado daquele que, tem a certeza, é o seu território, para a criarem em Paço de Arcos, terra que, a bem da verdade, adora, sobretudo por causa do rio a chegar ao mar mesmo à porta de casa. Aos 30, a injustiça foi temporariamente corrigida – viveu no Bairro Alto –, mas a vida – e os preços das casas – levaram-na de novo, desta vez para a outra margem. De Almada, sempre uma nesga de Lisboa, o vértice central (se é que tal coisa existe) do seu triângulo afetivo-geográfico.


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