Dona Leonor observa da janela do seu primeiro andar, cigarro entre os dedos, o vai e vem de meia-dúzia de miúdos atrás de uma bola, que teima em escapar dos pés velozes e descer as longas escadarias da calçada da Bica Grande, para ser devolvida ao jogo por um remate certeiro de um turista que sobe na direção contrária.
Do seu ponto de observação, dona Leonor também acompanha a conversa no passeio entre o repórter e um dirigente do Marítimo Lisboa Clube, cujas atividades foram encerraradas numa simbólica Quarta-Feira de Cinzas, quando o clube social, centro de convivência e também responsável por organizar a marcha da Bica entregou as chaves do seu espaço ao novo proprietário.
“Tenho 75 anos”, anuncia Dona Leonor da janela do seu primeiro andar, interrompendo a conversa. Em seguida, aponta com a mão, o cigarro eternamente entre os dedos, para a porta do número 3, onde um mastro sem bandeira denuncia o fim das atividades. “Tenho 75 anos e todos os meus dentes nasceram ali.”

As recordações da histórica vizinha da Bica são apenas uma entre tantas memórias que se vão perder por detrás da porta azul agora encerrada. Ao lado das tardes de dominó e jogos de cartas, da bola a correr no pequeno relvado do televisor de poucas polegadas, dos ensaios para a marcha, das celebrações pelos sete troféus conquistados. E, claro, a Marcha da Bica.
Mais que o fim do registo do quotidiano de um dos mais tradicionais bairros de Lisboa, o fecho do Marítimo Lisboa Clube é uma triste tendência na Bica.
O bairro tradicional já viu o cerrar de portas do Grupo Desportivo Zip Zip e pode também testemunhar o fim do Grupo Excursionista Vai Tu cuja sede original foi vendida e a atual deve seguir o mesmo fim.
“Quando o Vai Tu se for, a Bica ficará sem um sítio para os moradores locais conviverem”, diz Pedro Duarte, 38 anos, coordenador da Marcha da Bica, função que acumula com a de Presidente da Assembleia Geral do Marítimo Lisboa Clube e também do Executivo da Junta de Freguesia da Misericórdia, da qual a Bica faz parte.
“Para esta gestão, parece que a Misericórdia termina no elevador”, queixa-se Pedro Duarte, sem temer criticar os seus pares da Junta por uma certa inação em evitar que o Marítimo perdesse a sede e, agora, em encontrar uma solução para o futuro do clube e da marcha. “Se for para defender a Junta ou a comunidade, não tenho a menor dúvida de que lado estarei.”
O adeus de uma sede que nunca foi do Marítimo
A mágoa de Pedro Duarte é o resultado do longo e tortuoso processo da venda da sede do Marítimo Lisboa Clube, fruto de uma decisão judicial que obrigou a entidade a pagar cerca de 400 mil euros por manter uma atividade ilegal de restauração nas suas dependências, entre 2010 e 16, sem a devida autorização.
“Não podemos ser hipócritas, havia sim um bar a funcionar na sede, até porque este tipo de associação só paga as contas se tiver um bar”, reconhece Pedro. Do que ele se queixa realmente é da impossibilidade de o clube se defender nos tribunais pelo simples facto de, segundo ele, nunca ter sido oficialmente citado pela justiça.
E não o foi, saberia depois o presidente, porque a sede oficialmente nunca pertenceu ao Marítimo. Pelo menos, toda a atual sede.
É confuso mas explica-se assim: quando foi fundado, em 1944, o Marítimo restringia-se a uma porta no número 3 na Calçada da Bica Grande – a mesmo onde dona Leonor viu os seus dentes de leite nascerem.
Em 1992, a Câmara de Lisboa decidiu ceder-lhe o imóvel contíguo para uma expansão para o número 3 do Beco dos Aciprestes, perpendicular. Isto praticamente duplicou o espaço do Marítimo.
Um arco entre as paredes surgiu para ligar os dois espaços, houve inauguração oficial com representantes da Câmara de Lisboa e da antiga Junta de Freguesia de São Paulo. Mas o facto é que, conta Pedro Duarte, o imóvel no Beco dos Aciprestes nunca foi oficialmente passado para o nome do Marítimo.
“Sempre pertenceu e, até o leilão acontecer, continuava a pertencer a uns espanhóis”, diz. “Mas só soubemos disso agora, durante o processo.”

Os herdeiros dos espanhóis proprietários decidiram por não entrar na querela judicial e o processo seguiu à revelia até a sede ser arrematada num leilão por três investidores, por um valor considerado módico para os 135 metros quadrados de um imóvel na Bica, no atual cenário imobiliário de Lisboa: cerca de 230 mil euros.
A tentativa desesperada de salvar o imóvel acabou por unir forças políticas adversárias na Bica, colocando lado a lado o socialista Pedro Duarte e o produtor de teatro Duarte Nuno Vasconcellos, do CDS, também um histórico sócio do Marítimo.
“Na política, andamos em lados opostos, mas na coletividade temos uma só cor”, diz Duarte.
A última excursão do Vai Tu?
É o produtor de teatro quem conduz a reportagem numa pequena volta pela Bica, um dos bairros mais pequenos de Lisboa, restrito a pouco mais do que três ruas e quatro travessas. A primeira paragem é na sede do agora último remanescente entre as coletividades, o Grupo Excursionista Vai Tu (talvez o mais irónico de Lisboa), a alguns passos do Marítimo.
A concentração de pessoas em frente às paredes amarelas da sede levam à ilusão de ótica de que a frequência é grande. Mas basta os elevadores passarem, um a subir, outro a descer, a poucos palmos das pessoas no passeio, para se perceber que o grupo que agora se dissipa lá estava apenas para garantir o melhor ângulo para a selfie num dos cartões postais de Lisboa.

Dentro, não havia uma única alma, salvo o antigo funcionário da casa, Paulo, a passar pela enésima vez um pano húmido sobre o balcão.
As paredes registam em fotografias amareladas os dias de glória da coletividade fundada em 1948 e uma das molduras eterniza o espírito da casa: “Mais do que um grupo, somos uma família. Somos miúdos da Bica. Somos Vai Tu”.


Os miúdos da Bica hoje já passaram dos cinquenta. E a família do Vai Tu e demais nascidos e crescidos no bairro que teimosamente resistem à pressão imobiliária e permanecem na companhia dos carris do elevador, estima Duarte, não chega a cinco dezenas.
Os mais jovens seguiram outros lisboetas em direção à Margem Sul e voltam apenas nos dias de marcha. Quando voltam.

Um homem finalmente entra na sede e Paulo dá uma trégua ao pano húmido para lhe servir uma dose de ginja. Mas não é um sócio, e sim, um operário a trabalhar no imóvel à frente do Vai Tu, um futuro AirBnb.
Foi a folia desenfreada do alojamento local num dos bairros mais tradicionais e apetecíveis de Lisboa que fez com que em 2015 fez o Vai Tu tivesse de deixar a sua primeira sede, a poucos metros dali.
Um prédio de cinco andares agora totalmente transformado em alojamento local, de um empreendimento chamado City Stays. Desde então, a coletividade desceu a rua. E, para rematar a ironia do nome, acabou por se instalar ironicamente vizinho a uma… imobiliária.
“Este edifício era um prédio camarário e pagávamos cinquenta euros de renda”, lembra a presidente do Vai Tu, Águeda Polónio. “Então, a Câmara decidiu vender o imóvel e começámos a pagar mil e oitocentos de renda”, resume Águeda, dedicada à coletividade desde 1994 e presidente “há tanto tempo que já nem se lembra”.
O aumento abrupto da renda foi contornado com os fados dominicais e, principalmente, com o arrecadado durante as marchas e os Arraiais das Festas de Lisboa.
Mas a pandemia, entretanto, encerrou as portas ao fado e cancelou as marchas por quase dois anos e as dívidas acumularam-se.
A espiral de contas a pagar levou Águeda e outros da direção a amortizar os débitos com dinheiro do próprio bolso.
“Estamos hoje com as contas em dia, mas a situação é crítica e entre voltar a acumular dívidas e fechar as portas, o mais provável é a segunda opção”, confessa. “O nosso estatuto de coletividade impede-nos de voltar com o fado ou outros eventos, pois não temos como pagar os altos valores das licenças para tocar música ou abrir à noite”, explica a presidente.

E as excursões?
“Costumávamos fazer duas por ano, a última foi a Fátima, em 2017”, relembra Águeda. “Só que a malta mais nova já não está no bairro e os velhotes, bem, os velhotes…”, continua a presidente, referindo-se a um tipo de excursão que ninguém deseja fazer.
“Na Bica ou se parte pelas rendas na hora da morte ou porque morrem, mesmo.”
Coletividades e Junta tentam solução para a Bica
A nossa excursão guiada por Duarte Nuno desce a rua da Bica de Duarte Belo, ladeando os carris do elevador, e dobra à direita na rua dos Cordoeiros, cortando esplanadas apinhadas de turistas, sol na cara e copos de vinho branco na mesa.
Aos poucos, o burburinho fica para trás e resta o silêncio das portas cerradas de mais uma coletividade. Fundado em 1974, o Grupo Desportivo Zip Zip foi o primeiro a não resistir ao aumento das rendas.
“Fechou há uns dois anos”, explica Duarte, a fala subitamente cortada pelo martelar imperativo de uma obra no prédio em frente à ex-sede. A reportagem insistentemente tentou falar com a última presidente do Zip Zip, Diana Lobo, mas não obteve resposta.

Tanto Duarte Nuno quanto Pedro Duarte, porém, garantem que Diana está atenta à solução negociada pelos dois adversários políticos com a presidente do Vai Tu, Águeda Polónio, e a Junta de Freguesia da Misericórdia.
Uma solução que pode ser concretizada nas paredes grossas do Palácio dos Cordoeiros, a menos de cem metros da antiga sede do Zip Zip.
O imóvel foi a antiga sede da Junta de Freguesia de São Paulo, um dos tantos prédios da Câmara de Lisboa cedido à Junta da Misericórdia. Por ora, uma sala do piso térreo abriga um improvisado atelier do Marítimo, onde as máquinas de costura preparam o figurino para as marchas deste ano. A expetativa é de que o Zip Zip e o Vai Tu possam rumar também para lá.
A Presidente da Junta da Misericórdia, a socialista Carla Madeira, diz estar atenta e sensível ao drama das coletividades na Bica, contrariando a impressão sugerida pelo colega de executivo e presidente do Marítimo, Pedro Duarte.
Numa das últimas reuniões públicas descentralizadas da Câmara, Carla Madeira fez um apelo ao presidente Carlos Moedas para que a autarquia construísse uma solução.
“O mais exequível é que as três coletividades possam dividir um mesmo espaço, na Bica. Mas a Junta não tem imóveis. Até a sua sede, o Palácio Cabral, pertence à Câmara e é-nos cedido”, explica.

No seu terceiro mandato, a presidente recorda que a primeira situação semelhante ocorreu em 2012, no vizinho Bairro Alto, quando a coletividade responsável pela marcha do bairro, o Lisboa Clube Rio de Janeiro, foi obrigada a deixar a sede. Na época, o presidente da Câmara António Costa cedeu um imóvel e evitou o pior.
Carla Madeira acredita que a solução vai correr de forma semelhante na Bica. Mas, para já, garantiu que o Marítimo vai subir de andar no Palácio dos Cordoeiros e ocupar uma das salas que funcionam como anexo da Junta, o colorido dos tecidos e adereços e a vibrante máquina de costura a dividir o espaço com sisudos arquivos e ficheiros de papéis.
O mais provável é que outra das salas abrigue temporariamente os materiais desportivos dispersos do Zip Zip, que mesmo sem sede continua a tentar manter como pode uma rotina desportiva.
Quanto ao Vai Tu, nada ainda foi determinado. “Tenho uma reunião agendada com a presidente para começar a tratar do futuro do Vai Tu”, explica Águeda.
Até tudo ser resolvido, um dos mais pequenos bairros, em dimensão, de Lisboa e um dos maiores em tradição e charme segue como o instagramável elevador o vai e vem da especulação imobiliária.
Com a diferença de que, para as coletividades e os históricos da Bica, a memória dos tempos de alegria e dos dentes nascidos, têm tido mais dias de baixos do que altos.

Álvaro Filho
Jornalista e escritor brasileiro, 50 anos, há sete em Lisboa. Foi repórter, colunista e editor no Jornal do Commercio, correspondente da Folha de S. Paulo, comentador desportivo no SporTV e na rádio CBN, além de escrever para O Corvo e o Diário de Notícias. Cobriu Mundiais, Olimpíadas, eleições, protestos – num projeto de “mobile journalism” chamado Repórtatil – e, agora, chegou a vez de cobrir e, principalmente, descobrir Lisboa.
✉ alvaro@amensagem.pt

O jornalismo que a Mensagem de Lisboa faz une comunidades,
conta histórias que ninguém conta e muda vidas.
Dantes pagava-se com publicidade,
mas isso agora é terreno das grandes plataformas.
Se gosta do que fazemos e acha que é importante,
se quer fazer parte desta comunidade cada vez maior,
apoie-nos com a sua contribuição:
Deixe um comentário