Na oitava célula [unidade de vizinhança], do bairro de Alvalade, prédios levantam-se do chão para que um jardim contínuo possa passar. Nesse espaço verde, recentemente requalificado pela Junta de Freguesia, as crianças brincam no parque infantil e os vizinhos cruzam-se nos caminhos pedonais. Também crescem por ali frondosas amendoeiras-de-jardim, freixos, olaias e uma única magnólia. O local, originalmente batizado de Bairro de Habitações Económicas de São João de Deus, hoje é conhecido por todos como Bairro das Estacas.
As tais estacas — ou pilotis — sustentam os prédios projetados pelos arquitetos Ruy d’Athouguia e Sebastião Formosinho Sanchez. Já o jardim, foi um dos primeiros projetos do arquiteto paisagista Gonçalo Ribeiro Telles, que desenhou um jogo da macaca especial que até hoje está num dos logradouros no espaço. O conjunto é considerado um marco na arquitetura portuguesa, reconhecido e premiado na Bienal de São Paulo, em 1950, e pelo Prémio Municipal de Arquitetura, em 1954, ano em que foi finalizada a sua construção.
Não é de se admirar que o bairro atraia arquitetos como um íman. A arquiteta e professora do ensino superior Gabriela Gonçalves, comprou um apartamento na zona em 2011. Outro arquiteto, Francisco Garcia de Freitas, também viveu no bairro entre 2006 e 2017. Ambos estudaram na Universidade Lusíada e foi lá que ouviram falar do Bairro das Estacas pela primeira vez, mencionado como uma peça central da arquitetura moderna em Portugal e um exemplo inegável dos princípios da Carta de Atenas.
O principal interesse do Bairro das Estacas parece ser justamente a dinâmica que se estabelece entre o espaço público e o espaço privado. Francisco Garcia de Freitas conta que morava “numa casinha pequenina, mas com uma relação muito interessante com o exterior, muito aberta para os jardins em frente”.

O projeto original previa amplas varandas para os apartamentos e “janelas que abrem para fora”, explica Gabriela Gonçalves. Existe uma dinâmica de conexão direta entre os jardins e as casas, uma integração do espaço como uma totalidade.
Para além da elevação em estacas, Gabriela Gonçalves destaca alguns traços de “genialidade” do projeto, que “encaixa as áreas de maneira racional, com um equilíbrio formal muito bem conseguido”.
Para começar, o bairro foi desenhado todo virado a nascente e poente, para que a luz solar fosse aproveitada de manhã e de tarde. Os apartamentos duplex também foram uma estratégia empregada por Formosinho Sanchez e Athouguia para garantir a altura desejada aos edifícios sem a instalação de elevadores, que seriam um custo a mais nas obras.
Outro traço que não passa despercebido é a escolha das grelhas de betão que protegem visualmente as áreas de serviço interna e marcam as fachadas.

A personalidade dos edifícios, no entanto, alterou-se com o passar das últimas seis décadas. “A maioria das casas que existem no Bairro das Estacas estão, de alguma forma, transformadas. As varandas, por exemplo, “estão na sua maioria fechadas com marquises”, conta Francisco Garcia de Freitas.
O arquiteto já participou num projeto de reabilitação de um T3 no bairro, quando ainda lá vivia e conta que, nesse caso, foi possível retirar as marquises e “voltar a abrir a casa para o exterior”.
De alguma maneira, essas mudanças afetam a dinâmica entre o espaço público e a vida privada como ela foi idealizada originalmente.
O Bairro das Estacas está, atualmente, em vias de classificação, processo que pretende proteger o conjunto como um património cultural. “A maioria das pessoas nem conhecimento tem de que vive num conjunto de edifícios que é um projeto reconhecido”, diz Francisco Garcia de Freitas.
Diferente de patrimónios arquitetónicos do período barroco ou do renascimento, que são comummente reconhecidos como bens que devem ser preservados, “a arquitetura moderna ainda não está muito protegida porque é muito recente. Se calhar, daqui a uns anos, toda a gente vai olhar para o Bairro das Estacas e achar que ele é importante”, completa Gabriela Gonçalves.
Estacas: em busca da comunidade
Outra apaixonada pelo Bairro das Estacas — desta vez fora do meio da arquitetura — é a professora universitária Isabel Carita, que vive no bairro desde 2016. Antes disso, morava com a família no Parque das Nações, mas já cultivava o desejo de mudar-se para uma zona mais central em Lisboa.
Isabel e o marido decidiram que, se fosse para sair do Parque das Nações, teria que ser para o Bairro das Estacas. Primeiro, pela sua história e arquitetura. Segundo, pela proximidade com o Cinema King, muito frequentado pelo casal – que, entretanto, fechou. Por último, e talvez mais importante, pela vida de bairro que acreditavam existir naquele espaço deixado ao social, por debaixo dos edifícios.

“Eu não sou da cidade, sou do campo. Vim do Alentejo e gosto de alguma proximidade com as pessoas”, conta Isabel Carita. O Bairro das Estacas parecia, portanto, um lugar onde esta proximidade seria possível, bem no centro de Lisboa. As expectativas eram altas e a realidade acabou por não as cumprir.
É verdade que a maioria dos vizinhos se cumprimentam, reconhecem-se pelo rosto, são simpáticos, frequentam os mesmos lugares e partilham um orgulho de viver no bairro. “O que não existe, na minha experiência, é uma abertura por parte das pessoas para colaborar”, declara Isabel Carita.
O primeira esforço de Isabel Carita no sentido de uma construção coletiva ocorreu em 2018, quando decidiu que queria colocar toldos na sua varanda, para proteção da luz e do calor. Percebeu que o melhoramento seria caro, mas pensou que se mais residentes estivessem interessados os custos poderiam ser reduzidos numa compra coletiva.
“Armada de iniciativa, resolvi contactar os meus vizinhos para comprarem toldos comigo”, conta a alentejana. Imprimiu uns panfletos explicando quem era, como podia ser contactada e qual era a sua proposta. Deixou-os nas caixas de correio da vizinhança, mas apenas três pessoas entraram em contacto. Nenhuma se juntou a ela na compra. “Se calhar, a maioria ficou a pensar que eu queria vender toldos”, brinca Isabel Carita.
Ainda assim, a professora manteve o propósito de unir os moradores do bairro, “a ideia que eu tenho é a ideia de cidadania. Nós estamos sempre a queixar-nos do que não é feito, mas nós também fazemos muito pouco, não é?”
Ainda no ano de 2018, surgiu uma nova oportunidade para reunir os vizinhos e tentar impulsionar um sentido de comunidade. No processo de requalificação dos jardins, a Junta de Freguesia de Alvalade propôs intervir, também, na área abaixo dos prédios, pavimentando-a com calçada portuguesa. Para concretizar esta parte do projeto, seria necessária a autorização de cada um dos condomínios, visto que a zona é propriedade privada.
“Fazia-me um bocado de confusão que essa decisão não fosse uma coisa a nível do bairro todo”, diz Isabel Carita. Novamente, fez panfletos e deixou-os nas caixas de correio. Dessa vez, havia uma convocatória para uma reunião presencial e o convite para um grupo no Facebook.
No Bairro das Estacas existem mais de 240 apartamentos, mas na reunião de Isabel só apareceram nove ou dez pessoas interessadas em conversar. O consenso a que se chegou na reunião foi que faltavam esclarecimentos, por parte da Junta, sobre como seria feita a tal intervenção.
Nesse encontro, Isabel Carita cruzou-se com Gabriela Gonçalves, alguém que tinha uma “perspectiva de bairro” parecida com a dela. A partir daí, Isabel e Gabriela uniram esforços e marcaram uma reunião com a junta.
Foi “desanimadora”, como relata Isabel Carita. “Foi uma coisa um pouco estranha, porque claramente disseram-nos que não representávamos nada. Disseram que o nosso grupo não era uma associação de moradores, que éramos poucos e que nunca conseguiríamos nada, porque as pessoas aqui não se uniam.”, descreve. No fim, nenhum condomínio aderiu às obras de requalificação dos logradouros.
Atualmente, as duas vizinhas permanecem com o ideal de um Bairro das Estacas mais ligado em comunidade. “Podemos fazer coisas em comum, cuidar do jardim, gerir o lixo, ajudar pessoas idosas que precisam de auxílio… Por que não ações comunitárias?”, questiona Isabel Carita. Pode parecer irónico, mas talvez o maior desafio para uma organização coletiva no Bairro das Estacas seja também a sua maior mais-valia: a arquitetura.
Marquises: o bicho-papão do bairro
A fidelidade ao projeto inicial do Bairro das Estacas é um tema polémico entre os moradores. Existe um desentendimento evidente entre aqueles que querem preservar e os que não se incomodam em alterar.
Tanto Gabriela Gonçalves como Isabel Carita tendem a adotar uma postura de admiração pela arquitetura original do bairro, mas sem purismos radicais. “Não acho que tenhamos que fazer aqui um bairro igual ao original, nada disso. Mas as coisas podem ir evoluindo com algum critério”, explica Isabel Carita.
Gabriela Gonçalves, alinhada com este ideal, chegou a frequentar o arquivo da Câmara Municipal de Lisboa algumas vezes, para consultar os desenhos originais de Athouguia, Formosinho Sanchez e Ribeiro Telles. A sua primeira visita aconteceu quando remodelou o seu apartamento, removendo a marquise e recuperando as janelas originais.

“Voltei a pôr as janelas em madeira, embora com vidros duplos e já com um desenho que, em termos técnicos, era melhor”, relata Gabriela. Também no episódio da reunião sobre a proposta de intervenção da junta de freguesia na área abaixo dos prédios, a arquiteta voltou a consultar os arquivos. Lá, descobriu que o projeto original não contava com a calçada portuguesa sugerida, o que foi um factor determinante para que, pessoalmente, se poscionasse contra o projeto.
As marquises talvez sejam o maior exemplo da divisão entre vizinhos, classificado por Isabel como um “drama”. “Se eu disser que acho que devemos ter varandas, sou banida, porque a marquise é o mais importante que aqui está”, diz Isabel Carita.
A verdade é que a substituição de uma varanda aberta ao jardim por uma marquise que se fecha para dentro da casa é uma representação perfeita do conflito entre o espaço público e o espaço privado que os arquitetos do Bairro das Estacas desejavam tanto amenizar. “Tudo o que tem que ver com essa vertente da arquitetura, as pessoas acham que lhes vão tirar as marquises, os carros… Quando se começa falar de arquitetura é como um bicho-papão”, acrescenta Isabel.

Do outro lado da moeda, a vizinha Isabel Lourenço, que vive no bairro desde 2003, fechou metade da sua varanda em marquise, aproveitando o espaço interno conquistado para fazer mais um quarto. “A maior parte das pessoas que estão a recuperar apartamentos aqui são gente jovem na casa dos 30 anos e querem pôr tudo na origem. Tirar as marquises e voltar a pôr o bairro como ele era”, diz Isabel Lourenço.
Ainda assim, a moradora considera que o espaço conquistado com a sua reforma é essencial para comportar a sua família. São quatro, sem contar com um cão e um gato. Por isso, não pensa em seguir a onda dos recém-chegados. Afinal, a casa é propriedade dela, diz. E ninguém tem direito de “vir agora a minha casa e deitar isso abaixo”, diz.
Mesmo com discordâncias, desconfianças e sucessivas tentativas frustradas, Isabel Carita e Gabriela Gonçalves ainda não desistiram da ideia de fazer algo pelo bairro onde tanto gostam de viver. Andam, de momento, a pensar na ideia da criação de um Gabinete de Apoio. Um espaço com arquitetos, possivelmente integrando alunos universitários, e outros interessados que recolham informações sobre o Bairro das Estacas, a fim de aconselhar eventuais intervenções na zona.
Assim, seria possível estudar, por exemplo, possibilidades de melhorar a mobilidade nos prédios sem que isso prejudique o desenho arquitetónico original. Além disso, poderia ser disponibilizada aos moradores uma lista de serviços ou empresas de interesse. Essa seria, para as duas vizinhas, uma expressão de cidadania necessária no Bairro das Estacas. “O bairro é um marco da arquitetura e nós podemos dar isso à cidade. Nós devemos isso à cidade”, conclui Isabel Carita.
*Ana Hermeto Kubrusly é estudante de jornalismo na NOVA-FCSH e está a estagiar na Mensagem ao abrigo do projeto Correspondentes de Bairro. Este texto foi editado por Frederico Raposo
Falta explicar que fechar varandas constitui uma alteração à fachada dos edifícios sujeita a licenciamento. Para ser legal tem que ser aprovada em sede de Assembleia de condomínio antes de ser submetida a aprovação municipal. A maioria das marquises do bairro das estacas – se não mesmo todas – são ilegais. Alterar uma fachada não é um direito individual de quem compra um apartamento, uma vez que este se insere num todo que tem que ser respeitado.
Enquanto ex moradora do bairro das estacas, entristece-me a perda da imagem do bairro, e a degradação que lhe fica associada pela quantidade de marquises que surgiram.
Na realidade desvalorizam o património de cada vizinho, com a destruição de uma imagem coesa.
Será que se começa a sensibilizar os moradores para importância da recuperação urbanístico, e quando é que as câmaras fazem respeitar as leis?!