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No passado, os muros do parque de Santa Gertrudes, ali na rua Marquês da Fronteira, cercaram lagos, cavalariças e cocheiras. Há quem assim recorde: “Por detrás da espessa muralha que o circunda, e que ostenta ela própria ameias e guaritas, floresceu assim um parque cheio de estatuetas, lagos, quiosques e tendas”, escreve Joana Cunha Leal em Às Portas de Lisboa: O Palacete de J.M. Eugénio de Almeida em São Sebastião.

Essa “espessa muralha” era então guardiã do parque de Santa Gertrudes do empresário Eugénio de Almeida (mais tarde, conde de Vilalva), que construiu um pequeno reino medieval, no que eram, à altura, as portas da cidade.
O reino abriu-se em 1884 e, ao longo dos anos, por lá passou o Jardim Zoológico, o Velódromo da Palhavã, a Feira Popular de Lisboa e, finalmente, os jardins da Gulbenkian.
Tantos anos depois, os muros sobrevivem, como uma recordação desse velho reino na rua Marquês de Fronteira, nas Avenidas Novas… mas não por muito mais tempo.
É que os antigos muros do parque de Santa Gertrudes estão em risco de desaparecer. A Gulbenkian propôs a ampliação dos seus jardins e a requalificação do edifício da Coleção Moderna, o antigo Centro de Arte Moderna (CAM). Uniram-se esforços e estabeleceu-se um protocolo entre a Câmara Municipal de Lisboa, a Fundação Calouste Gulbenkian e a Fundação Eugénio de Almeida, através do qual a autarquia comprava dois terrenos pertencentes às fundações para assim abrir mais espaço para a cidade.
Mas, para se “abrir” este espaço, prevê-se o alinhamento dos edifícios da rua Marquês da Fronteira com a rua Duque de Ávila, o que implica a transformação daquela que é a “muralha” do parque de Santa Gertrudes.
A ideia é também a criação de uma nova entrada para os jardins da Gulbenkian, cumprindo-se aquela que sempre foi a filosofia da Fundação: “o jardim aberto à cidade”. Com esta intervenção, a cidade ganha cerca de mil metros quadrados de jardim.


“Há toda uma lógica”, explica Sofia Mourão, técnica superior do Departamento de Planeamento Urbano da Câmara Municipal de Lisboa. A ideia é a criação de um espaço que integre e reforce o eixo verde que liga o Parque de Monsanto ao Parque da Bela Vista, fazendo a rua Marquês da Fronteira convergir com a requalificação do Largo de São Sebastião da Pedreira, que decorre no âmbito do projeto “Uma Praça em cada Bairro”.
Reconstruir património?
O projeto foi avaliado pela Direção-Geral do Património Cultural (DGPC) e pelo Conselho Nacional da Cultura e foi aprovado em reunião de autarquia em fevereiro de 2021. Mas a ideia de ver esta fortaleza ruir gerou algum descontentamento entre lisboetas.
“Estes muros são dos melhores exemplares da Lisboa romântica”, afirma Pedro Mascarenhas Cassiano Neves. O historiador do património de Lisboa diz não ver nenhuma “razão prática” para a intervenção. “No fim da Marquês de Fronteira, existem duas faixas de rodagem, passeios largos e uma ciclovia”, diz. Foram as notícias da intervenção que o levaram a unir-se a António Maria de Mello, presidente da Associação Portuguesa das Casas Antigas e a Pedro Bandeira Duarte, vogal da Assembleia de Freguesia das Avenidas Novas, para lançar uma petição contra a obra, que querem levar à Assembleia Municipal.
Os três concordam que alargar os jardins da Gulbenkian é algo positivo, mas não deve ser feito à custa da eliminação de património. Até porque, como defende António Maria de Mello, o muro na nova entrada norte da Gulbenkian seria uma forma de valorizar os jardins.

Não se trata de “destruir” o muro, adverte Sofia Mourão, mas sim de o “reconstruir”. E reconstruir com as suas pedras originais, baixando-o, recuando-o e deslocando-se as suas ameias e guaritas para uma parte adjacente à casa de Santa Gertrudes, conservando-se também o brasão esculpido da família.
Joana Cunha Leal, diretora do Instituto de História da Arte (IHA) que estudou a história deste património, não se opõe à nova vida que se quer dar aos muros – até porque se trata de abrir um espaço que durante anos esteve inacessível à população.
“É impossível conservar tudo”, diz. “Terá de ser um projeto com uma boa intervenção, que registe a memória do que lá aconteceu, mas a reconstrução do muro parece-me uma perda menor quando se trata de devolver um espaço à cidade”.

Do palácio privado a um jardim para todos
Para entender o que realmente se vai passar e porquê, há que viajar um pouco pelo tempo. Os jardins da Gulbenkian, como sabemos, nem sempre foram os jardins da Gulbenkian – foram antes o parque de Santa Gertrudes, nome que ainda é dado aos muros.
Foi José Maria Eugénio de Almeida, empresário bem conhecido pelo Contrato do Tabaco, Sabão e Pólvora, que entre os anos 1850 e 1860 comprou a Quinta da Provedora e o Palacete de São Sebastião (que terá sido projetado em 1730), propriedades do Provedor dos Armazéns da Índia, Fernando Larre.
São Sebastião não passava de um mero arrabalde até ao ano de 1852 quando se construiu a Estrada da Circunvalação. A partir daí, aquela área tornou-se numa verdadeira “porta para a cidade” e Eugénio de Almeida viu ali uma oportunidade. O empresário transformou os terrenos comprados e construiu um complexo residencial “às portas de Lisboa”, como escreve Joana Cunha Leal.

O Palácio Eugénio de Almeida – hoje ocupado pelo Centro de Recrutamento de Lisboa do Exército – foi recuperado pelo arquiteto francês Jean Colson, e o parque de Santa Gertrudes (assim chamado em homenagem à mãe de Eugénio de Almeida) mandado construir ao jardineiro suíço Jacob Weiss, que o tornou num parque com caráter paisagista.
Nele, ergue-se um segundo edifício, neoclássico, que teve direito a cocheiras e cavalariças projetadas pelo arquiteto italiano Giuseppe Cinatti, também cenógrafo do Teatro São Carlos.
Diz-se que Eugénio de Almeida teve a ideia das cavalariças depois de um anfitrião escocês ter acusado os portugueses de nada saberem sobre cavalos. Mais tarde, esse segundo edifício, a Casa de Santa Gertrudes, foi adaptado para habitação e ainda hoje permanece na posse da Fundação Eugénio de Almeida, bem como a sua área envolvente.
Ligar o parque ao Palácio
Em 1957, seis sétimas partes do parque de Santa Gertrudes eram vendidas à Gulbenkian, divindindo-se o parque entre essa fundação e a Fundação Eugénio de Almeida. O parque assim permaneceu até 2005, quando a Gulbenkian comprou os restantes terrenos a Maria de Eugénio de Almeida, que ficou com o seu usufruto até à sua morte, em 2017.
Agora, o parque vai reunificar-se, abrindo-se as suas antigas portas à população, e expondo-se uma obra do arquiteto japonês Kengo Kuma (que venceu o concurso de ideias para a expansão da Gulbenkian) do lado sul dos jardins.


Os ganhos não são só de espaço: para além da reunificação do parque, está prevista também a ligação, ao nível do pavimento, do Palacete de São Sebastião aos jardins, conferindo-se assim a ideia de um só “complexo”, como de facto o era no passado.
Esta é uma ideia que até agrada a Cassiano Neves, mas a reconstrução do muro parece-lhe carecer de qualquer tipo de fundamento, para além de implicar a destruição de árvores, diz o historiador. Já Sofia Mourão acredita que, se as pessoas percebessem o impacto que a intervenção terá, assim que terminada, provavelmente teriam outra perceção. “As árvores ficam a pertencer ao espaço público, é tudo mais interessante com o rebaixamento do muro”, afirma.

Por agora, a requalificação da rua Marquês da Fronteira encontra-se em fase de elaboração de estudo prévio pelo Departamento de Espaço Público da Câmara, mas terá que ser realizada uma reunião com o novo executivo em relação ao projeto, o que ainda não aconteceu. As obras estão previstas para o ano de 2023.
Se alguns defendem que “as cidades não são espaços cristalizados”, como diz Joana Cunha Leal, há quem mantenha a opinião de que este conjunto não pode desaparecer assim quando tem tanto significado histórico e cultural. “Está dado o pontapé de partida”, remata António Maria de Mello. E, sim, a discussão está lançada nesta que é uma luta entre o passado, o presente e o futuro das cidades.

Ana da Cunha
Nasceu no Porto, há 26 anos, mas desde 2019 que faz do Alfa Pendular a sua casa. Em Lisboa, descobriu o amor às histórias, ouvindo-as e contando-as na Avenida de Berna, na Universidade Nova de Lisboa.
✉ ana.cunha@amensagem.pt
Os muros podem ser perfeitamente abertos nas laterais, nas ruas do Marques Sá da Bandeira e Dr. Nicolau Bettencourt e não ser necessário mexer na frente da rua Marques de Fronteira.
E Teria muito mais sentido visto que a maioria das entradas para os jardins da Gulbenkian estão também nessas laterais
Desconhecia esta polémica, e infelizmente já a estou a ver tardiamente. Queria agradecer a publicação desta reportagem. Penso que é ignóbil, vil e desnecessário adulterar o património para uma decisão sem fundamento. Já não basta os atentados frequentes à cidade de Lisboa, teremos mais este. Pergunto-me, também, aonde se encontra a participação pública nesta decisão? E se querem abrir o jardim à população, porque é que simplesmente não abrem o portão?
Conservar os muros históricos porque são históricos (basta de destruição do património e da história de Lisboa) e porque as consequências da destruição estão bem patentes no admirável
actual jardim Gulbenkian que se tem vindo a degradar por falta de respeito da parte do publico que o utiliza e por falta de vigilância da instituição que, muito democráticamente! não impede jogos de bola, piqueniques, etc.
Tenho saudades do jardim Gulbenkian limpo, bem tratado, respeitado…e terei dos muros históricos.